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terça-feira, 30 de novembro de 2010

"Sobre a morte e o morrer" parte 4: quando não se pode tentar alguma coisa.

Volta e meia os meios de comunicação fazem alusão a situações marcantes do nosso cotidiano, algumas vezes apontando, sugerindo soluções e fomentando debates de alto nível. Em outras vezes, nos dá a sensação ou que não tem o que falar e explora-se aquilo que já é sabidamente um assunto instigante, ou que o fazem de forma propositadamente distorcida por incompetência ou má fé. Entretanto, agindo de forma sensacionalista ou comedida, a questão da falta de leitos de UTI incomoda e frequentemente povoa o noticiário e o discurso dos políticos e gestores em saúde, seja de forma demagógica, seja de forma bem intencionada na expectativa de apontar soluções para a questão. Porque quem tem um mínimo de seriedade e conhecimento do assunto sabe muito bem que é um problema insolúvel em nosso país.

O Jornal "O Globo" publicou no dia 15/11 recente a primeira do que seria uma série de reportagens sobre a crise na saúde (mas parece que não houve continuidade), envolvendo principalmente as UTI's dos hospitais da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (a íntegra pode ser vista em http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/11/15/media-de-obitos-do-ultimo-trimestre-chega-8-6-por-dia-nos-ctis-publicos-e-32-3-maior-que-dos-ultimos-dois-anos-923028748.asp). Nela, descreve-se, a partir de uma situação pontual, um cenário de adversidades e inadequações na prestação dos serviços em saúde que realmente impressionam, ilustrada com alguns números contundentes:
      * morre-se nas filas de vagas para UTI no estado 258 pessoas em média por mês, ou 8,6 pessoas por dia;
      * existe um déficit de 510 leitos de UTI para suprir essa demanda;
      * em dois anos de atuação da Central de Regulação de Leitos do Estado, verificou-se que em média apenas 36% dos pedidos de vagas em UTI para pacientes graves são contemplados.

Por trás dos dados, alguns pormenores que passam desapercebidos. Os hospitais públicos no estado do Rio de Janeiro, a maioria grandes prédios construídos no modelo "hospitalocêntrico" tão difundido quanto equivocado em nosso meio, são organizações antigas, muitas das quais herdadas do antigo INAMPS (que por sua vez se apropriou dos IAP's). Boa parte deles possuem centros de tratamento intensivo - CTI (como o carioca gosta de falar, em contraposição à UTI), com uma quantidade de leitos ebm dimensionada internamente para esta finalidade. Em se tratando de hospitais públicos, lá, mais do qualquer outra grande capital, existem os hospitais da Secretaria Estadual de Saúde (a que se refere a reportagem), os Hospitais da Secretaria Municipal de Saúde (a construção de hospitais municipais de maior porte não é uma constante em nosso país, sendo um modelo pouco seguido por outras cidades), os antigos hospitais do INAMPS que hoje fazem parte da rede do Ministério da Saúde (com gestão e financiamento federais), e as filantrópicas (destaque para a Santa Casa de Misericórdia).

As vagas disponibilizadas para a internação de pacientes em hospitais públicos, inclusive aqueles que necesstam de UTI, devem ser geridas pelas Centrais de Regulação de Leitos, de acordo com a Portaria 1.559/08 do Ministério da Saúde. Isso acontece em todas as capitais e cidades maiores. Entretanto, no Rio de Janeiro, segundo a reportagem, os leitos de UTI disponíveis nos hospitais municipais e federais não entram na contabilidade pois não foram confiadas a sua gestão à Central de Regulação. Resultado: mais de 1000 vagas não entram na conta, o que não quer dizer que não estejam sendo utilizadas. Aqui, quem determina quem as ocupará é o gestor da unidade e não a central. Outro dado que, ao invés de trazer alívio traz maiores preocupações: segundo a Dra. Rosane Goldwasser, que para os intensivistas representa seriedade e comprometimento, "de 2006 a 2010 o número de leitos de UTI da Rede Estadual do Rio de Janeiro...aumentou de 87, 11 e 171 para 253, 42 e 372 leitos de UTI adulto, pediátrico e neonatal, respectivamente, e passamos a atender de 2000 pacientes em 2006 a 9391 pacientes, isto é, quadruplicou-se o número de atendimentos" (veja depoimento completo em http://www.amib.org.br/noticias.asp?id_noticia=827).

