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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Médico, planos de saúde e mitologia grega

Erisictão, rei da Tessália, era um personagem na mitologia grega que teve um estranho fim: por ser arrogante, não prestar homenagem a nenhum deus e ignorar os apelos de Deméter, deusa da agricultura, para que não derrubasse a sua árvore sagrada, foi invadido em suas entranhas por Némesis (a vingança) e Limos (a fome), por ordem desta, de forma que a partir daquele momento passaria a ter uma fome tão intensa que, após extinguir toda a comida de seu reino e de vender sua família para adquirir mais comida e ainda assim não saciar a sua fome, acabou por comer a si mesmo e morrer.

Encontrei nessa história a metáfora mais que perfeita para servir de fio condutor nessa homenagem às avessas ao dia do médico, que ocorreu recentemente.

Devo confessar que em pelo menos um aspecto não vejo muito que comemorar nessa data: os médicos estão infelizes com a situação à qual a própria classe se colocou com relação à intermediação das relações de trabalho feitas pelas operadoras de planos de saúde, que não entregam aos profissionais o valor ao qual fazem jus pelos seus serviços. E o pior, tais quais as ondas do mar batendo nas pedras (me perdoem a licença poética), todos os anos reproduzem as mesmas queixas e muxoxos, sem nenhuma conquista de impacto para a classe.

Longe de ser um comentário panfletário, e sem esperar esgotar o assunto, não consigo deixar de refletir acerca dessa situação tão imperfeita, e que afeta toda uma categoria profissional  nas suas mais variadas formas de agir. E, por respingos, outras categorias, por que não dizer.

As operadoras de planos de saúde vicejaram em nosso país em função de um hiato criado pela nossa própria sociedade. A ordem vigente mantinha um sistema de atendimento em saúde pública distorcido, excludente e burocrático que somente veio a se parecer com algo mais universal e socializante com a 8ª Conferência Nacional de Saúde e o seu filhote, o SUDS (hoje SUS). A classe média crescente, órfã de um atendimento em saúde diferenciado, sem filas e com qualidade superior, enxergava nos planos de saúde da época um meio de, através de uma contrapartida razoável dos seus orçamentos, exercer seu direito de ter um padrão diferenciado de atenção à saúde.

Naquele momento (estamos falando na década de 70 até meados da década de 80 do século passado), os custos envolvidos na cadeia produtiva em saúde eram muito baixos em relação aos custos atuais, assim como os insumos voltados para tecnologias diagnósticas e terapêuticas estavam apenas iniciando seus primeiros passos rumo à explosão de inovações disponíveis a partir dos anos 90, e seus consequentes custos cumulativos. Para os padrões da época, um salário pago por uma operadora de planos de saúde, ou mesmo os valores descritos em suas tabelas de procedimentos para pagamento de serviços, tais como as consultas, eram bastante atraentes para os médicos.

No caminho inverso, os profissionais dos serviços públicos tiveram um achatamento sem precedentes em seus vencimentos, na esfera federal e estadual. Com a municipalização, corolário básico do SUDS/SUS, os cargos de gestão ficaram por definição a serem constituídos e remunerados de acordo com cada prefeitura dentro de um planejamento individual, num mosaico de valores e formas de agregação confusa, pouco clara, não regulada, e que até hoje persiste.

A transferência de responsabilidades na assistência à saúde, tirando gradativamente esse encargo do plano de federal, ficou cada vez mais evidente nos governos que se seguiram à época da ditadura, provocando um distanciamento cada vez maior entre uma obrigação constitucional de prover um serviço universal e de boa qualidade, e os orçamentos minguados para o que deveria ser feito. Esses mesmos orçamentos algumas vezes nunca eram aplicados em sua totalidade, em outras vezes aplicados de forma inadequada por incapacidade gerencial ou, para ficar num vocabulário mais moderninho, seguiam os “maus caminhos”. Ainda hoje o governo federal se esquiva de assumir seus compromissos orçamentários (lembrem-se da discussão acerca da emenda 29), deixando aos estados e municípios o ônus de serem obrigados a manter seus gastos determinados por lei sem poderem contar com a contrapartida da União na sua plenitude.

