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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O Dia do paciente no lugar do Dia do Médico

O dia 18 de outubro foi escolhido para homenagear o médico em vários países desde o século XV. A escolha da data de forma tão unânime deve-se ao fato de ser esta data também dedicada a Lucas, médico em Antioquia, Turquia, mais ou menos na mesma época em que Jesus Cristo vagou pela Terra. Não foi um apóstolo, mas sua bondade e devoção aos pobres o tornaram figura especial para os católicos do mundo todo, chegando à condição de Santo dentro da igreja.

Desde aquela época e nas épocas que se seguiram até a modernidade, o trabalho dos médicos sempre foi muito respeitado, tal como nos dias atuais. Obras como “Médicos de homens e de almas”, de Taylor Caldwell; “O Físico” e “Xamã”, ambos de Noah Gordon; “A obra em negro” de Marguerite Yourcenar; e “A cidadela” de A.J. Cronin , são algumas que tive o prazer de ler e recomendar dentre tantas outras. Nestas, os médicos nos são apresentados copmo figuras repletas de intensidade, abnegação, bondade e dedicação à sua causa, ao seu mister, ao seu destino, e principalmente, ao seu paciente. Sumarizando, apresentam-nos figuras repletas de humanidade em seu sentido mais profundo, transitando entre a opulência e a miséria absoluta, entre a virtude e a corrupção, entre o frívolo e a necessidade absoluta.

Nossos antecessores guardiões do juramento de Hipócrates viviam conflitos não muito diferentes do que vivemos. O ser humano é o que é desde a sua criação. Minha questão central está na concepção de mundo que temos através da nossa profissão. Na forma como enxergarmos os aspectos mais relevantes de nossa prática através dos valores que deveriam se manter eternos e imemoriais.

Ser médico hoje em dia é diferente do que o eram nossos colegas no passado?

Estava lendo uma pesquisa encomendada pela Associação Paulista de Medicina acerca da satisfação dos usuários e de médicos com planos de saúde no Brasil. A íntegra da mesma pode ser acessada em http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=24250:oito-em-cada-10-pacientes-tem-problemas-com-planos-de-saude&catid=3. Nessa pesquisa, são colocadas algumas conclusões, dentre as quais a que diz que 79% dos usuários que recorreram aos planos de saúde nos últimos 24 meses relataram problemas com os mesmos, de diversas naturezas. E que para 56% deles, os planos pressionam os médicos para reduzir o tempo de internação dos pacientes. Além disso, 60% dos usuários concordam que os planos pagam valores baixos por consultas ou procedimentos aos profissionais. Como se vê, a percepção do paciente que paga um plano de saúde não é muito diferente na essência quando comparada à visão do próprio profissional para com este intermediador de serviços de saúde comumente chamado de convênio.

Existem elementos em demasia para que conclusões simplistas sejam feitas acerca desse tema, mas lá no fundo, lá no fundo mesmo, a relação entre médicos e planos de saúde tem algo de patológico e hipócrita: trabalha-se por volume em detrimento da qualidade, fala-se mal dos convênios, mas não se vive sem eles; culpa-se a conjuntura e o “como deixamos chegar a este ponto”, mas ninguém dá um passo objetivo no sentido de quebrar essa condição de subserviência.

Pobre de nós!  De forma unilateral e covarde aderimos a movimentos oficiais de paralisação ao atendimento de usuários que tanto dependem deste atendimento. E muitas vezes o movimento é não oficial: segregando o usuário de plano de saúde na sua agenda, dedicando menos tempo e atenção ao mesmo, e, para piorar, cobrando valores adicionais em cima dos honorários previstos, sempre com a justificativa de que são mal remunerados. Dentro dos hospitais a assistência também não foge muito desta tônica: pacientes internados são conduzidos de forma apressada e menos trabalhosa possível para o profissional. Seja em função da sobrecarga de trabalho ou pura e simplesmente devido a uma visão distorcida do que vem a ser a condução de um paciente internado, os problemas ou são resolvidos da forma mais impessoal, cara e demorada, ou simplesmente não são resolvidos, engrossando as estatísticas de casos que poderiam ter um bom desfecho, mas não o foram. E, lamentavelmente, nenhum selo de Qualidade consegue reverter essa realidade se medidas duras e muitas vezes antipáticas não forem tomadas pelas nossas lideranças, cada vez mais carentes de carisma.

Afinal, para quem é direcionada nossa prática?

Penalizar o paciente é sempre mais fácil. E através de atitudes dessa natureza vamos mantendo as coisas sem as mudanças que, no escuro de nosso quarto, pensamos ser as mais corretas.
Uma manifestação do distanciamento entre o que deveria ser e não é pode ser ilustrada por manifestações de pseudo-preocupação com o paciente, que de forma tosca buscam o reconhecimento de enunciados filosóficos tão estéreis quanto a capacidade de autocrítica e visão de todo de uma parcela significativa de quem o preconiza, como o foi recentemente a movimentação em torno do Ato Médico. Para um monte de gente foi um passo tão mal disfarçado de defesa de território, travestido de urgência legal, que não valeu a pena comentar. Quanto se gastou de material publicitário, encontros com políticos e lobistas, impressos e correspondências, tempo de trabalho e tantas outras coisas que cercam uma proposta de abrangência nacional? E o que o paciente tem a ver com tudo isso? O que ele ganha? E mais: depois da poeira baixar, o que mudou com a não aprovação do documento?