A questão é complexa, para variar, e qualquer análise acerca das repercussões desta equação que não fecha devem contemplar uma análise mais aprofundada a respeito dos avanços (e retrocessos) recentes. Fato inquestionável é que as secretarias de saúde em geral têm apresentado investimentos vultosos na construção, ampliação e modernização de UTI's em suas unidades hospitalares, preenchendo um vácuo de muitos anos nesse aspecto assistencial (dentre os muitos existentes). Mas é insuficiente. Não só pela deficiência absoluta e relativa de leitos para atender a totalidade da população mas também por alguns fatores, centrais e periféricos, tais como:
      * a população brasileira está envelhecendo, não só sua longevidade média aumentou como também a proporção de idosos em relação à população em geral. Isso significar dizer que há uma tendência natural ao aparecimento de doenças próprias desta faixa etária, que por sinal se sobrepõem umas às outras em virtude  de algum grau de melhora no acesso aos serviços de saúde e às políticas de barateamento de medicamentos de uso contínuo. Assim, é natural que mais pessoas precisem de UTI porque mais pessoas estão convivendo com doenças crônicas que geralmente se tornam graves a ponto de precisarem deste leito quando se complicam;
      * tal como dito acima, logo abaixo na incidência de população sujeita a dispor de leitos de UTI estão as vítimas da violência urbana. No Rio de Janeiro esse percentual, como todos sabem, é significante;
      * UTI construída não é UTI funcionante. Algumas unidades inauguradas não podem ou não conseguem fazer cumprir a sua função por um motivo absolutamente singelo: não existem profisionais em número suficiente para fazê-las funcionar. O profissional médico, enfermeiro, fisioterapêuta e técnico de enfermagem, para ficar apenas nesses exemplos, para poder trabalhar em uma UTI, necessita ser dotado de alguns conhecimentos específicos, além de ser altamente desejável que tenha um certo grau de amadurecimento profissional para exercer com competência essa função. E não se encontram profissionais com esse perfil, problema que atinge também a rede hospitalar privada;
      * os profissionais que atuam em UTI, justo aqueles que exibem uma qualificação adequada, somente aceitam ser remunerados com valores que justifique todo o investimento em capacitação que tiveram. As secretarias de saúde em geral não podem pagar esses salários, principalmente para os médicos, que vão prestar seus serviços na rede privada. Em alguns estados adotaram-se firulas administrativas para "driblar" o fato de a maioria destes não fazerem parte de seus quadros, e ainda por cima receberem salários competitivos, não sem resistências e críticas. Em alguns lugares serviços instalados retrocederam na qualidade em função da obrigatoriedade de preenchimento destes postos por profissionais do quadro funcional da secretaria, notadamente sem a qualificação necessária. Não seria distorcido dizer que em alguns lugares, se o paciente não morre por falta de vaga, morre por estar nela;
      * os poucos leitos existentes em UTI concentram-se nas grandes cidades. O que não quer dizer que o restante das populações das demais cidades não precisem de uma UTI. No interior de alguns estados do norte e nordeste, ter um agravo de saúde grave o suficiente que justifique internação em UTI (pública ou privada) é uma sentença de morte;
      * por fim, e não menos importante, nossa população é pobre. Não consegue vislumbrar a oportunidade de dispor de um plano de saúde na expectativa de sentir-se um pouco mais segura num momento como esse. Em torno de 60% dos leitos de UTI estão na rede privada, atendendo a cerca de 25-30% da população, enquanto os demais 40% restantes dos leitos atendem os restantes 70-75%. A conta não fecha. Mesmo nos hospitais privados eventualmente se noticia a dificuldade de se disponibilizar um leito de UTI. Ainda por cima, quando o idoso consegue ter acesso a um plano de saúde, frequentemente ele se vê obrigado a deixar de contribuir para o mesmo em função do aumento das mensalidades, por sua vez incrementada pelo aumento da sinistralidade presumida.