O ambiente para a disseminação das empresas que comercializavam planos de saúde nunca esteve mais propício nessa época, fazendo crescer empresas sérias e empresas oportunistas, que lesaram muita gente inocente. E em função de uma terrível sopa de letrinhas, em que cada empresa ditava suas regras de exclusão e de transferência de custos para as mensalidades de usuário, surgiu a lei 9656 de 1998 para regulamentar a atuação dos Planos de Saúde, seguida da criação da ANS – Agência Nacional de Saúde, nascida com a função primordial de tentar criar a interface apropriada nas relações entre usuários de planos de saúde e as operadoras que vendiam os tais planos. Até mesmo a ideologia neo-liberal da época, trabalhando na criação de um estado mínimo, teve que se render a uma certa regulaçãozinha devido à pressão popular e política da época.

Ocorre que de lá para cá muita coisa mudou: mudou a pirâmide populacional do país, que passou a contar com indivíduos cada vez mais velhos (e, consequentemente, mais propensos a desenvolver doenças, principalmente as doenças ditas da modernidade, crônicas e caras). Mudou também o perfil da indústria de insumos e tecnologias em saúde, a partir de inovações (muitas delas de eficácia duvidosa) rapidamente absorvidas pelos usuários, seus médicos ou hospitais prestadores de serviço, sempre sob a justificativa de agregar valor à saúde das pessoas. Com o sucateamento dos serviços públicos, mudou também o padrão de prestação de serviços em saúde, que passou a contar com estruturas que privilegiavam cada vez mais a complexidade do tratamento em detrimento da prevenção de doenças, numa indisfarçada maneira de auferir lucros maiores num mercado cada vez competitivo, aproveitando a fragilidade das estruturas de planejamento nas ações de prevenção de doenças e gestão pública adequada. Todas essas mudanças elevaram de forma exponencial os custos de toda a cadeia produtiva no setor, fazendo com que as operadoras de planos de saúde passassem a ser obrigadas a ter maior controle em seus gastos e maior atenção no comportamento de usuários e prestadores.

Desde então inúmeras estratégias de contenção de custos por parte das operadoras de planos de saúde têm sido tentadas na expectativa de reverter esse cenário adverso. Com índices de sinistralidade bem próximos da faixa de inoperabilidade, não havia outra forma de um negócio como esse sobreviver sem que algo não pudesse ser feito. Sim, quando falo em negócio, é negócio mesmo. É uma empresa, com formas de constituição e estatuto social diferentes entre si (seguros-saúde, auto-gestão, cooperativas, filantropias e medicina de grupo), mas sempre negócios, ou seja, sua existência está condicionada a um elemento fundamental que parece estar sempre oculto: necessitam dar lucro para sobreviverem enquanto organizações e precisam dar os retornos financeiros esperados aos seus sócios-investidores.

Não vou me estender acerca das várias formas utilizadas para o alcance desse objetivo, mas uma forma em especial nos remete ao tema central dessa conversa: os valores pagos pelo trabalho ou ato médico sofreram (e ainda sofrem) um processo progressivo de desvalorização tão grande e inconcebível que quase se paga para trabalhar hoje nos consultórios e hospitais que atendem usuários dessas empresas.

Como já foi amplamente demonstrado através de incontáveis estudos, os reajustes percentuais das operadoras aos usuários sempre esteve bem acima daqueles repassados para pagamento de honorários médicos, principalmente consultas, utilizado como procedimento-âncora nas reivindicações. Na condição de já ter convivido por um tempo bem grande nas entranhas de grandes operadoras, é nítido que os valores apresentados pelas faturas hospitalares, principalmente de hospitais de alta complexidade, têm um papel fundamental na prioridade da utilização do mísero dinheirinho que deveria tornar os honorários mais atraentes. Não é para menos. É consenso geral de que as contas hospitalares representam a grande chaga na contabilidade das empresas, por onde escoa a maior parte daquilo que é arrecadado.

