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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O que seu médico não diria a você

Na edição brasileira de fevereiro da revista “Seleções”, o chamado de capa fazia referência sobre “45 Segredos que os Cirurgiões não diriam a você”. Na matéria, alguns fatos corriqueiros e outros mais complexos, principalmente porque, a meu ver, agravam o abismo existente entre o paciente e o médico no que tange à igualdade de meios para uma discussão equilibrada acerca das doenças e seus múltiplos aspectos.

A assimetria de informação, tão própria do setor saúde, tem o seu ápice naquelas circunstâncias em que o paciente submete seu corpo inteiramente aos dons do profissional, que procederá da forma que julgar naquele momento a mais indicada para a resolução de um problema que ora se apresenta, seja de forma invasiva ou não. E o Setor de Emergência é o mais visível para as mídias e para a população em geral, uma verdadeira salada de situações que refletem de forma boa ou má a agudeza desse cenário.

A sala de cirurgia é outro local especial, na medida em que a integridade do corpo do paciente, do nosso corpo, é violada pelos instrumentos de trabalho de um profissional que em uma infinidade de vezes nunca tivemos a oportunidade de conhecer pessoalmente, e muito menos ainda no exercício de seu labor.

E das Unidades de Terapia Intensiva então, que dizer? Sob efeito de drogas sedativas e analgésicas potentes, e muitas vezes com dispositivos acoplados que impedem a comunicação e movimentação com o meio, o paciente pode ser vítima do próprio corpo, um animal de experimentação para tentativas de restabelecimento de funções, que podem ou não lograr êxito a depender da eficácia das ações que sobre ele recaem, e do desempenho daqueles que estão por detrás delas.

Todo esse preâmbulo tem por finalidade adicionar um comentário ao já desgastado noticiário (e imaginário) que cerca a prisão da médica chefe da UTI Geral do Hospital Evangélico de Curitiba. Nesse episódio, considero importante a recomendação de que não retrocedamos mais no árduo trabalho que os intensivistas em geral desenvolvem no sentido de romper mitos e paradigmas acerca dos propósitos da medicina intensiva. Dentro das UTI’s não se matam pessoas. Dentro das UTI’s não se expõem pacientes a riscos desnecessários, muito menos a sofrimentos físicos ou psicológicos intencionalmente. E dentro das UTI’s, ninguém, repito, ninguém trabalha sozinho.

Atitudes circenses, grosseiras ou deselegantes de qualquer profissional de saúde não são muito diferentes de outros campos de atuação. A grande diferença é que seu paciente/cliente encontra-se num momento de fragilidade enorme e cheio de expectativas. Afinal, dificilmente alguém vai ao hospital por vontade própria ou por prazer. Daí a responsabilidade adicional do profissional que trabalha numa UTI, por exemplo, de ser mais atencioso e equilibrado na hora de se apresentar ou de se relacionar interna ou externamente.

Mas não confundamos as coisas. Experiência, carisma e conhecimento técnico continuam sendo tão importante quanto ou até mais que os anteriores. E, conforme muitos acreditam, é o que efetivamente fará a diferença no desfecho clínico dos pacientes aos seus cuidados.

Você, gestor hospitalar, trate de ficar atento às suas lideranças. Por mais bem qualificadas que elas sejam do ponto de vista de formação e experiência, se não forem identificados nelas elementos em seu perfil que contemplem a capacidade de trabalhar em grupo, a preocupação com a “moral” e a imagem do setor, e por fim, uma postura apropriada para o exercício de tal liderança, é melhor que se apresse em corrigir essas distorções.

Nesse caso recente, quem ficou mal na fita foi a organização e seus gestores. Porque a médica em questão tinha um superior hierárquico, que a conhecia bem. E assim é que todo o trabalho sério que acompanha a rotina das UTI’s, na conquista da confiança de pacientes e familiares, dá um passo para trás. Porque você, gestor, não fez o seu trabalho.

Vamos refletir um pouco antes de fazermos nosso julgamento, e, principalmente, vamos aprender com o fato. Seja ele fundamentado ou não.

À luz dos princípios que conduzem as modernas organizações hospitalares, não há mais espaço para segredos ou omissões. Médico bom é médico que não tem medo de mostrar como trabalha.