Nosso sistema público de saúde, pretensamente universal e integral, não é perfeito. Denominado Sistema Único de Saúde, apresenta uma complexidade e uma dificuldade de gerenciamento tão grandes quanto a população que dela faz uso (na teoria 75% da população, ou 150 milhões de pessoas. Na prática, e com a prerrogativa da lei, 100% da população, principalmente quando aqueles que têm planos de saúde a ele recorre em função de negativas de tratamentos). Não se pode negar que avanços consideráveis foram alcançados, mas, via de regra, é mais interessante noticiar a miséria humana em seus diversos cenários, é mais impactante e dá mais audiência. Muito raramente se noticia, por exemplo, que o mais ambicioso programa de transplante de órgãos do planeta é financiado integralmente pelo SUS (os transplantes não são cobertos pelos planos de saúde), muito menos as estatísticas a ele relacionada. Ou os dados do programa de tratamento dos soro-positivos para HIV, bancado integralmente por ele (os planos de saúde nem de longe cogitam a idéia de fazer algo semelhante). Na maioria das vezes quando se fala em SUS a imagem é emergência cheia, gente morrendo na porta do hospital por falta de vaga, os velhinhos dentro da ambulância sem atendimento....

Não se pretende com isso fechar os olhos para as iniquidades do setor, que existem, devem ser encaradas de frente, e exigem atitudes sérias por parte de seus gestores. Pelo visto, ainda vamos conviver com novos retornos a esse tema, apesar de, objetivamente, haver uma tendência à diminuição. Acabar, nunca.


domingo, 28 de novembro de 2010

"Sobre a Morte e o Morrer", parte 3: controvérsias no campo de batalha

É muito difícil encontrar um médico que trabalhe no ambiente de uma UTI que não tenha se defrontado com uma situação, cada vez mais presente e corriqueira, de se questionar se vale realmente a pena ou não utilizar os recursos técnicos à sua disposição naquele momento para prolongar a vida de um indivíduo cujas reais chances de recuperação de seu estado são nulas ou próximas a isso. Tal cenário enseja inúmeras reflexões, mas nos ateremos às de caráter técnico-científico:

1 - Quem pode afirmar que um paciente não tem mais chance de cura ou recuperação?
À exceção dos resultado bastante convincentes dos testes descritos no "Protocolo de morte encefálica", aprovado pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 1.480 de 08/08/97), não há nenhum elemento objetivo de predição absoluta a respeito do desenlace fatal de algum paciente, mesmo aqueles considerados portadores de situações de saúde muito graves. A percepção a respeito do inevitável desfecho pelos profissionais que atuam em UTI's ou áreas afins, assim como do tempo provável em que isso irá ocorrer, parte de um pressuposto baseado em larga experiência no acompanhamento de casos semelhantes por esses mesmos profissionais, a despeito da inexistência de dados exatos. Há que se frisar que todo paciente com diagnóstico de morte encefálica é, por natureza, um paciente muito grave, mas nem todo paciente muito grave está em morte encefálica. Aliás, no cotidiano das UTI's, a maioria não está. Carece, portanto, o profissional dos meios necessários para, de forma inequívoca, confirmar a inexorabilidade do desfecho fatal para aquele paciente em particular através de testes e exames padronizados. Entretanto, salvo raras exceções e desde que estejamos lidando com uma equipe competente, os demais elementos se juntam para compor um cenário no qual se pode sim afirmar com razoável grau de certeza que em certas situações não há absolutamente mais nada a se fazer a não ser privilegiar medidas de conforto.
Obviamente que para o leigo tais percepções passam ao largo com esse detalhamento. Mas a experiência mostra que na maioria das vezes os acompanhantes e familiares conseguem perceber mais ou menos o que está para ocorrer, independente do que informa a equipe assistencial.