Mas não é tão somente isso. No atual estado de coisas, para que negociar com uma classe que por trás de um discurso de unidade apresenta inúmeras dissensões? Se eu consigo minar qualquer movimento oferecendo meia dúzia de bananas e um pacote de balas Juquinha (lembram?) a mais nos valores da consulta para alguns grupelhos de pessoas, para que abrir negociação coletiva? E mais, se não existe nenhuma iniciativa legítima, orquestrada, que envolva toda a classe profissional, para que me preocupar com um gritinho aqui e outro acolá? E o que dizer daqueles que, privilegiando de forma acrítica somente a superutilização dos recursos terapêuticos e diagnósticos dos quais são proprietários para ganhos pessoais destroem qualquer sonho de atividade solidária para com seus pares, demais colegas de profissão? E quanto às organizações prestadoras de serviços em saúde, quase todas com orçamentos apertados, que se vêem na obrigação de compensar déficits numa fatura cheia de gordura a ser apresentada à fonte pagadora, no caso a operadora?

A relação dos médicos com as empresas de planos de saúde é uma relação viciada, obscena na maior parte das vezes e de insatisfação mútua. Não se pode conceber que numa consulta médica habitual um profissional faça uma abordagem técnica minimamente satisfatória em quinze minutos. Sim, quinze minutos, pois esse é o tempo estimado de consulta nos diversos consultórios, ambulatórios e demais locais de atendimento médico. Se paga pouco por consulta? Atendemos em escala. Quanto mais atendimentos, maior o rendimento. O que o paciente quer? Exame básico e check-up. Nada mais. O coitado do usuário finge que foi atendido e o profissional finge que atende...
É para isso que fomos treinados?

Não podemos deixar de reforçar a seguinte questão: somos todos empresas, no sentido de desejar obter vantagens competitivas. Os hospitais e similares são empresas prestadoras de serviço em grandes proporções. As operadoras de planos de saúde são empresas que necessitam maximizar seus lucros para justificar sua existência. O complexo médico-industrial reúne grandes empresas, que também não fogem à necessidade de vender cada vez mais para um público alvo com fome cada vez maior de consumo. E nós, médicos, somos empresas também, pois num sentido mais literal precisamos fazer com que nossa prestação de serviço gere um resultado financeiro ao final do mês que pague as nossas contas. A diferença está que, em nosso caso, temos a obrigação ética de entregar um valor para o paciente, temos uma obrigação de meio para prover o melhor estado de saúde para o paciente, temos o dever moral de sermos atenciosos, corteses e empenhados em fazer o melhor dentro da melhor técnica e arte para o qual fomos treinados..... Mas, francamente, isso é que acontece, de fato?

O dilema entre médicos e operadoras não vai acabar nunca. As operadoras não vão jamais atender aos reclames da classe na proporção esperada. Não querem, por considerar que seria um passo inicial para levantar questionamentos futuros para outros procedimentos; e não podem, porque ao contrário do que arrotam na mídia, mal andam com as próprias pernas. A questão é ideológica: se eu sei as regras do jogo a mim desfavoráveis, se eu conheço as minhas minguadas perspectivas de ganho, se eu estou ciente da falência do sistema, e ainda assim aceito entrar como prestador de serviço, então nada há o que reclamar. Muito mais elegante e honesto procurar outros meios de ganhar a vida se não concordar com o jogo.

