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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Resolução 1.956/10: gol de placa para o Conselho Federal de Medicina

Durante muito tempo hesitei em fazer algum tipo de comentário que envolvesse a questão da utilização de órteses, próteses, materiais implantáveis e materiais especiais, mais conhecidos pela sigla OPME. Reza a sabedoria popular que quanto maior a ignorância a respeito de um assunto suspeito, maior é a felicidade do indivíduo, e nesse caso não é diferente. Entretanto, já inicio esse texto informando que por mais ampla que seja a análise, ainda faltarão kilômetros de aspectos a serem comentados.
Na condição de coordenador médico, vivenciando experiências em hospitais de todos os tamanhos e complexidades, me foi impossível não adentrar nesse universo tão complexo e ao mesmo tempo tão velado que envolve médicos, administradores de hospitais e representantes das indústrias de materiais, medicamentos e equipamentos. Na maioria das vezes, mesmo com o peso da representatividade, os avanços no entendimento mais detalhado do fenômeno não foi possível em função do pouquíssimo acesso às informações fornecidas pelos seus protagonistas. Naturalmente, não é o tipo de assunto que se fale por aí. Mas eis que, após alguns pequenos avanços, finalmente surge um documento mais completo e objetivo para regular as relações entre os fornecedores e aqueles que em função da utilização destes insumos podem ter algum benefício paralelo. É interessante notar que apesar desse avanço, em nenhum momento a sociedade civil tomou conhecimento mais aprofundado a respeito do grau com que essas relações ocorrem. O consumidor final, ou seja, o paciente, que pode ser qualquer indivíduo (inclusive você que me lê), não sabe o que envolve a aquisição e aplicação ou implantação daquele material, droga ou equipamento que está sendo indicado para tratamento de seu problema de saúde. Esse é um perfeito exemplo de assimetria de informação, na qual o paciente não tem a menor possibilidade de questionar se o que está sendo indicado é o mais correto, o melhor, o mais durável, o menos sujeito a defeitos e revisões, e por aí vai.
As mudanças ocorridas no mundo e em nosso país nos últimos anos acentuaram ainda mais essa questão, proporcionando a oportunidade para que a discussão a respeito do tema tomasse seu lugar nas pautas. Comparando dois momentos na história recente do país podemos, dentre tantas outras diferenças, apontar algumas cruciais:
Década de 90:
- Pirâmide populacional iniciando processo de inversão, menor proporção de idosos;
- Insumos médicos importados com preços muito elevados, regras fiscais e tributárias desestimulando a aquisição destes no exterior;
- Produção industrial nacional incipiente e de baixa complexidade;
- Poucas inovações no mercado de drogas, próteses e órteses;
- Menor quantidade de especialidades médicas no país;
- Procedimentos de maior complexidade e custo geralmente repassados para e arcados pelo Sistema Único de Saúde;
- Ausência de cobertura contratual para inúmeros procedimentos para usuários de planos de saúde;
- Ambiente de inflação descontrolada e incertezas quanto às regras de comércio, desestímulo à produção e ao empreendedorismo;
- Menor quantidade de profissionais médicos entrantes no mercado;
- Poupança pública e individual em baixo nível;
- Demandas éticas pouco noticiadas, conflitos de interesse pouco visíveis.

Dias atuais:
- Inversão progressiva da pirâmide populacional, maior proporção de idosos;
- Alíquotas de importação mais baixas para produtos médico-hospitalares, competitividade, fortalecimento das empresas nacionais, maior oferta de produtos importados de maior custo e complexidade;
- Inovações sucessivas na cadeia de produção de artigos médico-hospitalares, principalmente próteses;
- Criação de inúmeras sub-especialidades médicas;
- Regulação da Agência Nacional de Saúde – ANS no número de planos de saúde, interferência direta na determinação de reajustes a usuários, fiscalização das operadoras;
- Reajustes de materiais especiais na Tabela SUS abaixo do esperado, viés econômico na preferência por materiais de origem nacional;
- Incorporação de procedimentos especiais e de alta complexidade a serem arcados por planos de saúde;
- Maior quantidade de profissionais no mercado;
- Demandas judiciais freqüentes;
- Maior acessibilidade à informação científica através da internet;
- Conflitos de interesse e demandas éticas mais visíveis, denúncias mais freqüentes;
- Interferência direta da indústria na preferência do profissional, com oferta de benefícios de ordem financeira e outros.