A medicina é única, milenar, fortemente assentada sobre uma construção histórica e paradigmática, não tem necessidade de definição de campos de atuação nem de reflexões de ordem pragmática. Ela é o que é, e ponto. Sempre foi assim e sempre o será.  Na prática, absolutamente nada mudou no dia a dia dos profissionais, das pessoas, das organizações. Os demais profissionais? Cada um tem o seu lugar e seus limites, sempre tiveram. E as pequenas digressões polêmicas de parte a parte são insignificantes demais para merecerem tanta atenção.  E um fato de ordem prática: o que muda na atenção e cuidado dos pacientes? Se não muda nada, então por que gastamos tanto tempo nessas discussões?

Em outro cenário, um exército de agentes com interesses distintos a todo o momento aproveita para desqualificar o SUS. Justo agora em que hospitais privados mais que nunca buscam o SUS como alternativa mais viável para a sustentabilidade de seu negócio. Na pesquisa acima mencionada, 30% dos usuários de planos de saúde no estado de São Paulo recorrem ao SUS para atendimento de suas demandas. A grande maioria certamente desconhece, assim como muitos pseudo-entendidos do assunto, que quando o Zé Gotinha aparece vacinando o filho do empresário, do político e do avesso às políticas públicas de saúde, é o SUS que está por trás de todo aquele investimento de abrangência nacional. E o SUS é a única alternativa para os 75% da população que não podem pagar um plano de saúde.

Minha percepção é que ser médico hoje em dia é muito mais simples do que se possa imaginar. Arrisco dizer que basta ser aquilo que desde o princípio dos tempos foi construído como qualificação basilar: respeito profundo pelo ser humano aos seus cuidados, dedicando a ele sua atenção e toda a sua capacidade profissional.

Complicado mesmo é ser paciente em nosso país, em que tanto nas filas do SUS quanto nos consultórios com revista Caras na recepção são tratados de forma tantas vezes desrespeitosa.

Dia 18 de outubro não quero nenhuma homenagem especial. Quero homenagear o paciente. Nós não vivemos um momento complicado. Quem vive um momento complicado, como sempre, é esse povo que, não bastassem as vicissitudes do cotidiano, ainda precisam encarar um dilema que não é dele.

Nesse dia, quero ser só médico.