O descredenciamento coletivo para o atendimento de consultas seria assim a melhor solução para operadoras, médicos e usuários. Médicos poderiam, enfim, retornar a uma relação absolutamente liberal no sentido de estabelecer seus preços, mais justos, e se ajustar à concorrência individualmente ou em grupos. Operadoras se livrariam de uma parcela significativa de usuários que fazem uma superutilização de seus serviços de forma desnecessária e onerosa. A compensação pelo ressarcimento de consultas aos usuários, com esses valores maiores, seria feita através do menor volume de consultas que seriam pagas ao profissional pelas vias normais. Por fim, pacientes poderiam procurar profissionais da sua escolha por reputação, conveniência ou preço, sabendo que teriam um atendimento com padrão de qualidade somente oferecido a um paciente particular. É tentador imaginar um cenário em que as relações entre os médicos e seus pacientes atendidos se elevem a um patamar de dignidade há muito esquecido.

O consolo é que se essa consciência coletiva não despertar para essa ou qualquer outra atitude, pelo menos ninguém vai morrer de fome (ou de comer) como nosso infeliz personagem do início do texto.

Ou vai?

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Alguns aspectos das parcerias entre médicos e hospitais

“As relações mais felizes são aquelas baseadas na mútua incompreensão.”


Os serviços de saúde em geral são realizados através da construção de relacionamentos, instituídos vertical ou horizontalmente, nos quais o bem comum da assistência ao paciente passa a ser o objetivo de todos os seus atores. No caso dos hospitais, é impossível dissociar o alcance de bons resultados para o tratamento das condições de saúde dos indivíduos se as mesmas não estiverem fortemente estabelecidas, seguindo uma razão exponencial: relações bem azeitadas se transformam em valor para o paciente numa proporção muito maior que a esperada. O paciente, ao ser atendido ou internado numa organização dessa natureza, passa a ser o centro de uma cadeia de ações interligadas, concomitantes ou seqüenciais, às quais mais modernamente nos acostumamos a chamar de processos, herdando a terminologia das demais organizações. Como exemplo, um indivíduo que vai ser submetido a um tratamento dentro do hospital interage direta ou indiretamente com os médicos que lhe assistem, com a equipe de enfermagem que lhe dá suporte, com outros profissionais que eventualmente participem do atendimento, da farmácia que dispensa as medicações, do laboratório e setor de radiologia que fazem os exames, do serviço de hotelaria e manutenção que lhe provêm a melhor comodidade e funcionalidade durante a sua permanência, da copa que lhe envia suas refeições e por aí segue a lista.

Esse mosaico de ações confere aos serviços de saúde em geral, e em particular aos hospitais, características que, juntamente com outras tantas peculiaridades, os tornam organizações diferentes e repletas de desafios para os administradores. Seria de se perguntar o porquê da existência dessa sincronia, algumas vezes nem tão síncronas assim, ser como de fato é. Não é uma resposta muito fácil, mas devemos levar em conta que a consolidação do modelo hospitalar de assistência (na forma mais modernamente concebida, ou seja, a partir do século XVIII), vem evoluindo ao longo do tempo na medida do aumento da percepção de necessidades dos usuários coalhada de interesses diversos, sejam eles de natureza estrutural, tecnológica ou de perfil assistencial. E a evolução não para por aí: nunca antes se discutiu tanto o papel dos serviços de saúde no fornecimento do seu produto final para o paciente. Inovações, teorias e novos modelos de fazer a coisa surgem com uma velocidade tão grande que nem conseguimos acompanhar em tempo real: quando travamos contato, outra já a superou. Em todos eles, palavras como equipe, sintonia, qualidade, multidisciplinaridade e liderança, para ficar apenas nesses exemplos, servem para dar a sustentação conceitual para aquilo que se convencionou chamar de “modelo de gestão hospitalar” em seu sentido mais genérico. Aqui se observa uma reciprocidade verdadeira, invisível, intrínseca, pulsátil e viva, e que faz com que toda a organização cresça ou não, na dependência da intensidade com que o corpo diretivo e de gestores perseguem os valores impressos no DNA da organização.

