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segunda-feira, 26 de março de 2007

Tá sentindo o quê?: Começando do começo

Tá sentindo o quê?: Começando do começo

Começando do começo

A felicidade depende unicamente de você.
Possivelmente você já ouviu alguma coisa parecida com isso, senão a frase exatamente como aqui, em algum lugar. Essa, como milhares de tantas outras que nos últimos anos vem inundando as livrarias na forma de manuais (e em algumas vezes verdadeiros tratados) rotulados como de “auto-ajuda”, vêm seduzindo a mente do homem contemporâneo em todo o mundo, induzindo-o invariavelmente a pensar que as coisas só não são perfeitas porquê não queremos que elas o sejam.

Interessante perceber que, ao mesmo tempo em que alguns pseudo-literatos amealham fortunas com suas idéias de pouca sustentação prática (e muito menos científica) às custas da desesperança global, a sociedade moderna dá o tom para que mais publicações semelhantes sejam produzidas na medida em que se torna autofágica, e o Jornal Nacional está aí para não me deixar mentir, ratificando um sentimento de que as coisas vão de mal a pior. Mas não pensem que o mérito desta trupe se deve a essa brilhante constatação, pois para isso não precisavam perder seu tempo lendo essas linhas. O fenômeno da explosão do mercado editorial de publicações desta natureza, algumas, justiça seja feita, até razoavelmente interessantes, tem relação direta com o grau de aprofundamento das ambigüidades que o mundo moderno é exposto. De forma que, nessa linha de raciocínio, daqui a pouco, ao abrirmos a lista de livros mais procurados nas livrarias do país, vamos ter uma esmagadora maioria de obras voltadas para a auto-superação, a promoção pessoal, a vitória profissional, dicas de como gerenciar sua carreira, sua rotina, seu corpo, sua alimentação, suas férias, sua saúde, seus cabelos, suas calcinhas na gaveta, e por aí vai. O fato a lastimar está na perda da capacidade das populações, ocidentais principalmente, de perceber que suas vidas tomaram dimensões extraordinariamente diferentes das que de fato gostariam que tomassem, na medida em que as relações familiares se flexibilizaram, as relações de trabalho mais ainda, as relações com o mundo ao redor, enfim, não são as mesmas de gerações anteriores (freqüentemente lembradas pelos pais ou avós). Isto pode ser chamado de globalização.

Pode soar tendencioso, e talvez o seja, mas e se o que a todo o momento evocamos (de forma universal, diga-se de passagem) como a necessidade de se buscar um “ideal de vida”, “a qualidade de vida”, o “resgate dos valores perdidos”, etc.. não seja apenas mais uma mais uma manifestação perversa de uma das várias faces do indisfarçável apelo consumista que as sociedades capitalistas em geral têm como corolário básico? Ou não, talvez esse coro seja realmente sincero, e estejamos às portas de uma revolução de valores, uma reformulação de nossa base ética (existe isso ainda?), uma acachapante onda de transformações no campo das idéias e das ações, que por fim, mesmo sem mudar seu estilo multi-consumista, nos trará a sensação de bem estar que todo regime promete àqueles que o aderem? Tenho muitas dúvidas a este respeito, mas não posso deixar de registrar minha preocupação com as “obras” voltadas para o público em geral, estas também bem caracterizadas como um “grande filão”, no jargão capitalista: como quase nunca ninguém consegue alcançar as metas prometidas após espartana disciplina aos preceitos ali inclusos, seja porquê são impossíveis de serem alcançadas, seja porquê a incompatibilidade entre o que se propõe como caminho é absurda quando inserida no contexto do cidadão (vá dizer ao policial militar que a cura para seu estresse diário está dentro dele mesmo e aguarde a resposta), talvez tenhamos no futuro uma legião de insatisfeitos que buscarão um novo livro diferente para o mesmo ou para outro problema. Haverá lugar nas prateleiras para tantos livros assim? Bem ou mal, numa coisa tenho que concordar: Buenos Aires tem mais estabelecimentos culturais, incluindo aí livrarias, que no Brasil inteiro. Já conseguimos igualar no futebol o número de vitórias que eles tinham de vantagem sobre a gente. Quem sabe a gente agora vai ter um montão de leitores também?
É muito fácil responsabilizar o indivíduo como o único responsável pelo estado de coisas em que ele se encontra. Isso quase nunca é dito de forma direta, mas subliminarmente, quando se apregoa que a cura está em você, o sucesso é você quem faz, seu desempenho sexual só você pode administrar. E se não o faz é porquê não fez o que tinha que ser feito. Essa atitude é perversa quando colocada nesse contexto de tantas contradições da nossa vida cotidiana, pois aumenta ainda mais o abismo que separa o indivíduo da meta que ele pretende atingir, porquê pura e simplesmente as transformações que ele julga importantes não dependem só dele.