domingo, 8 de setembro de 2013

A falácia da redução dos leitos do SUS

Segundo o site Wikipédia, dentro do contexto da pesquisa científica o termo “falácia” está em íntima relação com o conceito de “evidência anedótica”, ambos em contraposição à prática, seja ela qual for, baseada em evidências científicas e ao método científico em geral.
A evidência anedótica, e por extensão a falácia, possuem algumas propriedades que o site bem define:
- informação que não é baseada em fatos ou estudo cuidadoso;
- observações ou estudos não científicos, que não contém provas, mas podem ser objetos de esforços de pesquisa;
- descrições ou observações de observadores geralmente não científicos;
- observações ou indicações casuais, ao invés de análise rigorosa ou científica;
- informação transmitida boca-a-boca, mas não cientificamente documentada.
Todos nós estamos sujeitos a sermos vítimas da falácia em algum momento da vida. Quantos de nós não sofremos alguma forma de influência, em diferentes graus de profundidade, com a falácia de que o transporte aéreo mata mais que qualquer outro? Bem informados que somos, podemos refutar essa afirmação com dados estatísticos disponíveis para qualquer um, ou seja, através do método científico (mesmo que não formal). Mas quando ocorre um acidente aéreo de grandes proporções, não incomoda um pouquinho? Alguns de nós não deixamos para depois aquela viagem que iríamos fazer por aquela companhia aérea? Ou mesmo pensamos em trocar de companhia? Ou mudamos de planos e optamos por ir de carro ou ônibus, nos casos mais extremos?
Muito bem. Na semana que passou recebi, assim como muitos de vocês, uma enxurrada de notícias alardeando através de vários meios a conclusão de um levantamento feito pelo Conselho Federal de Medicina acerca da redução dos leitos hospitalares disponibilizados para usuários do Sistema Único de Saúde – SUS, baseado em dados divulgados pelo Ministério da Saúde. A constatação numérica fez aflorar em dirigentes, políticos e em muitos que torcem contra “tudo isso que está aí” declarações nas quais ratificam sua postura e das entidades das quais são porta-vozes de que o sub-financiamento da saúde está em níveis inaceitáveis, que o SUS não consegue manter um padrão mínimo de atendimento digno aos seus usuários, que a população brasileira precisa rever sua política de saúde, que as pessoas estão morrendo nas filas para internação, isso tudo, é claro, com aquelas imagens de arquivo chocantes mostrando emergências lotadas e velhinhos caquéticos entregues à própria sorte nos Prontos-Socorros (aliás, já reparam que as imagens são sempre as mesmas?).
Na esteira das inúmeras críticas às ações mais recentes envolvendo a contratação de profissionais estrangeiros para trabalharem nos locais aonde brasileiros não querem ir, essa notícia adicional foi um prato cheio para os críticos do sistema.
Convenhamos. O país encontra-se muito distante de uma situação sanitária ideal, a despeito de corolários inteligentes e socializantes do SUS. Mas os pseudo-entendidos do assunto se esqueceram de uma regrinha básica que temos que seguir quando nos utilizamos de veículos de comunicação de massa para expressar opiniões ou traçar análises pretensamente técnicas: analisar notícias e fatos muitas vezes requer conhecimento do assunto, na forma de coleta de informações e pesquisa acadêmica. Quando se abre espaço para análises rasteiras e comezinhas, algumas vezes de cunho corporativo e muitas vezes em função de uma necessidade angustiante de ser notado, um leitor mais atento às vezes sente pena de tanta desinformação (ou má fé).
Pessoas comuns podem se sentir convencidas a acreditar que o anunciado denota uma incapacidade gerencial e de falta de recursos que deprecia ainda mais nossas políticas de saúde e traz inevitavelmente prejuízos adicionais ao nosso SUS. Temos sim problemas de sub-financiamento e, principalmente, de gestão. Mas incontáveis indicadores, que não cabem nesse texto sua apresentação e discussão, confirmam uma rota ascendente de investimentos e de qualificação de pessoal na rede pública de saúde. E isso tem relação direta com os dados relacionados aos leitos hospitalares, parte importante (porém em escala hierárquica inferior à atenção básica – alguém duvida?) do mosaico de nossas políticas de saúde pública.
Chamou-me muito a atenção a ênfase dada aos leitos psiquiátricos, aparentemente o grande vilão da queda de oferta de leitos nesse período recentemente analisado. Dos 13.000 leitos desativados pelo SUS de janeiro de 2010 até os dias atuais, 7.449 destes (ou seja, 57,3%) foram leitos antes destinados à massa de alienados, que podem representar uma parcela de até 20% da população, segundo a maioria dos estudiosos. Dentre esses, os levantamentos mostram que em torno de 3% estão relacionados aos transtornos mentais severos e persistentes, 6% aos transtornos psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e drogas e 11% para aqueles que requerem atendimento contínuo ou eventual. As internações psiquiátricas representam, segundo dados de 2005 do Ministério da Saúde, 2,7% das internações no país, com uma tendência de queda progressiva (80% em 10 anos). A principal explicação para o declínio decorre do fato do Brasil, junto com a maioria dos países mais sérios, terem adotado novas diretrizes no diagnóstico, abordagem e tratamento dos pacientes com distúrbios psiquiátricos, privilegiando o acompanhamento ambulatorial e não institucionalizado destes pacientes.
Tais diretrizes estão bem detalhadas no documento “Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil” de 2005 (que pode ser visto na íntegra em  http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio15_anos_caracas.pdf), que estabeleceu paradigmas bastante diferentes dos vigentes até então no tratamento dos doentes psiquiátricos. Em suma, “A internação psiquiátrica é atualmente indicada para casos graves quando foram esgotados os recursos extra-hospitalares para o tratamento ou manejo do problema, sendo proibida a internação de pessoas em instituições com características asilares. São considerados casos graves situações em que há presença de transtorno mental com, no mínimo, uma das seguintes condições: risco de auto-agressão, risco de heteroagressão, risco de agressão à ordem pública, risco de exposição social, incapacidade grave de autocuidados” , segundo Cardoso e Galera (Acta Paul Enferm 2009;22(6):733-40).
Mas para que tanto se dizer das internações psiquiátricas? Justamente para mostrar que a sua redução foi deliberadamente promovida em função da implantação de uma política nacional, validada internacionalmente, visando a melhor recuperação destes doentes.  Pronto, não precisamos avançar mais nesse assunto, ainda que algumas correntes preconizem a ampliação desses leitos, amparada por outros argumentos técnicos.
