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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

As invasões bárbaras

É necessário ter preparo emocional em dia para absorver as contradições de nossa legislação e a atitude de nossos políticos quando o assunto é saúde.
Fomos recentemente brindados com mais uma pérola que, num misto de senso de oportunismo dos proponentes e agentes ativos, e pasmaceira generalizada daqueles que deveriam denunciar e se mostrarem indignados (salvo honrosas exceções), nos prestam mais uma homenagem à mediocridade tantas vezes enaltecida de nossa classe política.
A lei 13.097 no seu capítulo XVII, sancionada pela Presidência da República em 19/01/2015, é um atestado de nossa incompetência e imaturidade civil enquanto sociedade organizada.
Inspirada na Medida Provisória 656, essa importante mudança nos rumos da saúde brasileira aparece junto com uma quinquilharia de outras alterações de diversas ordens: refinanciamento de dívidas de times de futebol sem contrapartida, regulação tributária de geradores aeroespaciais, reajuste de Imposto de Renda, realinhamento de impostos sobre bebidas frias, dentre outras.  Lá no meio, no capitulo XVII, se encontra descrito de forma clara como o nosso legislativo pretende abrir as portas do capital externo na aquisição, principalmente, de hospitais e unidades de saúde no Brasil, além de, de quebra, inserir no escopo da lei os laboratórios de genética humana e ações de planejamento familiar.
Seus artigos soam como música para todos aqueles que enxergam a possibilidade de empresas estrangeiras injetarem capital pesado, no setor através dos arranjos que a lei permite, estabelecendo assim uma conquista no o ideal de dinamizar um mercado que, segundo diversas opiniões, patina em vários entraves ao crescimento, principalmente pela imensa dificuldade de captação de recursos e uma legislação tributária injusta e predatória.
Desde 2011, e sem nenhuma dificuldade de tramitação ou contestação jurídica, empresas de fora do país já podiam assumir o controle acionário de operadoras de planos de saúde, laboratórios farmacêuticos, farmácias e drogarias, empresas de medicina diagnóstica, entre outros. Na ocasião, a Lei Orgânica do SUS proibia aquisição de hospitais pelo capital externo, como até hoje o era. Através de uma interpretação da lei criticada por muitos, a advocacia Geral da União (AGU), o Conselho de Administração de Defesa Econômica (CADE), e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) emitiram pareceres que culminaram com a aprovação, em 23 de outubro, da venda da Amil ao grupo United Health dos Estados Unidos da América, um gigante de projeção mundial e líder em investimentos no setor em seu país, aceitando o argumento da operadora de que seus hospitais são próprios e utilizados como ferramenta de redução de custos. Seus mentores e arquitetos da transação são homenageados e respeitados até hoje pela sua inteligência e astúcia, dentre outras qualidades.
Justiça seja feita, a despeito de todas as discussões acerca do que ocorreu na ocasião, mesmo entidades de defesa do SUS entenderam que no fundo não havia transgressão legal no processo em si, posto que o objeto em questão, a Amil, é uma empresa privada, sem nenhuma relação com o SUS. Tanto é que antes da criação da ANS era regulada pela SUSEP – Superintendência para Seguros Privados.
Mas agora o assunto é outro, mais significativo pela expectativa do montante a ser aplicado, e, principalmente, pelas conseqüências sobre o modelo de saúde que a população do país desfruta atualmente. Esta última, sempre bom lembrar, universal e com diversos pressupostos em sua lei orgânica que, em tese, asseguram cobertura, integralidade e equidade. E é aí que a porca torce o rabo.
Há muito tempo vem sendo feitas tentativas de aproximar capitais de fora do país ao nosso sistema de saúde, isso não é novidade para ninguém. Entretanto, as restrições e impedimentos legais inibiam o avanço das mesmas. Causa certa estranheza o fato de estarmos diante de um fato, ainda não totalmente consumado em função de sua afronta à Constituição Federal (art.199 § 3º “É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei”;), à Lei nº 8.080 de 1990, à Lei Complementar nº 95 de 1998 e à Resolução nº 1 de 2002 do Congresso Nacional; que ignorou completamente todo um arcabouço legal constituído há décadas e de uma canetada só abriu as portas ao investidor de fora sem nenhum pudor. Pela nova lei, o texto não deixa margens para dúvida quanto à irrestritividade das possíveis aberturas, senão vejamos:
“CAPÍTULO XVII
DA ABERTURA AO CAPITAL ESTRANGEIRO NA OFERTA DE SERVIÇOS À SAÚDE
Art. 142. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 23. É permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde nos seguintes casos:
I – doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos;
II – pessoas jurídicas destinadas a instalar, operacionalizar ou explorar: a) hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada; e
b) ações e pesquisas de planejamento familiar;
III – serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social; e
IV – demais casos previstos em legislação específica.”