O constrangimento causado por esta prática vem despertando manifestações cada vez mais frequentes no meio médico, dado que nem mesmo escalas hierárquicas mais elevadas nas organizações são imunes à sedução, cada vez mais poderosa, que esses benefícios incluem. Estamos falando em valores que podem chegar a  cinco ou seis dígitos em função de percentuais sobre o valor de venda: no campo cardiologia intervencionista, por exemplo, equipamentos implantáveis tais como cardioversores/desfibriladores podem chegar a custar em média R$ 50.000,00 na tabela SUS. No caso dos materiais utilizados pelos planos de saúde, esses valores podem duplicar ou até mesmo triplicar.
Lembro-me bem de um texto publicado no portal do CFM em 2009, que mostrava a indignação do Dr. José Pedro Jorge Filho, intitulado "A Maldição da Prótese" (para ler na íntegra, acesse http://www.portalmedico.org.br/artigos/artigo.asp?id=1059). Nele, Dr. José Pedro coloca o assunto nas suas dimensões éticas de forma didática e contundente. Porém nada se compara à Resolução 1.956/10 (que pode ser acessada na íntegra em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1956_2010.htm, comentários em http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21177:resolucao-recebe-apoio-de-entidades&catid=3).
O texto da resolução diz que, ao invés de direcionar sua escolha através de determinadas marcas de sua preferência, o profissional solicitante deverá listar as características físicas e funcionais do material que ele necessita para a realização de um determinado procedimento, sem mencionar fabricantes. A partir de então, caberá à fonte pagadora (SUS ou operadora de plano de saúde) adquirir o material com as especificações descritas.  No caso de não concordância com o material disponibilizado por esta última, diz o artigo 5º: "O médico assistente requisitante pode, quando julgar inadequado ou deficiente o material implantável, bem como o instrumental disponibilizado, recusá-los e oferecer à operadora ou instituição pública pelo menos três marcas de produtos de fabricantes diferentes, quando disponíveis, regularizados juntos à Anvisa e que atendam às características previamente especificadas.
Parágrafo único. Nesta circunstância, a recusa deve ser documentada e se o motivo for a deficiência ou o defeito material a documentação deve ser encaminhada pelo médico assistente ou pelo diretor técnico da instituição hospitalar diretamente à Anvisa, ou por meio da câmara técnica de implantes da AMB (implantes@amb.org.br), para as providências cabíveis".  Se ainda assim persistir a divergência, diz a resolução que um perito especialista será nomeado para arbitrar a respeito da questão.
Mal o documento acabou de ser escrito e uma série de manifestações, a maioria de apreço e incentivo, começaram a surgir (veja o resultado da reunião da Câmara Técnica de Implantes da Associação Médica Brasileira em 10/12 em http://www.amb.org.br/teste/index.php?acao=mostra_noticia&id=6603). Outras tantas destacam a limitação da liberdade de atuação do médico, pedra angular da chamada boa prática. A esse respeito não há como deixar de registrar o frequente viés no qual tal argumento é levantado, a despeito da existência de excelentes profissionais que pautam seu trabalho com honestidade e retidão, sem se deixar seduzir por vantagens escusas. Mas o CFM entende que não há outra maneira, e nesse sentido foi um gol de placa.
A discussão não se encerra com a publicação da resolução. Problemas devem surgir em decorrência de uma interpretação mais ou menos fora do eixo, de acordo com quem a interpreta. Senão vejamos:
      * os planos de saúde devem ver na medida uma excelente oportunidade de oficializar aquilo que já vem sendo feito na prática. Com relação a este aspecto, muitas operadoras têm imposto aos profissionais que necessitam fazer uso destes materiais produtos fabricados por empresas desconhecidas ou com pouca tradição nesse mercado, a maioria nacionais, apesar de salvaguardadas as exigências legais e o registro destes na Anvisa. Muitos destes materiais despertam desconfiança, e nunca é demais lembrar que alguns riscos de mau funcionamento ou quebras (necessitando imediata intervenção para a retirada) existem, porque há diferenças de qualidade inequívocas entre os vários fabricantes, de uma forma geral. Aqui, como em qualquer segmento de mercado, maior qualidade e durabilidade estão geralmente associados a maior custo;
      * um dos possíveis efeitos benéficos apontados pelos autores da resolução seria uma menor quantidade de demandas judiciárias em função de os conflitos poderem agora ser arbitrados sem a necessidade de irem até os tribunais. Não há nenhuma garantia de que o judiciário, que sente-se muito desconfortável em ter que julgar questões dessa natureza, ser impelido a julgar a capacitação do árbitro perito designado, se assim for contestado por uma das partes;
      * e por falar em árbitro, a resolução também não fixou ainda os critérios para a nomeação deste. Falou-se em um perito especialista na área, e só. Aqui também não há, mesmo que esse perfil venha a ser parametrizado, nenhuma garantia de que ele mesmo não possa estar envolvido num conflito de interesses. Temos de um lado um médico, cidadão, e do outro uma grande empresa. Quem já viu o documentário "The Corporation" sabe do que estou falando;
      * os profissionais  de saúde têm muitas competências, na imensa maioria das vezes utilizadas para o bem. Se um fabricante de material especial inventar que um dispositivo é mais eficiente se for pintado de azul e não de vermelho, e somente aquele fabricante assim o faz , com toda a certeza não faltarão estudos e pareceres atestando a eficiência do dispositivo azul (como dizia um professor de Metodologia Científica, nesse meio você prova o que quiser desde que tenha um bom estatístico por detrás da pesquisa). Estando o profissional seduzido, ele pode tirar vantagem disso;
      * as tabelas de preço destes materiais não são uniformes. Diferenças exorbitantes no preço ocorrem entre países, entre estados, entre cidades, entre hospitais e entre operadoras de planos de saúde. Enquanto não houver a publicação de valores de referência, o trabalho de fiscalização será mais árduo.
É ver para crer. Torcemos muito para dar certo. Já estava na hora de alguém fazer algo a respeito.