O fato é que em virtude de uma compreensão estreita do complexo bio-social do doente psiquiátrico no Brasil e no mundo, durante décadas os leitos para pacientes psiquiátricos foram ampliados na rede pública, a maioria estando em organizações privadas, através de convênios em sua imensa maioria suspeitos e desnecessários. A qualidade na assistência, salvo algumas exceções, era deplorável e cruel, na medida em que boa parte destes pacientes não podia, por força de sua condição de saúde, expressar com exatidão suas percepções.  De tal forma que para alguns empresários do setor a abertura de leitos psiquiátricos se tornou por muitos anos um negócio bastante lucrativo. Há farta documentação a esse respeito.
Todos aqueles que estão atentos sobre esse assunto de forma mínima sabem disso. Têm sido fechadas as torneiras desse duto perverso que mistura perpetuação da doença mental, assistência de péssima qualidade, infra-estrutura precária e negócios inescrupulosos.
Assim sendo, que bom que os leitos para essa finalidade deixaram de existir, não é mesmo? Mas, será que alguém atentou para esses dados antes de bradar a notícia? Ou, pior, ter autocrítica na hora de traçar um paralelo entre o fato e uma possível iniquidade do sistema de saúde?
Num contexto ainda mais amplo, denuncia-se a redução do número total de leitos como indicador de queda na assistência à saúde. Será? Não seria talvez uma acomodação entre a oferta detectada de forma mais realística, seguindo as variações epidemiológicas detectadas ao longo dos últimos anos e que moldam as nossas necessidades quanto ao consumo de bens de saúde, assim como o são no mundo inteiro? Por exemplo, ninguém comentou que houve um incremento na entrega de leitos de Terapia Intensiva para usuários do SUS, muitíssimos mais caros e dispendiosos aos orçamentos em geral: entre 2003 e 2010 foram criados ou credenciados em torno de 5.000 novos leitos (de 12617 para 17608 leitos, num investimento de aproximadamente 400 milhões de reais).
Além disso, passamos a tratar pacientes em casa com maior frequência através de Internação Domiciliar, destronando o mito de que lugar de doente é no hospital. Iniciativas de diversas secretarias municipais e estaduais de saúde nessa direção têm apontado uma redução significativa dos custos acompanhada de satisfação dos usuários. Crianças deixaram de ser internadas desnecessariamente, não justificando a permanência dos leitos disponíveis para aquela finalidade, em função de campanhas de vacinação mais exitosas e de melhora nos indicadores sanitários e nutricionais de uma parcela da população anteriormente desprovida de qualquer tipo de assistência.
Nossa taxa de crescimento vegetativo está esculpindo uma pirâmide populacional bem diferente daquela que aprendemos nos cursinhos pré-vestibulares há 30 anos. Será realmente necessário disponibilizar os leitos de obstetrícia naquela quantidade?
O leitor poderia se perguntar: se não há tanta necessidade de leitos e a sua redução se justifica, porque nos grandes centros os pacientes se aglomeram em torno de hospitais? De fato, nesses lugares há uma total desproporção entre a oferta e a demanda por leitos de internação, aí sim motivada por diversos fatores dentre os quais planejamento inadequado e ausência de políticas públicas mais eficientes na ação em níveis hierárquicos mais baixos, tais como a criação de equipes de Saúde de Família em número mais bem dimensionado, no direcionamento de pacientes para unidades básicas de saúde com capacidade resolutiva adequada para casos de menor complexidade (a iniciativa das UPA’s chega com muitíssimo atraso), na composição de um sistema de atendimento pré-hospitalar eficiente e resolutivo (como o é o SAMU), na falta de mecanismos de referência e contra-referência eficientes e na definição dos níveis de ação entre os entes prestadores, dentre outros fatores. Mas o cálculo do Ministério da Saúde, de onde as conclusões se inspiram, é feito sobre informações do total de leitos disponíveis em todo o país. Segundo Vecina e Malik, em torno de 40% dos leitos hospitalares no Brasil se pulverizam em hospitais com menos de 50 leitos, muitos dos quais construídos em momentos da vida do país em que a farra de vender serviços ao antigo Inamps através de convênios, dentro de uma percepção equivocada de se resolver os problemas de saúde da população através de mais hospitais, era prática comum. Ainda hoje, mais da metade dos leitos disponíveis para pacientes SUS estão situados em hospitais privados ou filantrópicos.
Não bastasse esse engano histórico, no imaginário popular das pessoas que residem nos municípios menores ainda é vigente a percepção de que hospitais são imprescindíveis quando se trata de assistência à saúde. Na cabeça dos políticos locais, incluindo aqueles que enxergam nisso mais uma oportunidade de obter vantagens políticas ou financeiras, a existência de um hospital é imprescindível para a sua ascensão. Promessas de que “se eleito for construirei um hospital para atender a população” soam muito sedutoras a não é raro encontra-la nos discursos eleitoreiros. Mas dada a incapacidade gerencial e operacional, a ausência de regras claras de financiamento pelo SUS, a impossibilidade de fixação de profissionais em número e qualificação minimamente adequada e ao superdimensionamento estrutural, essa estruturas tendem a ser de baixíssima capacidade resolutiva, acabando por se transformarem em unidades com taxas de ocupação muitíssimo aquém do necessário para a franca operacionalização. Ou seja, nas capitais e em cidades maiores carência de leitos e maior capacidade resolutiva. Fora desse cenário, desperdício e subutilização. Entretanto, para fins de cálculo, estes entram na composição deste indicador (para maiores informações acerca desse processo, recomendo a leitura de “Desempenho Hospitalar no Brasil”, de La Forgia e Couttolenc, Editora Singular, nos capítulos 2 e 3).
Para finalizar, uma pequena ressalva acerca da utilização do dado isolado “Leitos Hospitalares” como balizador de boa ou má assistência. Baseado em informações recolhidas em 2011, o site  CIA World Factbook fez um levantamento em escala mundial sobre a relação leitos hospitalares por 1000 habitantes, chegando a números interessantes. Segundo esse estudo (disponível em http://www.indexmundi.com/g/r.aspx?c=br&v=2227&l=pt), o Brasil encontra-se na 89ª posição (2,4 por 1000 hab.) de uma lista de 181 países, encabeçada pelo Japão (13,75 por 1000 hab.). O interessante é que os Estados Unidos da América, reconhecido como o país que mais investe em saúde quando se analisa o percentual do PIB aplicado nesse setor (em torno de 16,5%. Para efeito de comparação, Brasil 8,0% e Europa Ocidental em torno de 10,0%), ocupa uma vergonhosa 69ª posição (3,1 leitos por 1000 hab.), atrás inclusive de países reconhecidamente com menor vigor econômico, tais como Azerbaijão (7,93/1000 hab.), Cuba (olha ela aí de novo, com 5,9/1000 hab.), Nepal (5,0/1000 hab.) e Líbia (3,7/1000 hab.).
Como se vê de forma clara e inequívoca, a divulgação e interpretação de um dado devem e têm que ser feita dentro de um contexto. Sempre. Porém a impressão que se tem é que parece mais fácil falar de forma precipitada sem conhecimento de causa, ou, pior, com a não disfarçada vontade de enfraquecer quem se quer atacar à custa de informações fragmentadas ou incompletas. Meias-verdades.
Talvez lá no Azerbaijão, com seus 7,93 leitos por 1000 habitantes, não tenha tanta falácia.
Quem sabe?