2 - Há algum amparo legal em se proceder à descontinuidade de um tratamento, baseado na conclusão de que o investimento revela-se fútil?
Primeiro vamos definir melhor: tratamento fútil a um paciente, hospitalizado ou não, é, como diz o termo, aquele que não acrescenta ou agrega nenhum valor no processo de recuperação do mesmo, podendo mesmo às vezes até trazer prejuízos e sofrimento físico. Qualquer tratamento. Já o ato de suspender a aplicação tratamentos fúteis a pacientes internados, geralmente em UTI's, em função da ausência total de perspectiva de recuperação, é chamada ortotanásia. A esse respeito, no ano de 2006 o Conselho Federal de Medicina emitiu outra resolução (Resolução CFM 180.5/2006) discriminando o assunto, na época de sua divulgação gerando inclusive uma polêmica enorme em diversos meios (a esse respeito veja a excelente exposição do advogado Alexandre M. Moreira em www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3373/A-ortotanasia-e-a-Resolucao-CFM-1805-2006?src=busca_referer). Quanto ao amparo legal para a aplicação dos princípios emanados por esta resolução, estes não existem ainda, pois o nosso Código Penal não tipificou esse pormenor, e talvez nunca o tipifique em função de incontáveis distorções que podem surgir em torno de sua interpretação, muitas das quais de caráter religioso e doutrinário. Mas vale lembrar que deixar de aplicar tratamentos, exames e terapias sem fundamento em função do quadro irreversível do paciente não significa de forma alguma não tratá-lo com respeito e dignidade, promovendo medidas de conforto tais como baixo ruído, presença mais amiúde de familiares, analgésicos potentes e sedativos para aliviar qualquer desconforto, medidas de higiene adequadas, manobras posturais adequadas, e, principalmente, contato aberto, franco e solidários com os seus familiares e acompanhantes.

Precisamos pensar se efetivamente há a necessidade de haver dilemas nessa situação. Como quase tudo que envolve o tratamento do paciente grave, principalmente na UTI, muitas variáveis estão em jogo e muitas pessoas estão envolvidas. Mas não se deve perder de vista o fato de que o objeto de maior atenção continua a ser o paciente. E não se pode deixar, em momento algum, de abrir mão de uma abordagem objetiva, franca e paciente com os seus familiares e acompanhantes. Independente de credo ou momento psicológico, há uma tendência a uma maior receptividade por parte destes com relação às informações que são prestadas, não sendo raro o estabelecimento de uma relação de confiança para com a equipe assistencial no que diz respeito às intervenções ou a ausência delas, e seus motivos. Em resumo, uma relação de respeito e acolhimento com familiares faz uma enorme diferença em como a equipe pode atuar nessa questão, ficando mais à vontade para adotar a melhor postura frente ao paciente sem receio de manifestações inesperadas.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Sobre a morte e o morrer" parte 2: a informação sobre a morte tratada com desdém pelos hospitais