E mais: Art. 53-A. Na qualidade de ações e serviços de saúde, as atividades de apoio à assistência à saúde são aquelas desenvolvidas pelos laboratórios de genética humana, produção e fornecimento de medicamentos e produtos para saúde, laboratórios de analises clínicas, anatomia patológica e de diagnóstico por imagem e são livres à participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros.”
Em seu manifesto, a Associação Brasileira de Saúde Comunitária – ABRASCO reafirma que “o domínio pelo capital estrangeiro na saúde brasileira inviabiliza o projeto de um Sistema Único de Saúde e consequentemente o direito à saúde, tornando a saúde um bem comerciável, ao qual somente quem tem dinheiro tem acesso. Com a possibilidade do capital estrangeiro ou empresas estrangeiras possuírem hospitais e clínicas – inclusive filantrópicas, podendo atuar de forma complementar no SUS – ocorrerá uma apropriação do fundo público brasileiro, representando mais um passo rumo à privatização e desmonte do SUS.
Esse é o caminho que atende aos interesses do grande capital internacional, que voltou seus olhos à possibilidade de ampliar seus lucros inicialmente com a venda de planos e seguros baratos, mas com uma cobertura de serviços extremamente limitada, que não garante o direito à saúde e agora se aproveita para se apropriar de fundos públicos. Não foi isso que o povo brasileiro aspirou em seu texto constitucional de 1988, nem o que aspira hoje. É desejo nacional que a saúde permaneça como direito de e para todos, com qualidade. A que interessa a abertura do capital estrangeiro na saúde brasileira? Àqueles que não querem que o SUS dê certo. São os que têm medo do sucesso do SUS, impedindo-o de todas as maneiras de ser um sistema de justiça social.”
Independente de quaisquer correntes ideológicas, parece ter havido uma transgressão legal. No mínimo um tapa na fuça daqueles que obrigatoriamente deveriam participar dessa discussão pela sua expertise perante o assunto, e pelo devido respeito que merecem.
Sem nenhuma pretensão de esgotar qualquer análise a esse respeito, não se pode negar que muitos aguardavam ansiosos por isso, evocando, na palavra de seus mentores, o princípio da razoabilidade: se em diversos setores estratégicos, ilhas antes intocadas da administração pública, a entrada de capital externo é uma realidade em nosso país (energia, transporte, comunicações, seguros - com eficiência nem sempre atestada, mas isso é outra conversa), por que a Saúde não poderia figurar como uma alternativa ao investidor externo? Num texto publicado no jornal do Sindicato dos Hospitais do Estado de São Paulo – Sindhosp, de outubro de 2012, as razões para a abertura de capital a empresas estrangeiras na aquisição de hospitais eram colocadas de forma clara e objetiva, contando com participação de respeitáveis formadores de opinião. Na época, imaginava-se que os modelos avançados de gestão, governança e “accountability” desses grupos externos trariam transparência e lisura aos processos de aquisição, proporcionando um saudável ambiente para as boas práticas nos processos clínicos doravante mantidos ou reciclados, e dessa forma minando quaisquer resistências à sua implantação. Tal necessidade de antecipar esse compromisso devia-se e ainda se deve ao fato de que a maior parte de nossos hospitais que atendem usuários do SUS é filantrópico, beneficente ou público.