domingo, 30 de junho de 2013

E se fosse a sua mãe?

Esse post ficaria melhor se fosse publicado no mês de maio, justamente aonde a mãe de todos é homenageada. Mas a intenção é não deixar de ser um tributo à Dra. Ligia Bahia, Vice-Presidente da ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Comunitária, uma das entidades que congrega boa parte das boas cabeças pensantes desse país.
“E se fosse sua mãe”, artigo publicado no Jornal o Globo em 17/11/2011, discute vários aspectos relacionados às políticas de saúde em geral e à assistência aos pacientes em particular, destacando esse antigo axioma para pontuar o cotidiano de quem precisa ser assistido em seus problemas de saúde.
Nos hospitais, os pacientes internados fazem parte de um cenário interessante. Ao mesmo tempo em que a cada dia mais e mais organizações alcançam o selo de Acreditação, ou se destacam por serviços assistenciais prestados, são inúmeros os exemplos em que a abordagem direta do paciente e a condução médica propriamente dita carece de atenção, dedicação, presteza e competência em favor destes mesmos pacientes. É realmente difícil compreender como é que, apesar de tanta discussão acerca de melhoria de processos, da própria concepção processual no cotidiano dos hospitais, e de seus incontáveis filhotes (diretrizes, normas, protocolos, indicadores e rotinas, dentre outros), na linha de frente do trabalho as coisas não estejam acontecendo conforme se espera que aconteça: qualidade assistencial, resolutividade e eficácia na aplicação dos recursos disponíveis dentro da melhor evidência clínica, dentro de um ambiente de integração multidisciplinar, respeito mútuo e principalmente respeito ao paciente internado.
Não faltam tentativas de explicação para isso. A mais corrente é que faltam abordagens humanísticas nos currículos das universidades, que insistem em eternizar o desprezo às ciências sociais, aos princípios da bioética e às noções básicas de outros conhecimentos tão importantes quanto o conhecimento técnico (principalmente quando falamos de um profissional que lida diretamente com o ser humano em todas as suas dimensões), tais como a antropologia, a psicologia e a filosofia. Eu tenho outra teoria, menos acadêmica e mais pragmática. E que é mais preocupante.
Hoje, com a necessidade de maiores investimentos em saúde e o avanço na quantidade de hospitais pelo país, tendo como um dos maiores motores as necessidades legais e políticas cobradas aos governantes, o produto “médico” ficou extremamente valorizado. Que o digam os gestores municipais dos mais de dois mil municípios do país. Destes, 497 não dispõem de um único profissional prestando qualquer tipo de assistência, excluindo aqueles que pagam valores elevadíssimos para profissionais trabalharem na forma que desejarem, levando a uma atenção descontinuada, itinerante, frequentemente mercantilista e sem compromisso (veja mais em http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,com-apagao-de-medicos-rincoes-do-pais-esperam-por-profissionais-importados,1033226,0.htm). Nada mais estimulante para os que se dizem sábios e têm muitas soluções na ponta da língua, geralmente inexequíveis ou pouco ortodoxas, tal como se vê no debate acerca da importação de médicos. Nos hospitais de grandes centros a realidade não é muito diferente, e só quem já esteve à frente de um serviço de saúde sabe o quanto é angustiante conviver com lacunas em setores essenciais, tais como emergências, UTI’s e diaristas, sem contar os demais. O dilema é: redimensiono minha estratégia de ação para aquele setor em função de não encontrar o profissional que preciso (deixando muitas vezes de atender a uma necessidade), ou aloco qualquer um que se disponha a ocupar esse espaço, para não deixar de mantê-lo em funcionamento? Ambas as decisões podem levar a consequências tão ruins que podem colocar em risco a própria carreira do gestor.
As diferenças entre o profissional com maior experiência e percepção de vida para aqueles que tendem a reproduzir o comportamento cada vez mais comum de fazer o necessário, o restrito, aquilo para o qual foi treinado (e muitas vezes nem isso), costumam se traduzir num clima de maior cordialidade e bom humor, de cortesia e respeito, de cuidado e atenção para aspectos nem sempre tão técnicos, mas que fazem grande diferença no trato com pacientes internados e com a equipe multidisciplinar. Equipe que trabalha nessa atmosfera contagia e influencia positivamente a eficiência das ações e o impacto na melhora da saúde do paciente. Este, por sua vez, dá voz à sua percepção e irradia sua experiência positiva para as pessoas de seu relacionamento, perpetuando um ciclo virtuoso de disseminação de informações que culmina com mais e mais pessoas interessadas em procurar aquele hospital, ou aquele setor, ou aquela equipe, e por fim, aquele médico tão bem falado.
O paciente é objeto maior e único da atenção médica. É para isso que o médico é treinado. Tem que dar uma resposta à altura das expectativas daqueles que investiram na sua formação, daqueles que pagam pelos seus serviços, daqueles que buscam a sua ajuda profissional e de toda a sociedade. Não há como fugir disso. Esqueçamos os demais aspectos periféricos e concentremo-nos nessa ideia central.

Eis aí grande nó. Enquanto todos os personagens envolvidos no negócio saúde, sejam agentes públicos ou privados, não valorizarem o trabalho assistencial como um todo, e o trabalho médico em particular, não deveremos ver nenhum avanço em relação ao que aí está. Mas enquanto isso, na hora de cuidar de alguém que lhe é destinado para receber seus serviços profissionais, ou que o procura de forma espontânea, não custa se fazer uma perguntinha simples e direta: e se fosse a minha mãe?

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Gestão de Corpo Clínico e processos de Acreditação Hospitalar