Alguns aspectos da assistência hospitalar frequentemente passam desapercebidos do público em geral. Outras vezes passam desapercebidos também dos gestores hospitalares que, absorvidos no cotidiano das organizações em múltiplas tarefas, frequentemente não percebem alguns fatos relevantes ou não são informados adequadamente sobre os mesmos.
No ambiente hospitalar, é preocupante ver que na maioria das organizações consideradas de primeira linha, assim chamadas em função de avanços nos seus processos de incorporação tecnológica, de políticas de qualidade e de capacitação dos seus quadros, ainda ocorram inadequações graves na condução de processos elementares. Uma dessas inconformidades diz respeito à forma como essas organizações tratam o óbito de um paciente internado.
Devemos sempre lembrar que a "Declaração de Óbito" (mais comumente chamada Atestado de Óbito) é a única fonte de informação dos órgãos governamentais para a realização de estatísticas sobre morbi-mortalidade na população, que por sua vez vão gerar políticas voltadas para um melhor planejamento da assistência médica nas grandes populações através do direcionamento de recursos, criação de unidades de saúde, contratação de profissionais e realização de campanhas. Além disso, é fonte de dados para pesquisadores de agências nacionais e internacionais em diversos trabalhos científicos que envolvem, inclusive, a criação de "ranking´s" de eficiência na implantação de políticas de saúde. Os organismos buscam as informações nos cartórios, aonde são emitidas as "Certidões de Óbito" com os dados relacionados à causa da morte (ou causas), por sua vez fornecidos por quem preencheu a Declaração de Óbito, ou seja, o médico.
Eis que em nosso país na imensa maioria dos casos esse documento, de enorme valor enquanto fonte de dados, é manipulado por profissionais que não tem o preparo adequado para preenchê-lo. O médico que assina a Declaração de Óbito num paciente hospitalizado via de regra não conhece e não prestou antes assistência direta ao paciente que acaba de falecer, algumas vezes apenas o fez em seus momentos finais, em função do atendimento da intercorrência que culminou com o óbito. É geralmente um plantonista de um outro setor, e que tem, entre as suas obrigações, o dever de assistir às urgências de pacientes internados. 
O documento que ele assina tem espaços destinados à colocação do evento principal que levou àquele desfecho, assim como os eventos secundários que podem ou não estar relacionados ao evento principal. Ao todo, são cinco espaços destinados à colocação de diagnósticos. Existe também um espaço destinado à caracterização do grau de relacionamento entre o profissional que assina o atestado e o paciente, onde se pergunta se o profissional que assina o documento é aquele que prestou a assistência durante o seu período de internação. Dentre as opções, existe uma chamada "substituto", que vem a ser a mais frequentemente assinalada. 
Engana-se quem pensa que esses espaços são preenchidos de forma adequada, fazendo com que o valor da Declaração de Óbito seja respeitado. Na imensa maioria das vezes as organizações preferem ignorar essa relevância, deixando o preenchimento a cargo de médicos sem treinamento no preenchimento do documento, e o pior, sem conhecer o paciente. Isto porque o profissional que assiste ao paciente, o médico titular que o conhece, geralmente não está disponível para comparecer ao hospital naquele momento e inserir os dados da forma correta. Outras vezes ele não é localizado. E em outras, quando o paciente é assistido por dois ou mais profissionais especialistas simultaneamente, é extremamente comum a escusa de um ou todos em assinar o documento, ou mesmo orientar o preenchimento deste, sob a alegação de que não é o médico assistente, mas apenas um consultor. Por isso a quadrícula "substituto" é a mais frequentemente assinalada.
A equipe de enfermagem frequentemente arca com a responsabilidade de dar o melhor direcionamento a um processo que deriva de uma responsabilidade ética e legal única e exclusivamente médica.
Os hospitais que implantaram núcleos de epidemiologia parecem ter um desempenho melhor na qualidade da informação gerada pelas Declarações de Óbito, seja através de uma ação educativa com os profissionais, seja através de proposições junto à alta direção que privilegiem um adequado registro. Aqueles que implantaram equipes de médicos hospitalistas também experimentam registros um pouco melhores.
Uma das ações possíveis é, por mais banal que possa parecer, estipular no documento de internação o profissional titular pela assistência, para que este seja acionado em situações como essa, seja para orientar o preenchimento da declaração (no caso de não estar disponível para preenchê-lo), seja para fazê-lo pessoalmente. Se em algum momento da assistência sua participação na condução da assistência àquele paciente deixou de ser relevante, e outro profissional passa a sê-lo, este último assume a titularidade.
O que se espera é que a qualidade da informação seja adequada, servindo assim ao propósito fundamental de embasar políticas de saúde, além de servir de ferramenta de planejamento interno e fonte de dado confiável em demandas jurídicas ou relacionadas à idenização de familiares por seguradoras.
É, antes de tudo, um compromisso com a verdade. Não fica bem uma organização fornecer uma informação desta natureza de forma leviana ou insuficiente.
Nota: alguns textos interessantes para quem quiser se aprofundarno assunto (e são poucos) -

http://www.scielo.br/pdf/rsp/v24n4/09.pdf

http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/iesus_vol11_1_editorial.pdf