terça-feira, 7 de dezembro de 2010

"Sobre a morte e o morrer" parte 5: a morte aonde menos se espera.

Um aspecto que passa frequentemente despercebido do público em geral, e inaceitavelmente ignorado ainda hoje pelos gestores de saúde em particular, é a questão da segurança ao paciente internado. Uma quantidade enorme de situações de risco está ocorrendo neste exato momento nos hospitais, não só no Brasil como no mundo inteiro, e geralmente são ocasionadas por erros de dosagem de medicações, interações medicamentosas não suspeitadas ou negligenciadas, efeitos adversos de drogas (antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos, contrastes iodados para exames de imagem, dentre outros) e derivados de sangue (incluindo reações alérgicas potencialmente fatais), efeitos nocivos ocasionados pelo uso de equipamentos utilizados em diagnósticos ou terapias (dialisadores, ventiladores mecânicos, cateteres inseridos com finalidade de monitoração clínica, etc..) e quebra de protocolos na assistência (tais como tempo de desinfecção de instrumentais cirúrgicos inadequado, falta de assepsia na manipulação de drogas e dietas, funcionários inadequadamente treinados no manejo de pacientes, dentre tantas outras situações). O Ministério da Saúde e a ANVISA, responsáveis pela regulamentação de normas voltadas para o setor, apresenta dados fragmentados e estatísticas imprecisas daquilo que se convencionou chamar de Farmacovigilância, Hemovigilância e Tecnovigilância, mas as dificuldades de mensuração destes eventos é realmente difícil. Como nosso país não privilegia uma política de fiscalização e capacitação na prevenção eficazes, os casos seguem acontecendo.

No dia 05/12, vimos acontecer mais um desses casos, com a menina Stephane dos Santos Teixeira, de apenas 12 anos. No caso dela, foi injetado em sua veia vaselina líquida ao invés de soro, levando a um agravamento do quadro, sua transferência para a UTI da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e posterior óbito (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/12/06/cremesp-e-santa-casa-abrem-sindicancia-no-caso-da-adolescente-que-recebeu-vaselina-na-veia.jhtm). Esse é um exemplo extremo, gritante e absurdo, porém extremamente ilustrativo de como as coisas ocorrem. E não é o único.