Mais recentemente, novas formas de arranjo organizacional tem procurado estabelecer uma relação um pouco mais próxima entre gestores e o Corpo Clínico dos hospitais. Uma delas, genericamente chamada “parceria”, parece povoar o imaginário daqueles que enxergam no trabalho médico uma parcela razoável de culpabilidade pelo mau desempenho da organização. Seja pelo genuíno despreparo de seus profissionais (e isso também é um sintoma de gestão ineficiente), seja para encobrir as fragilidades de uma gestão incapaz de atender às demandas da organização, é tentador implicar nos custos crescentes da prática médica (que realmente têm um custo elevado em muitos casos) a culpa por uma conta que não fecha.

Através de inúmeras formas, explícitas ou não, a maioria travestida de oportunidade única, as tais parcerias oferecem contrapartidas (a maioria em dinheiro) em troca a uma obediência a certas linhas de conduta que podem vir a desvirtuar uma boa prática médica.  

Toda generalização é perigosa, então mais uma vez convém destacar que algumas organizações parecem ter amadurecido a tal ponto que relacionamentos dessa natureza parecem trazer de fato benefícios mútuos, muitos deles através de incentivos não necessariamente na forma de dinheiro. Mas as propostas oferecidas pela imensa maioria dos hospitais e demais organizações, sob a justificativa de trazer vantagens mútuas, não passa de um embuste grotesco e de mau gosto. É feio para quem formula, que na imensa maioria das vezes não tem o conhecimento de causa suficiente para alcançar todas as dimensões de uma prática como é a prática médica, e muito mais feio para quem se sujeita ao mesmo. Mas os gestores da alta administração ou os membros do corpo diretivo/societário ainda não parecem ter se convencido com as experiências alheias.

Não tenho a pretensão de listar as incontáveis formas de acordo que podem criados. Mas ao longo desses anos de observação, leituras e relatos de caso, ao menos numa coisa me sinto confortável em afirmar: nenhuma “parceria” nesse contexto sobreviveu tempo suficiente para servir de modelo para a melhoria da assistência ou do desempenho organizacional, pelo menos nesse país. Curiosamente, no país aonde a maioria dessas propostas são criadas, desenvolvidas e vendidas como solução na forma de teses, cursos de MBA e livros, também não. Porter, Christensen, Bohmer e outros tantos da Harvard Business School, a maioria não médicos, têm se debruçado na geração de ideias e arranjos que agreguem valor cada vez maior ao paciente, dentro da perspectiva de que a adoção de algumas práticas semelhantes teriam invariavelmente repercussões inexoráveis e de maneira positiva no orçamento das organizações e dos países. E não são poucas as propostas, todas, com uma ou outra exceção, bastante atraentes por sinal.

O Corpo Clínico dos hospitais não está de maneira alguma dissociado dessas reflexões. Ao contrário. Corpo Clínico eficiente, efetivo e eficaz não se traduz em muitos médicos, nem em médicos renomados, de todas as especialidades. Que o digam os hospitais que vem obtendo níveis de excelência em prestação de serviços médicos com a implantação do modelo hospitalista.  Grosso modo, boa parte do sucesso da gestão hospitalar no seu sentido mais amplo deve ter como pilar uma assistência à saúde que seja exercida por profissionais que disponham de todos os bons atributos que se espera para o bom desempenho num negócio tão peculiar, acrescido de outro poucas vezes levado em conta: bom senso. É esse atributo que faz com que, dentro da autonomia que a legislação e a atividade-fim intrínseca, secularmente conferida à profissão, ele desenvolva sua atividade de forma liberal, porém solidária; procurando a melhor relação custo x benefício nas suas ações, mas com o discernimento de usar alternativas mais caras se realmente se justificarem; obediente às normas básicas de conduta e atividade profissional de cada organização, e, finalmente, recebendo os incentivos adequados, de tal maneira que se sinta estimulado a manter seu nível de atenção sempre de acordo com as aspirações da organização.