Não parece haver nenhuma razão para discordar dos possíveis benefícios que o investidor privado trará para os hospitais também privados. Mas a extensão dessa abertura a entidades filantrópicas desperta a principal preocupação daqueles que veem com desconfiança esse processo: se a maioria dos pacientes usuários do SUS (estima-se que seja em torno de 60%) é atendida nos hospitais que são sujeitos à nova lei, ou seja, filantrópicos e beneficentes, em que medida a entrada de um investidor deve interferir na prática vigente? E como fica todo o processo de discussão de diretrizes da política de saúde determinados pelo SUS, que contempla, dentre tantas outras ações, o papel de participação da sociedade em seu conjunto na formulação das tais políticas? Supondo que os benefícios apontados pelos especialistas no assunto realmente justifiquem toda essa abertura, alguém acredita piamente que todos os movimentos desse jogo serão transparentes, lisos e sem nenhum tipo de favorecimento? Nossa maior e mais respeitável empresa, a Petrobrás, patrimônio do povo brasileiro, símbolo de inovação e líder de confiança de investidores por anos, não está aí na situação vexatória que se encontra por falta justamente desses ingredientes?
Com relação às políticas públicas de saúde, principalmente os hospitais que atendem usuários do SUS (e também os hospitais privados), não se pode negar a necessidade de ajustes no atual modelo. Do ponto de vista geral, não é necessário ser especialista no assunto para perceber que muito há que se avançar nesse processo de amadurecimento do SUS, retardado talvez, mas seguramente inclusivo. A implantação de qualquer medida que pretensamente tenha como objetivo final uma melhoria nos padrões assistenciais pode não ser uma decorrência natural da entrada de capitais estrangeiros, como tem sido alardeado pelos defensores das medidas. Ao contrário, no cenário mundial, os países que adotam como princípio básico a livre concorrência em setores estratégicos socialmente definidos excluem formal e legalmente contingentes populacionais extensos, inclusive os EUA, que mais recentemente, a contra gosto das corporações, vem direcionando suas ações para um sentido inverso de sua vocação natural de liberalismo econômico, tentando contemplar através de novos arranjos aproximadamente 50 milhões de norte-americanos que não são cobertos por nenhum tipo de assistência médica. Para a Organização para a Cooperação dos Países Desenvolvidos – OCDE, segundo o último levantamento feito quanto à satisfação dos usuários dos habitantes de seus países na utilização de seus serviços de saúde, nem entre as trinta primeiras nações o país se encontrava.
Países como a Índia, a Tailândia e a Indonésia são frequentemente lembrados como exemplo de inovação e tecnologia em saúde, a um custo baixo e sem perda de qualidade, fazendo a alegria daqueles que investem no turismo médico. A prestação de serviço é privada, com total abertura de capitais. Mas sua população em geral vive à míngua e sem nenhuma perspectiva de acesso amplo a esses serviços. Na América Latina, seguindo critérios nem sempre claros, alguns institutos vêm tentando encontrar formas de classificar por qualidade hospitais. Nas poucas referências encontradas, os hospitais brasileiros, com todas as suas dificuldades, são muito bem avaliados, como o são também hospitais da Colômbia, Argentina e México. Tomando como exemplo a Colômbia, o que se vê é que a ausência de políticas de saúde oficiais inclusivas ou mecanismos reguladores nas políticas de saúde tornam seus hospitais referência em qualidade em função da total falta de alternativas para a população, que obrigatoriamente tem que estar vinculada ao setor privado através de planos de saúde ou pagar do próprio bolso diretamente as despesas médicas e odontológicas. Se não há a presença do Estado, estamos diante de um mercado assimétrico, em que somente um dos atores pauta as regras. Em suma, como adoecer é inexorável, a clientela nunca desaparece.
A lista de melhorias que poderiam ser aplicadas em nosso modelo saúde em geral, e nos hospitais em particular, é infinita, e não são implantadas por muitos motivos. Temos capacitação técnica para formar uma geração de gestores comprometidos com a qualidade e parece que temos sim a possibilidade de direcionar recursos para esse fim. Mas não o fazemos. Assim sendo, pendura-se o planejamento estratégico feito de forma séria e responsável atrás da porta, para nos dedicarmos a encontrar soluções contingenciais vendidas como necessárias e urgentes.
É nesse hiato, nesse buraco negro, que as soluções mágicas, esquisitas ou tendenciosas surgem, e justamente vicejam não pela falta de alternativas, mas pela falta de seriedade e vontade política de nossos governantes. Além do já famoso ingrediente caracterizado pela inércia da população em geral, e da classe médica e dos demais profissionais de saúde em particular. Afinal, a raposa só ataca o galinheiro desprotegido.
