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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Governança Clínica e uma história sobre os bares

 

“O mundo lá fora não vai mudar antes

que o mundo aqui de dentro mude”.

(Deepak Chopra)


Quando eu era mais jovem, por volta dos meus 20 anos, perguntei a um dono de bar que frequentava com meus amigos como era possível ele manter seu negócio funcionando mesmo naqueles turbulentos anos de inflação alta nos anos 80, no século passado. A explicação foi simples: nas suas palavras, afirmou que a venda contínua de três produtos (uma marca famosa de cerveja, uma marca famosa de refrigerante e uma marca famosa de cigarros) fazia sobreviver, direta ou indiretamente, todo o negócio. Durante bastante tempo frequentei esse estabelecimento e percebi que era verdade o que ele dizia.

Mais ou menos na mesma época, também passei a frequentar um bar/restaurante que se situava geograficamente melhor em relação ao primeiro como ponto de venda, e que tinha como clientela um público mais numeroso e mais sofisticado. Ao proprietário deste estabelecimento fiz a mesma pergunta e, tal qual o outro, também disse que ancorava seu faturamento em torno dos mesmo três itens citados anteriormente.

Por que me detinha a observar isso? Porque tanto eu como meus amigos também consumíamos os mesmos produtos e achávamos interessante essa comparação. Acreditava que era uma coincidência, mas na verdade estava diante de uma constatação que seria um dos fios condutores de minha prática profissional, só não havia percebido isso ainda.

Aqui expresso um certo reducionismo factual, mas o momento é oportuno.

Gestão de Corpo Clínico, Gestão Clínica e Governança Clínica são termos utilizados para descrever e analisar condutas, processos e práticas desempenhadas pelo Corpo Clínico dos hospitais e demais estabelecimentos de saúde e que promovam, ao final, qualidade assistencial (eficácia) e retorno de investimentos (eficiência), tanto no ambiente público quanto no privado.

Há 15 anos ou mais, a atmosfera corporativista nos hospitais privados, e em menor extensão nos públicos, fervilhava de empolgação com novos conceitos e práticas de gestão que se supunham, à época, serem aplicáveis em nosso conturbado e desigual meio, com muita frequência importando modelos de gestão de outros países ou de instituições acadêmicas respeitáveis. Naqueles tempos, a euforia gerada pelo bom desempenho do setor saúde estimulava a implantação de novas ideias.  O desenvolvimento de novos conceitos, tais como a Gestão do Corpo Clínico, ganhava relevância e andava lado a lado com um grande incentivo à obtenção de selos de Qualidade pelas instituições prestadoras de serviços em saúde. Melhores padrões assistenciais, supunha-se, trariam melhor reconhecimento por fontes pagadoras, melhor reputação, accountability, e maior transparência (esta última incorporada de forma mais tímida).

E eis que surge a Governança Clínica, um conceito criado pelo National Health System – NHS, Reino Unido, em 1998, como parte das comemorações pelos seus 50 anos de fundação, que é definido como:

 “(...) uma estrutura através da qual as organizações do NHS são responsáveis por melhorar continuamente a qualidade de seus serviços e salvaguardar altos padrões de atendimento, criando um ambiente no qual a excelência no atendimento clínico florescerá”  (STAREY, N. What is Clinical Governance? Hayward Medical Communications, p. 1–8, maio 2021).

Este quase aforismo, Governança Clínica, vez ou outra era citado por ocasião de sua criação. Mas nos anos recentes, passou a fazer parte da agenda dos grandes líderes em saúde, ocupando um espaço importante para subsidiar a discussão de meios para o alcance de melhores resultados assistenciais e financeiros para as instituições prestadoras de serviços de saúde, tendo como ponto de partida o desempenho clínico.

De fato, é reconfortante ver como as pessoas parecem estar compreendendo, finalmente, que dentre os muitos caminhos e iniciativas decorrentes desse incansável trabalho de achar boas soluções em um ambiente escasso em recursos, extremamente competitivo, algumas vezes predatório e conivente com iniquidades históricas no ambiente hospitalar, algo de novo (nem tão novo assim) chega para se consolidar enquanto estratégia poderosa para o enfrentamento das adversidades do setor.

Coisa que alguns estudiosos já sabiam nos anos precedentes, mas que não eram ouvidos.

Não há espaço para desperdício de tempo. Os números comprovam a baixa expansão do setor, principalmente no privado, estacionados nos eternos 25% da população detentora de um plano de saúde. No cotidiano, formuladores de políticas de saúde manifestam pelos corredores, baixinho, sua enorme preocupação ao ver a pobre realidade. 

A Governança Clínica traz em seu âmago a priorização da qualidade assistencial. Não favorece este ou aquele processo material, não exalta tecnologias avançadas (e quase sempre muito caras), não dissemina a pulverização e sim a estratificação de serviços, não se imiscui com agentes internos ou externos que porventura queiram tirar proveito de seus pressupostos.