Trocando em miúdos, profissionais bem selecionados, e com os incentivos certos e justos, não se sentem atraídos para acordos diferenciados que privilegiem, teoricamente, ambos os lados. Como não existe relação comercial simétrica perfeita, médicos assim seduzidos logo percebem que os pretensos incentivos não são exatamente aquilo que imaginava. Ou, para consegui-los, talvez tenham que se sujeitar a determinadas formas de agir que podem ir frontalmente às suas noções de ética, justiça e solidariedade.

Que me perdoem os incontáveis entusiastas dessa ideia de parcerias. Mas já houve tempo de observação suficientemente grande para que se chegasse à conclusão de que isso não funciona para a maioria das organizações. Não que em teoria não seja exequível, pelo contrário. Mas, não bastassem as incontáveis diferenças desse negócio para outros, cada organização tem suas particularidades, missão, valores e prioridades. Para muitas, o valor para o paciente é uma preocupação real. Para tantas outras, nem tanto. Outros valores lhe antecedem. E para completar, tal qual o ser humano em geral, nós, médicos, frequentemente somos atraídos pela perspectiva de vantagens adicionais que extrapolam o acordado, o aceitável e o ético. Ou simplesmente deixamos outro agente interferir nessa sagrada relação que comporta o binômio médico x paciente, e mais ninguém. Que o digam aqueles que prestam serviços intermediados por operadoras de planos de saúde e seu comportamento subserviente. Mas isso é assunto para outra conversa.

Médicos desconfiam desse tipo de parceria. Médicos são talhados para serem médicos, nada mais. Até que os currículos das escolas médicas incorporem noções de economia da saúde e gestão, assim será por muito tempo. Gestores não devem ficar traçando estratégias para atrair o médico para o seu negócio, pintando um cenário de perspectivas que levem à falsa sensação de que o médico será um colaborador diferenciado ou um dos donos do negócio. Que obterá vantagens que não existem. O médico não será dono de nada, apenas de sua arte e conhecimento.  As queixas de que médicos não são parceiros são atribuídas ao despreparo do médico para colaborar com a organização dentro da perspectiva do gestor. Jamais a organização vai reformular seu agir partido do pressuposto de que talvez ela esteja equivocada.

Talvez esteja chegando a hora de haver uma reflexão acerca desse tema com maior profundidade. Em cada encontro ou evento que participo, escuto nos diversos bate-papos que o Corpo Clínico não colabora, que o médico não é parceiro, que não tem noção do que consome, que não se prende a regras, que reclama muito. Não é chegada a hora de pensar outra estratégia? Buscar no mercado outro gestor, talvez? Capacitar de forma adequada quem está à frente do negócio ou pedir ajuda a quem tem experiência também ajudam. Ser qualificado para exercer um cargo de gestão pode significar ter a habilidade e convencimento necessário para buscar soluções criativas e alinhadas com a realidade de cada organização, desde seu presidente até os níveis de gerência, sem esquecer o gestor médico. Mas reclamar definitivamente não vai resolver. A cabeça do médico, certo ou errado, é diferente da cabeça de quem não é.

A sugestão que deixo é a seguinte: médicos serão médicos sempre, e, salvo exceções, tenderão a não aderir de imediato a qualquer movimento que tente seduzi-lo ou fidelizá-lo na forma de parcerias de natureza indisfarçadamente comercial. Se a parceria surgir, que seja naturalmente, como são as relações intra-organizacionais que se desenvolveram através dos anos, citadas nos início desse texto. O médico não coloca todas as suas fichas num mesmo lugar. Nunca. Não esperem que tenham o mesmo comportamento daqueles que têm um emprego formal.

Do contrário, as conversas nos eventos vão continuar sendo um muro de lamentações sem fim.