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

"Sobre a Morte e o Morrer", parte 1: generalidades

A frase acima é o título de uma obra ímpar na literatura, não necessariamente médica, escrito por uma inglesa em meados do século passado chamada Elizabeth Kubler Ross. Com ela, inaugurou-se uma ciência chamada Tanatologia, que se ocupa de estudar a morte nas suas dimensões forenses, psicológicas, sociais e antropológicas. Ou seja, é um estudo multi-dimensional. E nem poderia ser de outra forma, pois são tantos os aspectos relacionados a este inevitável momento, que reduzi-lo a um enfoque apenas seria, no mínimo, injusto.
Eu recomendo a leitura deste livro para profissionais de saúde e público em geral. É uma boa forma de se introduzir num assunto tão cercado de tabus, e que a todo instante envolve aqueles que trabalham nos hospitais, particularmente nas UTI's.
Basicamente, seu relato trata de questões relacionadas aos pacientes portadores de doenças terminais, ou seja, aqueles em que não há nenhuma expectativa de cura de sua doença básica, e que nada pode ser feito a não ser minorar o sofrimento físico e espiritual, além de compreendê-los e dar o suporte necessário para que ele percorra todo um roteiro instintivamente seguido sem ter sido apresentado, que envolve a negação, a revolta, a negociação, a introspecção e a aceitação.
Após tantos anos trabalhando nesse ambiente, me dei conta que não importa a experiência que você adquire no trato diário do paciente, ser humano como você que me lê: não há como não se sensibilizar com o sublime momento em que o espírito vivo abandona gradativamente a matéria que fica. Principalmente em ocasiões nas quais as condições a que um paciente está submetido (nas UTI's por exemplo) são muitas vezes degradantes em função de seu lastimável estado de saúde, mas que são as tecnicamente recomendadas, na expectativa de reversão de quadros clínicos muitas vezes tão graves que soa falsa a afirmação de que o mesmo está "confortável". Quem poderia estar confortável tendo seu corpo aviltado de maneira não consentida por tubos, cateteres, equipamentos, sondas, fraldas e outras tantas coisas estranhas?

Voltamos a falar sobre mais alguns aspectos adicionais nas próximas postagens.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Lá vamos nós de novo com a CPMF...

Se tem uma coisa nesse país que é consenso entre todos os cidadãos, essa coisa chama-se aversão a impostos. Todos odeiam. E acredito que a grande maioria assim se comporte em função da forma imoral e irresponsável com o qual as autoridades públicas tratam nosso dinheiro.
A CPMF, criada e ardorosamente defendida por uma autoridade incontestável no cenário político da época, Dr. Adib Jatene, então Ministro da Saúde, desvirtuou-se completamente de sua finalidade, pois na prática serviu para cobrir buracos alheios. Vendida como uma das principais soluções para o crônico financiamento deficiente da saúde, acabou por se transformar num recurso que cobria tudo, menos aquilo para qual foi criada. E acabou extinta não por algum tipo de demonstração de cidadania e bom senso dos parlamentares de oposição do congresso e senado federal, mas pela pressão popular e das entidades civis.
Eis que o Ministro Temporão resolve abraçar a bandeira da recriação da CPMF, só que agora travestido de outro nome: CSS - Contribuição Social da Saúde. O discurso permanece o mesmo, aquele blá, blá, blá de sempre de que agora seria diferente, pois novos dispositivos criados pelos parlamentares no Congresso Nacional para impedir o que ele chama de "desvirtuamento de sua finalidade". E ainda tem a cara-de-pau de dizer que "isso não passa de lenga-lenga e ladainha", acerca da necessidade ou não da criação do novo imposto (veja entrevista completa no O Globo, http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/11/09/temporao-volta-defender-mais-recursos-para-saude-mas-nao-com-modelo-da-cpmf-922982789.asp). 
Ninguém mais se recorda da Emenda 29. Criada por ocasião dos 10 anos de existência do SUS, ou seja, produto de uma gestação prolongada e intensamente refletida e debatida, a proposta põe fim a essa discussão estéril, antipática e imoral (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm). Até hoje está na gaveta, por falta de vontade política daqueles que deveriam ser os primeiros a defendê-la. Vejam o artigo de Gustavo Corrêa, publicado no O Globo de 08/11/2010 (http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2010/11/08/regulamentacao-da-emenda-29-melhor-caminho-para-elevar-financiamento-da-saude-922968320.asp) para maiores detalhes.
Senhor Ministro, nosso problema é sim, de gestão. Ache os meios técnicos e, principalmente, morais e legais de manter a integridade da utilização destes recursos que a saúde pública no Brasil encontrará rapidamente os 40 a 50 bilhões de reais que o senhor busca com a sua CSS.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sepse: comentários finais.