Ao final, é correto afirmar que somente um processo terá eternamente seu papel reconhecido como transformador em todas as ocasiões, em todas as instituições, em todas as políticas públicas: a qualidade assistencial, tendo como ponto de partida o médico, assumindo a liderança e o protagonismo desse mesmo processo, em conjunto com uma equipe multidisciplinar envolvida. Não há nenhuma mágica nisso.

Corpo Clínico qualificado que faça jus a uma renumeração justa, que tenha transparência na relação bilateral com as instâncias diretivas, além de metas de desempenho ou de processo claras e atingíveis, com lideranças experientes e motivadas, fazem parte do pacote de medidas a serem adotadas, mais que urgentemente, para a própria sobrevivência da instituição. Tão claro e cristalino, tão eficiente quando comparado a um universo enorme de pequenas e inócuas decisões no microambiente hospitalar que foram e ainda continuam sendo tentadas, sem sucesso!!

Que seja bem-vindo o amadurecimento desse conceito tão vivo e necessariamente tão atual, que necessariamente precisa ser simples na concepção e compreensão, fácil na aplicação, e absolutamente satisfatório no resultado. Medicina Baseada em Evidência, Performance Clínica, Responsabilização e Transparência, Auditoria Clínica e Análise de Riscos formam a espinha dorsal da Governança Clínica. Nada que já não seja de conhecimento de todos. A dificuldade é transpor a linha entre a imaginação e a ação.

Hoje, lembrando dos bares que frequentava na juventude, consigo enxergar um paralelo com as conclusões que cheguei naquele tempo: a longevidade dos estabelecimentos decorre de muitos aspectos. Mas alguns são irretocáveis e você não pode abrir mão. Uma revisão de trás para frente nos modelos de gestão pode ser um bom começo para quem quiser se aventurar nesse terreno.

E nessa hora, felizes aqueles que perceberem que o sucesso da empreitada consiste fundamentalmente no fato de não poder faltar aquela cerveja, aquele cigarro e aquele refrigerante.


quarta-feira, 19 de abril de 2023

Você já ouviu falar em Doença de Chagas?

No início do século passado, o Brasil era um país essencialmente rural e pobre. Carlos Chagas, pesquisador e sanitarista, conseguiu identificar a doença, causada por um protozoário chamado Trypanossoma Cruzi (o nome dado foi em homenagem a outro cientista brasileiro famoso, Oswaldo Cruz), que através de um hospedeiro (o inseto chamado triatomíneo, também conhecido como “barbeiro”) infecta o homem: nas residências precárias no interior do país, o inseto com o protozoário em seu trato digestivo pica o homem, geralmente durante o sono, e imediatamente evacua no local. Por causar uma “coceirinha” no local da picada, ao coçar o homem introduz o protozoário para dentro do orifício na pele causado pela picada, introduzindo fragmentos de fezes do inseto e dando início então ao desenvolvimento da doença. A transmissão através de alimentos contaminados pode ocorrer também, e até 1992, não era raro haver transmissão através de sangue contaminado em transfusões.

Ainda hoje, mesmo com a urbanização da maior parte da população, temos em nosso país o registro de aproximadamente 150.000 casos ao ano.

A doença em si, na sua fase aguda, provoca sintomas gerais tais como febre baixa, fraqueza e dor de cabeça. Depois disso o protozoário se espalha pelo corpo e atinge, após algum tempo (que pode levar anos), o músculo do coração, o esôfago e o intestino grosso. Em todos os casos a reação é sempre a mesma, e se dá por inflamação direta causada pelo Trypanossoma nesses órgãos, agravada pela reação imunológica do indivíduo afetado.

O resultado final para uma parte das pessoas é a incapacidade de um funcionamento adequado do bombeamento de sangue pelo coração, condição chamada Insuficiência Cardíaca; a dilatação progressiva do esôfago, causando dificuldades para a digestão e vômitos; e a perda da capacidade de contração do intestino grosso, provocando a incapacidade de evacuar de forma adequada (“intestino preso”), aumento do tamanho do abdome e muito desconforto (tão intenso que às vezes é necessária a retirada cirúrgica do intestino grosso).

O Ministério da Saúde fornece gratuitamente o tratamento tanto para a fase aguda quanto para a fase crônica da doença, assim como os testes laboratoriais nos laboratórios públicos de referência. A única forma de prevenção é a busca ativa de frestas em janelas, portas e outros nichos nas residências, principalmente nas áreas rurais.

Curiosidade: por que o inseto se chama “barbeiro”? Uma das partes do corpo mais exposta enquanto dormimos é o rosto. Essa é uma das áreas preferidas pelo inseto na hora de picar. Assim, convencionou-se chamá-lo com esse nome porque é o local (nos homens) aonde se faz a barba!