Ingênuidade acusar o regime, sair em passeata, fazer greve de fome contra tudo e todos, pois essa, felizmente ou não, é a nossa realidade global. Não há como fugir dela. Certo ou errada, caminhamos nessa direção e agora estamos diante de nossas próprias contradições. É assim que os povos evoluem. O que se discute são os meios empregados e de como eles acabam criando a falsa sensação de que tudo é possível porquê eu quero que seja possível. É uma farsa perigosa e ao mesmo tempo incrivelmente sedutora.

Seria muita pretensão apontar o verdadeiro caminho para a resolução das angústias do homem moderno, mas recorro a alguns simples ensinamentos lastreados na milenar cultura chinesa para fazer algumas humildes considerações que podem, se não resolverem todos os seus problemas, pelo menos trazer algum equilíbrio para agüentar as agruras do dia-a-dia. Primeiro, vocês já perceberam como esquecemos com enorme facilidade o que comemos nas refeições anteriores àquela que estamos fazendo? Não é uma coisa muito comum lembrarmos exatamente o que comemos no almoço quando vamos jantar. Outra: você alguma vez na sua vida já se deu conta de como o processo de respirar ocorre em você? É, respirar, aquela coisa que a gente faz para entrar ar no pulmão da gente, aquela coisinha simplesinha que nem pensamos quando fazemos? Pois bem, estamos falando das duas coisas (incluindo aí a água) que mantém seu corpo funcionando para que você desempenhe suas atividades diárias, as duas coisas mais sagradas que podem existir para você, as duas coisas que, em última análise, são que mantém suas células vivas, e você, caro leitor ou leitora, possivelmente não dá a importância devida? E se ao menos pudéssemos tornar a refeição um momento crucial em nossa vida, se pudéssemos juntar nossos filhos, desligar a televisão (praga!), fechar a revista ou jornal, baixar o som, diminuir o tom de voz, conversar amenidades, e, quem sabe, fazer uma prece agradecendo o alimento que está à nossa frente? E se pudéssemos mastigar com calma, saboreando cada garfada, percebendo como aquele momento é importante para todos ali? Seria legal? E se de vez em quando, pelo menos de vez em quando, aspirássemos o ar (quando estivéssemos num lugar apropriado, obviamente) e percebêssemos como ele entra em nosso corpo, como ele pode ser percebido, como ele é saudável e importante para a gente? Seria legal? E seria também complicado de fazer, nas duas situações? Pensem a respeito.

“ Palavras verdadeiras não são lisonjeiras.
Palavras lisonjeiras não são verdadeiras.
O homem de bem não fala muito.
Quem fala muito não é homem de bem.
Homens sábios não são eruditos,
Homens eruditos não são sábios.
Quem trilha o caminho da perfeição
Não acumula tesouros.
Riqueza é para o sábio
O que ele faz pelos outros.
Quanto mais ele dá aos outros,
Tanto mais rico se torna.
Assim como de Tao brota a vida,
Assim age o sábio
Sem ferir ninguém”

“Sabedoria pelo despego”
Lao-Tsé – Tao Te Ching

É isso aí e até a próxima.