Há alguma coisa estranha acontecendo nos corredores dos grandes hospitais. À medida que mais e mais organizações vão obtendo selos de Acreditação (e a velocidade com que esse fenômeno ocorre nem é tão grande assim), quem for bom observador acaba por perceber que essas grandes transformações, quase sempre acompanhadas de repercussões midiáticas, talvez representem, sob certos aspectos, apenas uma cortina de fumaça para encobrir as iniquidades que os mais atentos assinalam, e quase sempre são ignorados.
Dito de outra forma, é bastante possível (e provável) que o processo de Acreditação em vários hospitais brasileiros não mude fundamentalmente a forma de condução dos processos assistenciais em relação ao que eram antes da certificação. Chamo a atenção para o fato de que na imensa maioria dos hospitais um contingente significativo de médicos que se situam na linha de frente do cuidado não estão totalmente alinhados às novas exigências de postura e de execução de tarefas que o processo de Acreditação preconiza. À exceção de algumas organizações que carregam uma enorme responsabilidade na manutenção da excelência de seus serviços, a dura realidade tem mostrado que a despeito de múltiplos esforços no fomento, implantação e manutenção dos princípios da qualidade hospitalar, há um distanciamento preocupante entre o preconizado, o que se diz fazer e o efetivamente feito.
Ilude-se quem pensa que é um fenômeno isolado. Mesmo com todo o incentivo oficial e das constantes iniciativas de realizar comparabilidade em nome dos consumidores, somente 30% dos hospitais norte americanos possuem um corpo de médicos que seguem protocolos e diretrizes, segundo Richard Bohmer, pesquisador da Harvard School, para ficar apenas nesse exemplo. Sabemos que as dimensões da linha de cuidado são várias, e protocolos e diretrizes são um meio e não uma finalidade, um dos vários aspectos nesse processo.  Então o que é que poderia justificar essa constatação?
Nunca é demais lembrar que existem ótimas organizações de saúde, que por diversos motivos ainda não consideram o processo de Acreditação uma prioridade. E existem outras que ostentam um selo de certificação na sua entrada, nas placas das ruas e no noticiário, sem de fato alterarem suas práticas de forma substancial. E isso tem uma consequência muitíssimo danosa ao usuário, que não tem a capacidade de distinguir ambas as situações extremas e as variáveis intermediárias. Ele pode fazer escolhas que talvez não preencham suas expectativas. Pior, pode ficar exposto a situações que afetem sua segurança e o próprio processo de recuperação de doença. Afinal, segurança do paciente é o pressuposto básico de qualquer processo de Acreditação Hospitalar.
Médicos são profissionais que fazem parte de uma categoria única. Mas isso nem sempre deve ser considerado um elogio. Sua formação técnica exclusiva lhe confere uma autonomia do qual nenhum outro profissional pode desfrutar, sua liderança natural dentro de uma equipe assistencial é inquestionável e sua representação perante as mais diversas situações é sempre respeitada. Seu respaldo ético e legal para exercer sem muitos questionamentos sua prática é, ao pé da letra, ilimitado (resguardando-se certos aspectos éticos e desde que não inflija nenhum mal ao paciente). Sua formação curricular muito raramente aborda questões de natureza psico-social no trato dos pacientes, e seu aprendizado na área de economia da saúde ou gestão de itens elementares que irão permear sua prática diária no relacionamento com suas fontes pagadoras é praticamente inexistente. Para completar, é de suas mãos, ao digitar ou assinar prescrições, evoluções e relatórios, que resultará o grau de desempenho da organização que o acolhe.
Por essas e por outras, esse indivíduo deve ser tratado de forma diferenciada. Nem melhor, nem pior, apenas diferenciada. E a impressão que tenho é que isso não está ocorrendo, na medida em que a rotina do processo assistencial nos hospitais carece de linearidade da definição de tarefas, de comunicação horizontal e vertical simples e direta entre equipes, intra-equipes e entre todos com seus respectivos gestores; e o pior, de práticas fora do padrão estabelecido após tanto investimento na implantação de processos de qualidade. Trocando em miúdos, ninguém está brincando do jeito que foi combinado.
Apontar problemas é fácil, mas considero o cenário bem complexo para arriscar uma solução definitiva. Entretanto, tenho uma sugestão simples, porém trabalhosa, e que envolve o gestor clínico na sua atividade.
Vivenciar o ambiente hospitalar nas suas peculiaridades e idiossincrasias é um exercício difícil e obrigatoriamente diário. O gestor clínico não pode exercer sua liderança atrás de uma mesa, realizando reuniões solenes ou produzindo incontáveis documentos regulatórios sem que esteja em sintonia contínua com todos os aspectos assistenciais nos mais diversos nichos da organização. É um trabalho de construção lenta e gradual, no qual sua liderança sai fortalecida a aquisição do respeito da comunidade se dá sem canetadas. Caminhar entre os diversos setores, ouvir mais que falar, estabelecer vínculos de confiança com todas as categorias profissionais, ser presente e não se abstrair de intermediar situações de conflito, estar sempre disponível e nunca se deixar influenciar pela posição hierárquica, a não ser quando necessário: eis um bom caminho para começar.
Não existem certos ou errados nessa história. Profissionais existem para exercer sua prática, gestores para guiá-las dentro dos interesses da organização. E os processos de implantação de qualidade não dão conta de contemplar esses aspectos não mensuráveis.
O gestor deve tomar a dianteira e se responsabilizar pelo seu grupo de médicos.
Nada menos que isso.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O que seu médico não diria a você

Na edição brasileira de fevereiro da revista “Seleções”, o chamado de capa fazia referência sobre “45 Segredos que os Cirurgiões não diriam a você”. Na matéria, alguns fatos corriqueiros e outros mais complexos, principalmente porque, a meu ver, agravam o abismo existente entre o paciente e o médico no que tange à igualdade de meios para uma discussão equilibrada acerca das doenças e seus múltiplos aspectos.

A assimetria de informação, tão própria do setor saúde, tem o seu ápice naquelas circunstâncias em que o paciente submete seu corpo inteiramente aos dons do profissional, que procederá da forma que julgar naquele momento a mais indicada para a resolução de um problema que ora se apresenta, seja de forma invasiva ou não. E o Setor de Emergência é o mais visível para as mídias e para a população em geral, uma verdadeira salada de situações que refletem de forma boa ou má a agudeza desse cenário.

A sala de cirurgia é outro local especial, na medida em que a integridade do corpo do paciente, do nosso corpo, é violada pelos instrumentos de trabalho de um profissional que em uma infinidade de vezes nunca tivemos a oportunidade de conhecer pessoalmente, e muito menos ainda no exercício de seu labor.