Um exemplo de como forças sinérgicas podem atuar no benefício da população está na iniciativa do novo governo do Distrito Federal nesse mês de janeiro em procurar o Ministério da Saúde para solicitar auxílio na implementação de assessoria técnico-administrativa da Secretaria de Saúde local, que vive uma das piores crises administrativo-financeira de sua história. É um exemplo simples. É um exemplo que poderia ser seguido.
E dentro dos hospitais, o que esperar do gestor clínico e do Corpo Clínico propriamente dito, dentro dessa perspectiva? Nossa legislação já permite alguns arranjos legais que permitem a participação privada na cogestão de hospitais e unidade de saúde de maior complexidade, na forma de parcerias com organizações sociais e, mais recentemente, parcerias público-privadas. A ideia de desonerar o Estado de obrigações legais e transpor obstáculos processuais para que algumas transformações no modelo assistencial acontecessem (a maioria delas muito necessárias, por sinal), sem perda das metas de cobertura, fizeram com que tais arranjos dessem maior celeridade a processos de contratações, logística, gerenciamento de processos e outros tantos aspectos, resultando daí uma percepção de melhora na qualidade e satisfação do usuário. Aqui a autonomia técnica é preservada dentro das limitações orçamentárias que cada hospital dispõe, estas por sua vez fiéis aos princípios das políticas de saúde públicas vigentes e a dotações orçamentárias pré-estabelecidas.
Não é esse o caso que a lei 13.097 propõe.
De uma maneira geral, em uma situação em que corporações assumam o comando dos processos gerenciais, e consequentemente clínicos, a autonomia profissional não será afetada? Qual o perfil adequado do profissional que deverá exercer sua função nesses hospitais? Subserviente? Médicos, enfermeiros e gestores serão treinados na essência corporativa para prevenir perdas ou dificultar o acesso do usuário aos seus serviços? Seguindo de forma irrestrita os princípios da otimização de espaços, de horários, de insumos, de recursos diagnósticos? Seriam realmente o bem estar coletivo e a adoção de práticas inclusivas e genuinamente preocupadas com a melhoria dos indicadores de saúde os princípios norteadores de corporações que assumissem o setor, principalmente no caso de hospitais filantrópicos? O capital estrangeiro imbuído disso?
Volto aqui a uma constatação: nós carecemos de meios para o alcance de eficiência técnica e administrativa na maioria de nossos hospitais. A adição de mais esse elemento de consequências não tão previsíveis como querem nos fazer crer, sem considerar as diversas e importantes considerações que remetem às já famosas peculiaridades do mercado de saúde, pode sim trazer um risco bastante elevado de fragilizar as já fracas relações entre aqueles que ditam as regras, aqueles que pagam pelos serviços, aqueles que deveriam regulá-las, aqueles que estão na ponta, na operação, e aqueles que deveriam se beneficiar de sua forma de fazer as coisas pretensamente melhor que do jeito atual. Acrescenta também um risco adicional de distanciamento entre médicos (e demais profissionais) e seus gestores, porém aproximando por caminhos tortos o hospital a uma central de receitas operacionais dissociada dos seus incontáveis aspectos não tangíveis e tão fundamentais quanto os demais. Mais uma vez estamos contingenciando.
Talvez haja algum exagero nessa análise. Pode ser que nada disso aconteça e que possamos, além de oferecer uma cobertura assistencial aos usuários do SUS melhor que a atual por força dos investimentos no setor, desfrutar de um ambiente de, como dito, governança de tal magnitude que no final eleve a percepção de que estamos no caminho certo. Quanto a nós, médicos, pode ser que na onda das mudanças para esse estado de coisas venhamos a ter perspectivas de exercício profissional dignas e lastreadas pelo respeito aos princípios básicos das relações de trabalho, pela valorização profissional e planos de carreira, pela disponibilização de um ambiente de trabalho adequado à nossa função e à dos demais profissionais e pelo desenvolvimento de um espírito de fidelidade, solidariedade e respeito mútuo para com o hospital que nos acolher. Mas receio admitir que talvez seja mais previsível apenas a manutenção de nossos empregos. Somente.
E já vai ser muito.