Nem de contar o que faz.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Vulgarizando palavras e conceitos em saúde

Desafio é um termo utilizado ao longo da história do homem para designar momentos em que algo muito importante, difícil ou que envolvesse riscos precisava ser feito, seja para uma finalidade boa ou ruim. Os desafios poderiam lograr êxito, sendo aí listados diversos fatores que poderiam contribuir para isso, tais quais estratégias adequadas e no momento certo, vontade de fazer acontecer, estímulos através de princípios morais, éticos e religiosos, dentre outros. O fato é que a humanidade sempre esteve diante de desafios das mais diversas naturezas, em grande parte das vezes na busca de um ambiente melhor para ser vivido.
 
Num mundo com tantas transformações instantâneas, globalizado e com os modernos sistemas de comunicação e interoperabilidade alcançando num espaço de horas inovações tecnológicas que levariam séculos pelos nossos ancestrais, o termo vem assumindo proporções quase que banais quando se trata de expressar certos avanços, ou a falta deles, no bojo dos direitos fundamentais dos indivíduos.
 
No universo das conquistas mais básicas da cidadania entre os habitantes dos diversos países, tais como os serviços essenciais, na maioria dos regimes democráticos providos pelo Estado, falta-nos a coerência, o planejamento, a ética e a vontade política para que as condições sociais mínimas da maioria de nossa população sejam dignamente alcançadas.
 
Nessa linha estão os discursos proferidos em tom de aparente indignação a respeito das políticas de saúde e do mercado da saúde em si, para ficar apenas nesse exemplo.
 
Nossa forma de condução dos assuntos relacionados à saúde, tanto coletiva quanto suplementar, é esquizofrênica: implantamos um modelo de saúde pública altamente socializante, inspirada em modelos europeus tradicionalmente amadurecidos em seus respectivos sistemas; ao mesmo tempo em que seguimos na prática cotidiana a cartilha neo-liberal ditada pelo poder econômico do Grande Irmão do norte, os Estados Unidos da América, de transferência de responsabilidades para a iniciativa privada e um Estado mínimo.
 
Duvida? Então faça um pequeno exercício de observação. De uma forma muito resumida, existem seis pilares de sustentação do nosso sistema de saúde, em geral:
 
- Usuários (incluindo aí aqueles que se utilizam do SUS – todos nós- e aqueles que dispõem de algum plano de saúde para mitigar suas dificuldades de acesso);
- Prestadores (hospitais, clínicas, consultórios, laboratórios, centros de reabilitação, entes públicos);
- Operadoras de Planos de Saúde (cooperativas de serviço médico, autogestões, seguros-saúde e medicina de grupo);
- Governos em geral, nas suas esferas federais, estaduais e municipais;
- Profissionais de saúde em seus mais diversos níveis (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, etc..);
- Complexo médico-industrial da saúde (empreiteiras, indústrias de insumos, drogas, tecnologias e equipamentos para a saúde).
 
Pergunto a você, leitor, qual desses segmentos pode se mostrar para nós exibindo alguma pujança? Qual deles você pode identificar como satisfeito nesse emaranhado de interesses, na atual conjuntura? Alguns podem arriscar que o último elemento, o complexo médico-industrial da saúde, pode ser, talvez, o único a se beneficiar dessa aparente lambança em que nosso sistema está assentado.
 
O que me incomoda profundamente é a repetição a cada evento, a cada discurso de posse de alguma coisa, a cada ata de reunião, a cada reportagem veiculada por alguma mídia, que o desafio é isso, que o desafio é fazer aquilo, que o desafio tem que ser vencido e por aí vai, numa combinação de frases totalmente sem sentido para aqueles que, pragmáticos como eu e você, aguardamos propostas concretas que nos mostrem caminhos, e não se restrinjam a limitar suas observações a obviedades históricas. Nosso sistema está ruim? Todos sabem. O SUS precisa de financiamento ou de gestão? Horas de discussão asséptica e nenhuma conclusão. O mercado de saúde suplementar encontrará saídas que possam vencer a falácia do crescimento econômico que não estamos experimentando, a despeito da propaganda oficial?
 
Fugindo um pouco à proposta dos temas que habitualmente escrevo, conclamo a todos a refletirem a respeito desse enigma: por que somos tão brilhantes em apontar problemas e fazer diagnósticos, e tão ineptos em oferecer soluções?
 
Por favor, parem de dizer que existem desafios. Cansou.