O fato é que na rotina dos hospitais os casos de danos à saúde dos pacientes, nem todos levando ao extremo do óbito, são bem mais sutis e podem facilmente ser atribuídos a outras coisas. No ambiente da UTI isso é levado ao extremo, pois nessas circunstâncias os pacientes, muitas das vezes idosos (população particularmente susceptível a efeitos adversos de drogas), portadores de múltiplas morbidades e crianças (principalmente neonatos, que não podem manifestar de forma objetiva o que sentem), são submetidos a inúmeros procedimentos e tratamentos que são necessariamente importantes, e que, com a consciência da equipe assistencial ou não, acabam por se constituir numa ação na qual o benefício supera o risco. E um eventual dano é assumido em função de uma possível vantagem no tratamento.

Outro setor crítico nesse aspecto é o centro cirúrgico. No embalo das reportagens oportunistas, a imprensa vem ressuscintando notícias de fatos passados, mas convenientes para engrossar a matéria. Recentemente uma criança de dois anos foi submetida a três procedimentos ao invés de um, como estava programado (veja http://noticias.uol.com.br/ultnot/agencia/2010/11/10/ult4469u64731.jhtm). Todas as medidas disciplinares e administrativas parecem ter sido tomadas nesse caso. A direção do hospital parece ter agido como deveria. Mas engana-se quem acha que situações como essa são raras. Não são. A coisa é tão séria que os maiores institutos de qualidade dos Estados Unidos, local aonde situações como essas tem um impacto tremendo (principalmente no que tange a idenizações por erros médicos), recomendam a realização de um "check-list" completo pela equipe cirúrgica antes de qualquer procedimento, englobando, dentre tantas outras perguntas, algumas prosaicas como "você tem certeza de qual membro irá operar?". Parece engraçado, mas operar o joelho errado, por exemplo, não é novidade em nosso país.


Especialistas no assunto advertem para o grau de conhecimento que um recém-formado em medicina tem a respeito da utilização das drogas em geral no tratamento de pacientes. Num estudo feito na Universidade de São Paulo, aonde se encontra a melhor escola médica do país, mais de cinquenta por cento dos entrevistados recém-formados não sabiam prescrever drogas de uso corriqueiro tais como analgésicos, drogas para vômitos e anti-inflamatórios. Muito menos seus potenciais efeitos interativos com outras drogas ou cuidados com superdosagem. Pesquisadores norte americanos vão mais além. Segundo vários deles, o custo total dos danos diretos e indiretos relacionados aos efeitos adversos de drogas e tratamentos só não superam aqueles relacionados às doenças cardiovasculares. Portanto, não é um detalhe: é um fato relevante.

Os hospitais, principalmente aqueles de maior porte (acima de 100 leitos) devem constituir uma Comissão de Farmacovigilância (que englobaria também a hemo e a tecnovigilância), para a proteção de seus pacientes e também de seus colaboradores. Existem trabalhos na literatura bastante extensos ensinando a buscar o efeito adverso e a preveni-lo, assim como manuais atualizados da ANVISA, mas é necessário se prontificar a encontrá-los, analisá-los, adaptá-los à realidade da organização e a partir daí adotar uma postura pró-ativa na prevenção dos mesmos. O investimento seguramente é superado pelo benefício aos pacientes.

Seria muito bom se as agências fiscalizadoras das atividades hospitalares, através de órgãos públicos (como as secretarias de saúde, por exemplo), pudessem criar algum tipo de programa de capacitação em diversos níveis, visando a sensibilização do pessoal hospitalar e o fomento à criação destas comissões, com exigência de notificações, como já é feito em relação às infecções hospitalares, e a promoção de ações conjuntas de melhoria dos padrões. O Conselho Federal de Medicina, por determinação legal, obriga a todos os hospitais e formarem algumas comissões, ditas obrigatórias (Comissão de Ética, de Ética em Pesquisa, de Infecção Hospitalar, e de Revisão de Prontuário), além do Regimento Interno do Corpo Clínico. A Comissão de Farmacovigilância não é sequer citada. Porque se depender da vontade dos gestores, no atual cenário de contenção de gastos e de acomodação em relação a novos desafios, ficaremos na mesma situação. Principalmente numa questão na qual na esmagadora maioria das vezes o dano é sutil e não pode ser relacionado inequivocamente a um possível erro de dosagem, ou de interação medicamentosa, ou seja lá o que for.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

"Sobre a morte e o morrer" parte 4: quando não se pode tentar alguma coisa.