E das Unidades de Terapia Intensiva então, que dizer? Sob efeito de drogas sedativas e analgésicas potentes, e muitas vezes com dispositivos acoplados que impedem a comunicação e movimentação com o meio, o paciente pode ser vítima do próprio corpo, um animal de experimentação para tentativas de restabelecimento de funções, que podem ou não lograr êxito a depender da eficácia das ações que sobre ele recaem, e do desempenho daqueles que estão por detrás delas.

Todo esse preâmbulo tem por finalidade adicionar um comentário ao já desgastado noticiário (e imaginário) que cerca a prisão da médica chefe da UTI Geral do Hospital Evangélico de Curitiba. Nesse episódio, considero importante a recomendação de que não retrocedamos mais no árduo trabalho que os intensivistas em geral desenvolvem no sentido de romper mitos e paradigmas acerca dos propósitos da medicina intensiva. Dentro das UTI’s não se matam pessoas. Dentro das UTI’s não se expõem pacientes a riscos desnecessários, muito menos a sofrimentos físicos ou psicológicos intencionalmente. E dentro das UTI’s, ninguém, repito, ninguém trabalha sozinho.

Atitudes circenses, grosseiras ou deselegantes de qualquer profissional de saúde não são muito diferentes de outros campos de atuação. A grande diferença é que seu paciente/cliente encontra-se num momento de fragilidade enorme e cheio de expectativas. Afinal, dificilmente alguém vai ao hospital por vontade própria ou por prazer. Daí a responsabilidade adicional do profissional que trabalha numa UTI, por exemplo, de ser mais atencioso e equilibrado na hora de se apresentar ou de se relacionar interna ou externamente.

Mas não confundamos as coisas. Experiência, carisma e conhecimento técnico continuam sendo tão importante quanto ou até mais que os anteriores. E, conforme muitos acreditam, é o que efetivamente fará a diferença no desfecho clínico dos pacientes aos seus cuidados.

Você, gestor hospitalar, trate de ficar atento às suas lideranças. Por mais bem qualificadas que elas sejam do ponto de vista de formação e experiência, se não forem identificados nelas elementos em seu perfil que contemplem a capacidade de trabalhar em grupo, a preocupação com a “moral” e a imagem do setor, e por fim, uma postura apropriada para o exercício de tal liderança, é melhor que se apresse em corrigir essas distorções.

Nesse caso recente, quem ficou mal na fita foi a organização e seus gestores. Porque a médica em questão tinha um superior hierárquico, que a conhecia bem. E assim é que todo o trabalho sério que acompanha a rotina das UTI’s, na conquista da confiança de pacientes e familiares, dá um passo para trás. Porque você, gestor, não fez o seu trabalho.

Vamos refletir um pouco antes de fazermos nosso julgamento, e, principalmente, vamos aprender com o fato. Seja ele fundamentado ou não.

À luz dos princípios que conduzem as modernas organizações hospitalares, não há mais espaço para segredos ou omissões. Médico bom é médico que não tem medo de mostrar como trabalha.

Nem de contar o que faz.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Vulgarizando palavras e conceitos em saúde

Desafio é um termo utilizado ao longo da história do homem para designar momentos em que algo muito importante, difícil ou que envolvesse riscos precisava ser feito, seja para uma finalidade boa ou ruim. Os desafios poderiam lograr êxito, sendo aí listados diversos fatores que poderiam contribuir para isso, tais quais estratégias adequadas e no momento certo, vontade de fazer acontecer, estímulos através de princípios morais, éticos e religiosos, dentre outros. O fato é que a humanidade sempre esteve diante de desafios das mais diversas naturezas, em grande parte das vezes na busca de um ambiente melhor para ser vivido.
 
Num mundo com tantas transformações instantâneas, globalizado e com os modernos sistemas de comunicação e interoperabilidade alcançando num espaço de horas inovações tecnológicas que levariam séculos pelos nossos ancestrais, o termo vem assumindo proporções quase que banais quando se trata de expressar certos avanços, ou a falta deles, no bojo dos direitos fundamentais dos indivíduos.
 
No universo das conquistas mais básicas da cidadania entre os habitantes dos diversos países, tais como os serviços essenciais, na maioria dos regimes democráticos providos pelo Estado, falta-nos a coerência, o planejamento, a ética e a vontade política para que as condições sociais mínimas da maioria de nossa população sejam dignamente alcançadas.
 
Nessa linha estão os discursos proferidos em tom de aparente indignação a respeito das políticas de saúde e do mercado da saúde em si, para ficar apenas nesse exemplo.
 
Nossa forma de condução dos assuntos relacionados à saúde, tanto coletiva quanto suplementar, é esquizofrênica: implantamos um modelo de saúde pública altamente socializante, inspirada em modelos europeus tradicionalmente amadurecidos em seus respectivos sistemas; ao mesmo tempo em que seguimos na prática cotidiana a cartilha neo-liberal ditada pelo poder econômico do Grande Irmão do norte, os Estados Unidos da América, de transferência de responsabilidades para a iniciativa privada e um Estado mínimo.
 
Duvida? Então faça um pequeno exercício de observação. De uma forma muito resumida, existem seis pilares de sustentação do nosso sistema de saúde, em geral:
 
- Usuários (incluindo aí aqueles que se utilizam do SUS – todos nós- e aqueles que dispõem de algum plano de saúde para mitigar suas dificuldades de acesso);
- Prestadores (hospitais, clínicas, consultórios, laboratórios, centros de reabilitação, entes públicos);
- Operadoras de Planos de Saúde (cooperativas de serviço médico, autogestões, seguros-saúde e medicina de grupo);
- Governos em geral, nas suas esferas federais, estaduais e municipais;
- Profissionais de saúde em seus mais diversos níveis (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, etc..);
- Complexo médico-industrial da saúde (empreiteiras, indústrias de insumos, drogas, tecnologias e equipamentos para a saúde).
 
