Há uma canção do Cazuza que
sempre me faz pensar, na medida em que remete à certeza de que somos em grande
medida limitados enquanto seres humanos. Em “Blues da Piedade” (http://www.vagalume.com.br/cazuza/blues-da-piedade.html)
ele escracha, como de hábito, um aparcela significativa das pessoas que vivem
no nosso mundo, mas, de forma instigante na sua definição “perderam a viagem”. Mexe
comigo porque frequentemente vejo que ele parece ter uma forte dose de razão. E
começa assim:
“Agora eu vou cantar pros miseráveis que vagam pelo mundo derrotado,
pra essas sementes mal plantadas, que já nascem com cara de abortadas...”
A princípio esse início não
caberia num assunto que volta e meia vem à tona. O paralelo entre ambos está
justamente na capacidade do ser humano ser tão pobre na percepção do universo
ao seu redor. No caso das organizações hospitalares e de seu Corpo Clínico,
dentre as muitas iniciativas de resultados duvidosos na sua implantação, a
reflexão acerca da necessidade de criar um ambiente propício à prática de
“Humanidades” me soa bastante incômodo.
“Pras pessoas de alma bem pequena, remoendo pequenos problemas,
querendo sempre aquilo que não têm..”
Fomos inexoravelmente separados
de uma prática ancestral que colocava médicos e pacientes em um nível de
sintonia muito próximo. Desde meados do século XIX estamos sendo seduzidos de
forma progressiva por um agir e pensar muitíssimo em desacordo com os
princípios hipocráticos milenares que são o alicerce da profissão médica. Não
se trata de uma afirmação tão óbvia assim: muitos têm dificuldade em entender
em profundidade esse pressuposto básico, que nos acompanha desde a colação de
grau.
“Pra quem vê a luz, mas não ilumina suas mini certezas.”
Poderia discorrer sobre os
diversos fatores que levaram a essa situação, mas sem nenhuma dúvida o
exagerado apego à tecnologia nas suas mais diferentes manifestações mudaram
comportamentos e percepções, tornando nós, médicos, em entusiastas de uma forma
de agir e pensar que reza pela objetividade levada ao extremo, calcada na
premissa de que o ser humano no processo de adoecimento necessita
primordialmente da adoção de critérios bem estabelecidos de diagnóstico e
tratamento para seus variados problemas de saúde, mantendo distância segura de
qualquer envolvimento ou aquisição de conhecimentos acerca das dimensões
psicológicas ou sociais que envolvem cada um nesse processo e estreitando toda
a prática a uma faixa de atuação bastante limitada.
“Vive contando dinheiro, e não muda quando é lua cheia”.
Não raro percebemos como o
distanciamento dessas dimensões subjetivas, trazem frustração tanto para quem
trata quanto para é tratado. Um reflexo disso nos anos mais recentes é
exemplificado na popularização de abordagens mais holísticas por parte de
profissionais de saúde, não necessariamente médicos (aí residindo, inclusive, a
abertura de oportunidades para a imperícia e o charlatanismo), tal como as
práticas alternativas de medicina, dentre elas a Acupuntura e a Homeopatia, que
consideram no seu âmago toda uma estrutura de vida e de relacionamento do mundo
que hoje a medicina tradicional, ocidentalizada e consagrada por métricas
estranhamente incompletas, não dá conta.
“Pra quem não sabe amar........Vive esperando alguém que caiba no seu
sonho”.
As operadoras de planos de saúde,
através de um viés obviamente econômico, há algum tempo já perceberam a
necessidade de mudanças nas suas escolhas de serviços e profissionais
prestadores de serviço, tentando (de forma ainda desastrada e sem muita
eficácia) privilegiar a atuação do profissional de formação mais generalista, o
que não deixa de ser uma possibilidade para o usuário ter uma abordagem mais ampla
de seu problema. Alguns chegam a remunerar melhor esse profissional, na
expectativa de que dessa forma poderão melhorar suas receitas operacionais pela
redução de encaminhamentos a especialistas e no volume de
internações/procedimentos desnecessários.