Volta e meia os meios de comunicação fazem alusão a situações marcantes do nosso cotidiano, algumas vezes apontando, sugerindo soluções e fomentando debates de alto nível. Em outras vezes, nos dá a sensação ou que não tem o que falar e explora-se aquilo que já é sabidamente um assunto instigante, ou que o fazem de forma propositadamente distorcida por incompetência ou má fé. Entretanto, agindo de forma sensacionalista ou comedida, a questão da falta de leitos de UTI incomoda e frequentemente povoa o noticiário e o discurso dos políticos e gestores em saúde, seja de forma demagógica, seja de forma bem intencionada na expectativa de apontar soluções para a questão. Porque quem tem um mínimo de seriedade e conhecimento do assunto sabe muito bem que é um problema insolúvel em nosso país.

O Jornal "O Globo" publicou no dia 15/11 recente a primeira do que seria uma série de reportagens sobre a crise na saúde (mas parece que não houve continuidade), envolvendo principalmente as UTI's dos hospitais da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (a íntegra pode ser vista em http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/11/15/media-de-obitos-do-ultimo-trimestre-chega-8-6-por-dia-nos-ctis-publicos-e-32-3-maior-que-dos-ultimos-dois-anos-923028748.asp). Nela, descreve-se, a partir de uma situação pontual, um cenário de adversidades e inadequações na prestação dos serviços em saúde que realmente impressionam, ilustrada com alguns números contundentes:
      * morre-se nas filas de vagas para UTI no estado 258 pessoas em média por mês, ou 8,6 pessoas por dia;
      * existe um déficit de 510 leitos de UTI para suprir essa demanda;
      * em dois anos de atuação da Central de Regulação de Leitos do Estado, verificou-se que em média apenas 36% dos pedidos de vagas em UTI para pacientes graves são contemplados.

Por trás dos dados, alguns pormenores que passam desapercebidos. Os hospitais públicos no estado do Rio de Janeiro, a maioria grandes prédios construídos no modelo "hospitalocêntrico" tão difundido quanto equivocado em nosso meio, são organizações antigas, muitas das quais herdadas do antigo INAMPS (que por sua vez se apropriou dos IAP's). Boa parte deles possuem centros de tratamento intensivo - CTI (como o carioca gosta de falar, em contraposição à UTI), com uma quantidade de leitos ebm dimensionada internamente para esta finalidade. Em se tratando de hospitais públicos, lá, mais do qualquer outra grande capital, existem os hospitais da Secretaria Estadual de Saúde (a que se refere a reportagem), os Hospitais da Secretaria Municipal de Saúde (a construção de hospitais municipais de maior porte não é uma constante em nosso país, sendo um modelo pouco seguido por outras cidades), os antigos hospitais do INAMPS que hoje fazem parte da rede do Ministério da Saúde (com gestão e financiamento federais), e as filantrópicas (destaque para a Santa Casa de Misericórdia).

As vagas disponibilizadas para a internação de pacientes em hospitais públicos, inclusive aqueles que necesstam de UTI, devem ser geridas pelas Centrais de Regulação de Leitos, de acordo com a Portaria 1.559/08 do Ministério da Saúde. Isso acontece em todas as capitais e cidades maiores. Entretanto, no Rio de Janeiro, segundo a reportagem, os leitos de UTI disponíveis nos hospitais municipais e federais não entram na contabilidade pois não foram confiadas a sua gestão à Central de Regulação. Resultado: mais de 1000 vagas não entram na conta, o que não quer dizer que não estejam sendo utilizadas. Aqui, quem determina quem as ocupará é o gestor da unidade e não a central. Outro dado que, ao invés de trazer alívio traz maiores preocupações: segundo a Dra. Rosane Goldwasser, que para os intensivistas representa seriedade e comprometimento, "de 2006 a 2010 o número de leitos de UTI da Rede Estadual do Rio de Janeiro...aumentou de 87, 11 e 171 para 253, 42 e 372 leitos de UTI adulto, pediátrico e neonatal, respectivamente, e passamos a atender de 2000 pacientes em 2006 a 9391 pacientes, isto é, quadruplicou-se o número de atendimentos" (veja depoimento completo em http://www.amib.org.br/noticias.asp?id_noticia=827).