Uma vez definida e mais ou menos explicada quanto aos seus fatores associados, além de já termos comentado a respeito de alguns aspectos relacionados à sua incidência, mortalidade e fatores vinculados a problemas no seu diagnóstico e tratamento nos hospitais do Brasil, completo essa sequência citando alguns pontos adicionais.

Na verdade, bom era o tempo em que grave mesmo era ser identificado na escola como portador de piolho na cabeça, sendo necessário se submeter ao "tratamento" intensivo com Neocid. Naquela época morria-se muito de infecções graves, como hoje, mas seguramente o papel atribuído aos germes resistentes, principalmente aqueles adquiridos nos hospitais, não era tão importante como é hoje. Numa relação de causa e efeito simples, o destaque (ainda pouco) dado ao assunto sepse vem crescendo na mesma proporção em que se notificam bactérias super-resistentes. O que é uma pena, pois ela já faz parte do cotidiano das UTI's, contribuindo significativamente para a morte de muitos pacientes potencialmente tratáveis. E digo potencialmente porque existem sim recomendações muito bem estabelecidas para o tratamento da sepse, e que se baseiam numa premissa básica: rapidez.

O fato a se lamentar é que os serviços de saúde em geral não costumam favorecer as abordagens imediatas e às vezes agressivas que devem ser feitas nesses casos. Para piorar, a classe médica também não está adequadamente preparada para identificar essa situação e tomar as providências cabíveis imediatas. E são providências muito básicas, sem maiores complicações.

Em 2001, num artigo do The New England Journal of Medicine, a revista científica médica mais respeitada do mundo, um pesquisador chamado Emanuel Rivers chamou a atenção para como as medidas simpes feitas na própria emergência dos hospitais tinham repercussões tremendas na sobrevivência daqueles que se apresentavam com suspeita de sepse (se tiverem curiosidade, vejam www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa010307). Desde então esse "manual" se tornou uma referência entre os estudiosos, que juntamnete com o lançamento no mercado mundial da única droga realmente promissora aprovada para tratamento das alterações graves induzidas pela sepse no homem, a dotrecogina alfa ativada, motivaram a realização de algumas camapnhas para esclarecimento da classe médica a respeito do tema. Diga-se de passagem, foi necessário um ente privado, no caso o laboratório que fabrica a droga, fomentar a discussão e trazer para perto dos profissionais esse conhecimento, que deveria ser de responsabilidade dos órgãos públicos de saúde. Evidentemente que a prescrição da droga, caríssima por sinal, recebeu um impulso. Afinal, não existe almoço de graça.

Ainda assim são louváveis, porém ainda tímidas, as iniciativas de algumas associações. Dentre elas, destaco o Instituto Latino Americano de Sepse - ILAS (www.sepsisnet.org), entidade sem fins lucrativos, que dá uma orientação muito boa e completa para o público em geral e para os profissionais de saúde. Vale a pena conferir.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ainda sobre a sepse.

Começo fazendo um esclarecimento a respeito de uma dúvida de um leitor.

A sepse é um estado que pode ser provocado a partir de uma infecção em qualquer parte do corpo, causada por uma bactéria, um vírus ou um fungo. Por serem agentes infecciosos, via de regra eles somente são eliminados se, dentre várias medidas, forem utilizados os antibióticos adequados nas doses e vias de utilização corretas. Entretanto, em se tratando de uma bactéria multi-resistente (como no caso da KPC), a eficácia da utilização do antibiótico fica comprometida em função de sua resistência. Nessa circunstâncias, o resultado geralmente não é o melhor e frequentemente o paciente morre.