Pergunto a você, leitor, qual desses segmentos pode se mostrar para nós exibindo alguma pujança? Qual deles você pode identificar como satisfeito nesse emaranhado de interesses, na atual conjuntura? Alguns podem arriscar que o último elemento, o complexo médico-industrial da saúde, pode ser, talvez, o único a se beneficiar dessa aparente lambança em que nosso sistema está assentado.
 
O que me incomoda profundamente é a repetição a cada evento, a cada discurso de posse de alguma coisa, a cada ata de reunião, a cada reportagem veiculada por alguma mídia, que o desafio é isso, que o desafio é fazer aquilo, que o desafio tem que ser vencido e por aí vai, numa combinação de frases totalmente sem sentido para aqueles que, pragmáticos como eu e você, aguardamos propostas concretas que nos mostrem caminhos, e não se restrinjam a limitar suas observações a obviedades históricas. Nosso sistema está ruim? Todos sabem. O SUS precisa de financiamento ou de gestão? Horas de discussão asséptica e nenhuma conclusão. O mercado de saúde suplementar encontrará saídas que possam vencer a falácia do crescimento econômico que não estamos experimentando, a despeito da propaganda oficial?
 
Fugindo um pouco à proposta dos temas que habitualmente escrevo, conclamo a todos a refletirem a respeito desse enigma: por que somos tão brilhantes em apontar problemas e fazer diagnósticos, e tão ineptos em oferecer soluções?
 
Por favor, parem de dizer que existem desafios. Cansou.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Gestores Clínicos e processos de qualidade


É preocupante a posição das pessoas que trabalham dentro das organizações de saúde em geral, e em particular dos médicos e gestores clínicos, acerca da necessidade de implementação de medidas simples e elementares para o alcance de melhorias assistenciais. Melhorias assistenciais, como todos sabem ou deveriam saber, refletem-se de imediato no cuidado ao paciente sob responsabilidade da organização e em todas aquelas questões que vêm sendo exaustivamente colocadas por institutos de acreditação no Brasil e no mundo, principalmente no que concerne à segurança dos processos, visando minimizar riscos e ocorrência de efeitos adversos aos pacientes internados e aos colaboradores que lá estão. Entretanto, não é incomum encontrarmos gestores se escusando de assumir seu papel nesse processo, deixando essas ações para um plano secundário ou negligenciando-os, por não vislumbrarem contra-partidas de ordem material ou financeira para si próprio ou para a organização que ele representa.

Algumas organizações fazem bem esse papel de busca ativa e vigilância dos processos, sem nem se darem conta que estão promovendo ações de qualidade e sem rotularem a iniciativa ou fazer auto-promoção. E o fazem pura e simplesmente porque sabem o quão impactante essas medidas contribuem para a missão da organização e sua reputação perante o indivíduo e a comunidade.Outras avançaram bastante no processo de percepção do quanto a melhoria do processo assistencial pode ser importante, investiram na capacitação de líderes para implantar medidas de qualidade, evoluíram um pouco mais, atingindo qualificação perante institutos de acreditação e são efetivamente reconhecidas nas mídias pelo alcance desta condição. Mas que, entretanto, não reproduzem no seu dia a dia as premissas estabelecidas anteriormente no processo de planejamento de ações e continuam a se relacionar com seus pacientes e clientes da mesma forma que uma organização que acredita que apenas a prestação de serviço secularizada nas suas consideradas “boas práticas” é suficiente para manter a viabilidade funcional e financeira da mesma, esta última prioritariamente em relação à outra.

Para não deixar de fazer justiça, existem organizações que aliam perspectiva com ações eficientes. São poucas no universo de organizações no Brasil, e seu crescimento em número não segue uma curva ascendente muito inclinada.

O fato é que promover meios para melhorar a qualidade assistencial em todos os níveis dá trabalho. Além disso, incomoda pessoas e tira algumas de sua zona de conforto. Interfere nas relações internas de poder e promove desgaste político. Tem um custo associado e expõe algumas vísceras perante o público interno e externo. Suscita novas formas de relacionamento com fontes pagadoras e provoca questionamentos por parte destas, principalmente quando algumas medidas preconizadas elevam o custo médio por paciente. E, finalmente, exige do gestor clínico um conhecimento e posicionamento capaz de testá-lo se está à altura do desafio. E nem todos querem esse tipo de exposição, a despeito das inúmeras vantagens conhecidas dessas ações.

É fato que tanto melhores e mais eficientes as ações voltadas para a qualidade assistencial quanto maior for o apoio e incentivo da alta direção. Mas parece ser consenso que muitas das iniciativas com essa finalidade podem ocorrer à margem desse apoio oficial. Pois é no cotidiano da organização que vemos e sentimos o estado das coisas e fazemos nosso diagnóstico situacional e das necessidades assistenciais mais urgentes.  Uma recomendação para quem vai assumir a função de gestor clínico: não deixe de caminhar pelos diversos setores de sua organização. Faça disso um hábito. Converse com as pessoas, ouça o que os diversos profissionais têm a dizer. Ouça também os pacientes e seus familiares. Lições e idéias valiosas podem ser incorporadas nesse “tour”. A sua ação bem conduzida é o substrato para o sucesso das ações voltadas para a qualidade.
E, principalmente, não esperem reconhecimento festivo.