A questão é complexa, para variar, e qualquer análise acerca das repercussões desta equação que não fecha devem contemplar uma análise mais aprofundada a respeito dos avanços (e retrocessos) recentes. Fato inquestionável é que as secretarias de saúde em geral têm apresentado investimentos vultosos na construção, ampliação e modernização de UTI's em suas unidades hospitalares, preenchendo um vácuo de muitos anos nesse aspecto assistencial (dentre os muitos existentes). Mas é insuficiente. Não só pela deficiência absoluta e relativa de leitos para atender a totalidade da população mas também por alguns fatores, centrais e periféricos, tais como:
      * a população brasileira está envelhecendo, não só sua longevidade média aumentou como também a proporção de idosos em relação à população em geral. Isso significar dizer que há uma tendência natural ao aparecimento de doenças próprias desta faixa etária, que por sinal se sobrepõem umas às outras em virtude  de algum grau de melhora no acesso aos serviços de saúde e às políticas de barateamento de medicamentos de uso contínuo. Assim, é natural que mais pessoas precisem de UTI porque mais pessoas estão convivendo com doenças crônicas que geralmente se tornam graves a ponto de precisarem deste leito quando se complicam;
      * tal como dito acima, logo abaixo na incidência de população sujeita a dispor de leitos de UTI estão as vítimas da violência urbana. No Rio de Janeiro esse percentual, como todos sabem, é significante;
      * UTI construída não é UTI funcionante. Algumas unidades inauguradas não podem ou não conseguem fazer cumprir a sua função por um motivo absolutamente singelo: não existem profisionais em número suficiente para fazê-las funcionar. O profissional médico, enfermeiro, fisioterapêuta e técnico de enfermagem, para ficar apenas nesses exemplos, para poder trabalhar em uma UTI, necessita ser dotado de alguns conhecimentos específicos, além de ser altamente desejável que tenha um certo grau de amadurecimento profissional para exercer com competência essa função. E não se encontram profissionais com esse perfil, problema que atinge também a rede hospitalar privada;
      * os profissionais que atuam em UTI, justo aqueles que exibem uma qualificação adequada, somente aceitam ser remunerados com valores que justifique todo o investimento em capacitação que tiveram. As secretarias de saúde em geral não podem pagar esses salários, principalmente para os médicos, que vão prestar seus serviços na rede privada. Em alguns estados adotaram-se firulas administrativas para "driblar" o fato de a maioria destes não fazerem parte de seus quadros, e ainda por cima receberem salários competitivos, não sem resistências e críticas. Em alguns lugares serviços instalados retrocederam na qualidade em função da obrigatoriedade de preenchimento destes postos por profissionais do quadro funcional da secretaria, notadamente sem a qualificação necessária. Não seria distorcido dizer que em alguns lugares, se o paciente não morre por falta de vaga, morre por estar nela;
      * os poucos leitos existentes em UTI concentram-se nas grandes cidades. O que não quer dizer que o restante das populações das demais cidades não precisem de uma UTI. No interior de alguns estados do norte e nordeste, ter um agravo de saúde grave o suficiente que justifique internação em UTI (pública ou privada) é uma sentença de morte;
      * por fim, e não menos importante, nossa população é pobre. Não consegue vislumbrar a oportunidade de dispor de um plano de saúde na expectativa de sentir-se um pouco mais segura num momento como esse. Em torno de 60% dos leitos de UTI estão na rede privada, atendendo a cerca de 25-30% da população, enquanto os demais 40% restantes dos leitos atendem os restantes 70-75%. A conta não fecha. Mesmo nos hospitais privados eventualmente se noticia a dificuldade de se disponibilizar um leito de UTI. Ainda por cima, quando o idoso consegue ter acesso a um plano de saúde, frequentemente ele se vê obrigado a deixar de contribuir para o mesmo em função do aumento das mensalidades, por sua vez incrementada pelo aumento da sinistralidade presumida.