”Como varizes que vão aumentand....Como insetos em volta da lâmpada”
Nos hospitais, a figura do
hospitalista vem ganhando reconhecimento e popularidade. A despeito de algumas
lacunas conceituais, a figura de um indivíduo que ao menos se propõe a lidar
com o paciente de forma mais integrada, com uma visão de conjunto antes inexistente,
denota uma evolução gradual nas práticas de se fazer Medicina. Falta ainda
percorrer uma boa faixa de terreno para se chegar a uma uniformização quanto a
alguns aspectos assistenciais, mas algumas organizações já avançam no sentido
de dar um caráter multidisciplinar à abordagem dos pacientes internados,
passando a privilegiar informações e percepções que até a algum tempo soariam
como risíveis, objeto de gracejo por parte principalmente de nós, médicos, e
dos gestores em geral. E ainda o são para uma parcela significativa, muitos
deles bem jovens.
“Vamos pedir piedade, Senhor piedade. Pra essa gente careta e covarde.
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem.”
Esse é outro aspecto cruel em
toda a história. As grades curriculares das faculdades de Medicina continuam a
reproduzir uma práxis voltada para o endeusamento da inovação tecnológica e
para a aquisição de valências essencialmente técnicas, desprovidas de vivências
humanísticas, a despeito de um discurso revolucionário de fachada. O acesso à
informação é cultuado e colocado num patamar de importância tão grande que dita
comportamentos: se você não leu, não acessou ou não clicou você não está
sintonizado. Não é surpresa que nesse contexto não sobre algum espaço para uma
discussão que leve em consideração esses tais aspectos humanísticos da relação
médico-paciente. A esse respeito recomendo a leitura da excelente revisão do
assunto no texto “A influência da visão holística no processo de humanização
hospitalar”, que está disponível na internet.
“Quero cantar só pras pessoas fracas, que estão no mundo e perderam a
viagem. Quero cantar o blues, com o pastor e o bumbo na praça.”
Dessa forma, voltamos ao ponto de
partida. De forma vertical, de cima para baixo, organizações, instituições e governos
tentam incutir valores e formas de pensar que tragam à tona essas reflexões, fomentando
a realização de congressos, publicações, cursos, sociedades de humanização, grupos
de discussão e por aí vai. Eivadas de boas intenções, todas as iniciativas, que
transitam no terreno da Bioética, ainda não encontram solo firme para a sua
fundação. E, cá entre nós, humanizar relações humanas? Tem redundância maior
que essa?
“Vamos pedir piedade, pois há um incêndio sob a chuva rala.”
O núcleo familiar, como sempre, sempre
será o cenário ideal para a formação do indivíduo humanista. Famílias que
prezam o amor ao ser humano de maneira incondicional, a abolição incondicional dos
preconceitos e a adoção de valores éticos e morais sublimes formam cidadãos
“humanos”, sem necessidade de serem doutrinados no futuro. Sejam médicos ou
quaisquer outros profissionais. E independente de convicções religiosas ou a
ausência delas. Mas já que não podemos interferir nesse processo de formação do
indivíduo, que na opinião de muitos está em franca deterioração em função dos
novos arranjos que a sociedade moderna incorporou, pelo menos as universidades,
centro formador do caráter do indivíduo sob vários aspectos, poderiam tentar
pelo menos trazer alguns desses elementos para a discussão e reflexão.
“Somos iguais em desgraça. Vamos cantar o Blues da Piedade”
É muito difícil aceitar que
médicos, principalmente aqueles que aparentam maturidade em função dos anos de
contato com o ser humano, reproduzam atitudes de desrespeito e de
“coisificação” do sagrado ato médico e de seu paciente aos seus cuidados, em
detrimento de um enaltecimento das “coisas” ao redor. No nosso cotidiano, independente
da arena aonde se encontra, a razão de ser será sempre o ser humano. Não se
pode esperar nada menos que uma atitude humanista na sua essência no trato com
o paciente que lhe procura ou lhe foi confiado. E com perdão da ironia, vejam
só, coincidentemente humano também.
Para finalizar, cito Antonio
Damásio, que no seu livro “O Erro de Descartes” (http://livros-downloads.blogspot.com.br/2010/09/o-erro-de-descartes-antonio-r-damasio.html),
uma obra que tenta mostrar que o famoso filósofo se equivocou ou separar a
razão da emoção no ser humano, escreve um capítulo abordando essas questões e
conclui, a meu ver de forma muito apropriada: “Se, como julgo, o êxito atual
dos tratamentos alternativos é um indício da insatisfação do público em relação
à incapacidade da medicina tradicional de considerar o ser humano como um todo,
é de prever que essa insatisfação irá aumentar nos próximos anos, à medida que
se aprofundar a crise espiritual da sociedade ocidental”
Vamos pedir piedade.