Uma vez mais ou menos dimensionado o problema, que, volto a repetir, é de total desconhecimento da população em geral (acostumada muitas vezes a decorar nomes de doenças comuns), vamos ao lado negro da questão.

Somos um país de 130 milhões de pessoas, com uma população que tem acesso a serviços de saúde privados, ou seja, que podem pagar um planos de saúde, na faixa de 25% (mais ou menos 33 milhões de brasileiros). O restante é atendido, e de forma geral bem atendido, pelo Sistema Único de Saúde. Convenhamos, tratar de forma justa e garantir o acesso deste contingente de forma universal é um tremendo desafio, mas muito se avançou nesse processo. Dentro desse contexto, algumas coisas ainda estão bastante longe do ideal, entre elas a capacitação dos profissionais de saúde no serviço público para o manejo da sepse, as condições materiais oferecidas nos hospitais para este manejo e a disponibilização de vagas para o atendimento deste paciente grave (Unidade de Terapia Intensiva ou Semi-Intensiva).

Um artigo escrito pela jornalista Karina Toledo no Estado de São Paulo do dia 28/10 ilustra bem esta questão, que reflete de forma tão desigual nossa realidade. Segundo ela "os pacientes dos hospitais públicos tiveram de esperar, em média, seis horas pelo diagnóstico. E só em 24% dos casos a sepse foi identificada na primeira hora. Nos privados, o tempo de espera foi de três horas e em 39% dos casos o diagnóstico ocorreu em menos de uma hora".  Vale a pena ler a reportagem inteira no http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101028/not_imp630904,0.php, e se tiver dúvidas mande para a gente esclarecer.

A gente volta a falar sobre isso mais à frente.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Você já ouviu falar em sepse?

O público em geral, e infelizmente uma parte dos profissionais de saúde, desconhecem o termo "sepse". Na esteira do sucesso de público da superbactéria KPC, um conhecimento acerca dessa tema seria bem conveniente.
A sepse (antigamente chamada septicemia) é uma síndrome e não uma doença. É, portanto, um conjunto de sinais e sintomas na grande maioria das vezes associadas a infecções mais graves de qualquer localização. Esses sinais e sintomas são produzidos por toxinas provenientes do próprio agente infeccioso (bactéria, vírus ou fungo) e, na maior parte, por substância chamadas "mediadores inflamatórios" produzidas por células do nosso sistema imune, despejadas em grande quantidade na circulação em resposta à presença do organismo invasor. Esses mediadores inflamatórios, e não o agente infeccioso em si, são os maiores responsáveis pela sucessão de eventos danosos que ocorrem no organismos, caracterizadas em última análise pela incapacidade de manter uma adequada perfusão sanguínea nos diversos tecidos do corpo.
Se o processo não for interrompido de forma adequada, podemos ter um colapso circulatório ao qual chamamos de "choque séptico". A manutenção desse estado, mesmo que o tratamento adequado seja instituído, promove o mal funcionamento (por má perfusão sanguínea) dos órgãos vitais tais como coração, cérebro, rins e fígado, levando ao que chamamos "disfunção orgânica", em boa parte das vezes com graves consequências, quando não leva ao falecimento do paciente.
A importância de trazer essa reflexão parte do pressuposto de que entre 50 a 60% dos pacientes com sepse na sua forma grave não resistem e morrem nas UTI's, tanto no Brasil quanto no mundo, a despeito do melhor tratamento. E o pior é que dentro desse contexto de KPC's e outras bactérias super-resistentes, que como falei antes não é um evento isolado (ao contrário, corriqueiro), o diagnóstico mais frequente entre todas as UTI's tomadas em conjunto é justamente a sepse.
Isso posto, falaremos um pouco mais sobre as repercussões globais desse fato nos próximos post's, mas era necessário fazer essas definições.