Nosso sistema público de saúde, pretensamente universal e integral, não é perfeito. Denominado Sistema Único de Saúde, apresenta uma complexidade e uma dificuldade de gerenciamento tão grandes quanto a população que dela faz uso (na teoria 75% da população, ou 150 milhões de pessoas. Na prática, e com a prerrogativa da lei, 100% da população, principalmente quando aqueles que têm planos de saúde a ele recorre em função de negativas de tratamentos). Não se pode negar que avanços consideráveis foram alcançados, mas, via de regra, é mais interessante noticiar a miséria humana em seus diversos cenários, é mais impactante e dá mais audiência. Muito raramente se noticia, por exemplo, que o mais ambicioso programa de transplante de órgãos do planeta é financiado integralmente pelo SUS (os transplantes não são cobertos pelos planos de saúde), muito menos as estatísticas a ele relacionada. Ou os dados do programa de tratamento dos soro-positivos para HIV, bancado integralmente por ele (os planos de saúde nem de longe cogitam a idéia de fazer algo semelhante). Na maioria das vezes quando se fala em SUS a imagem é emergência cheia, gente morrendo na porta do hospital por falta de vaga, os velhinhos dentro da ambulância sem atendimento....

Não se pretende com isso fechar os olhos para as iniquidades do setor, que existem, devem ser encaradas de frente, e exigem atitudes sérias por parte de seus gestores. Pelo visto, ainda vamos conviver com novos retornos a esse tema, apesar de, objetivamente, haver uma tendência à diminuição. Acabar, nunca.


domingo, 28 de novembro de 2010

"Sobre a Morte e o Morrer", parte 3: controvérsias no campo de batalha

É muito difícil encontrar um médico que trabalhe no ambiente de uma UTI que não tenha se defrontado com uma situação, cada vez mais presente e corriqueira, de se questionar se vale realmente a pena ou não utilizar os recursos técnicos à sua disposição naquele momento para prolongar a vida de um indivíduo cujas reais chances de recuperação de seu estado são nulas ou próximas a isso. Tal cenário enseja inúmeras reflexões, mas nos ateremos às de caráter técnico-científico:

1 - Quem pode afirmar que um paciente não tem mais chance de cura ou recuperação?
À exceção dos resultado bastante convincentes dos testes descritos no "Protocolo de morte encefálica", aprovado pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 1.480 de 08/08/97), não há nenhum elemento objetivo de predição absoluta a respeito do desenlace fatal de algum paciente, mesmo aqueles considerados portadores de situações de saúde muito graves. A percepção a respeito do inevitável desfecho pelos profissionais que atuam em UTI's ou áreas afins, assim como do tempo provável em que isso irá ocorrer, parte de um pressuposto baseado em larga experiência no acompanhamento de casos semelhantes por esses mesmos profissionais, a despeito da inexistência de dados exatos. Há que se frisar que todo paciente com diagnóstico de morte encefálica é, por natureza, um paciente muito grave, mas nem todo paciente muito grave está em morte encefálica. Aliás, no cotidiano das UTI's, a maioria não está. Carece, portanto, o profissional dos meios necessários para, de forma inequívoca, confirmar a inexorabilidade do desfecho fatal para aquele paciente em particular através de testes e exames padronizados. Entretanto, salvo raras exceções e desde que estejamos lidando com uma equipe competente, os demais elementos se juntam para compor um cenário no qual se pode sim afirmar com razoável grau de certeza que em certas situações não há absolutamente mais nada a se fazer a não ser privilegiar medidas de conforto.
Obviamente que para o leigo tais percepções passam ao largo com esse detalhamento. Mas a experiência mostra que na maioria das vezes os acompanhantes e familiares conseguem perceber mais ou menos o que está para ocorrer, independente do que informa a equipe assistencial.

2 - Há algum amparo legal em se proceder à descontinuidade de um tratamento, baseado na conclusão de que o investimento revela-se fútil?
Primeiro vamos definir melhor: tratamento fútil a um paciente, hospitalizado ou não, é, como diz o termo, aquele que não acrescenta ou agrega nenhum valor no processo de recuperação do mesmo, podendo mesmo às vezes até trazer prejuízos e sofrimento físico. Qualquer tratamento. Já o ato de suspender a aplicação tratamentos fúteis a pacientes internados, geralmente em UTI's, em função da ausência total de perspectiva de recuperação, é chamada ortotanásia. A esse respeito, no ano de 2006 o Conselho Federal de Medicina emitiu outra resolução (Resolução CFM 180.5/2006) discriminando o assunto, na época de sua divulgação gerando inclusive uma polêmica enorme em diversos meios (a esse respeito veja a excelente exposição do advogado Alexandre M. Moreira em www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3373/A-ortotanasia-e-a-Resolucao-CFM-1805-2006?src=busca_referer). Quanto ao amparo legal para a aplicação dos princípios emanados por esta resolução, estes não existem ainda, pois o nosso Código Penal não tipificou esse pormenor, e talvez nunca o tipifique em função de incontáveis distorções que podem surgir em torno de sua interpretação, muitas das quais de caráter religioso e doutrinário. Mas vale lembrar que deixar de aplicar tratamentos, exames e terapias sem fundamento em função do quadro irreversível do paciente não significa de forma alguma não tratá-lo com respeito e dignidade, promovendo medidas de conforto tais como baixo ruído, presença mais amiúde de familiares, analgésicos potentes e sedativos para aliviar qualquer desconforto, medidas de higiene adequadas, manobras posturais adequadas, e, principalmente, contato aberto, franco e solidários com os seus familiares e acompanhantes.

Precisamos pensar se efetivamente há a necessidade de haver dilemas nessa situação. Como quase tudo que envolve o tratamento do paciente grave, principalmente na UTI, muitas variáveis estão em jogo e muitas pessoas estão envolvidas. Mas não se deve perder de vista o fato de que o objeto de maior atenção continua a ser o paciente. E não se pode deixar, em momento algum, de abrir mão de uma abordagem objetiva, franca e paciente com os seus familiares e acompanhantes. Independente de credo ou momento psicológico, há uma tendência a uma maior receptividade por parte destes com relação às informações que são prestadas, não sendo raro o estabelecimento de uma relação de confiança para com a equipe assistencial no que diz respeito às intervenções ou a ausência delas, e seus motivos. Em resumo, uma relação de respeito e acolhimento com familiares faz uma enorme diferença em como a equipe pode atuar nessa questão, ficando mais à vontade para adotar a melhor postura frente ao paciente sem receio de manifestações inesperadas.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Sobre a morte e o morrer" parte 2: a informação sobre a morte tratada com desdém pelos hospitais

Alguns aspectos da assistência hospitalar frequentemente passam desapercebidos do público em geral. Outras vezes passam desapercebidos também dos gestores hospitalares que, absorvidos no cotidiano das organizações em múltiplas tarefas, frequentemente não percebem alguns fatos relevantes ou não são informados adequadamente sobre os mesmos.
No ambiente hospitalar, é preocupante ver que na maioria das organizações consideradas de primeira linha, assim chamadas em função de avanços nos seus processos de incorporação tecnológica, de políticas de qualidade e de capacitação dos seus quadros, ainda ocorram inadequações graves na condução de processos elementares. Uma dessas inconformidades diz respeito à forma como essas organizações tratam o óbito de um paciente internado.
Devemos sempre lembrar que a "Declaração de Óbito" (mais comumente chamada Atestado de Óbito) é a única fonte de informação dos órgãos governamentais para a realização de estatísticas sobre morbi-mortalidade na população, que por sua vez vão gerar políticas voltadas para um melhor planejamento da assistência médica nas grandes populações através do direcionamento de recursos, criação de unidades de saúde, contratação de profissionais e realização de campanhas. Além disso, é fonte de dados para pesquisadores de agências nacionais e internacionais em diversos trabalhos científicos que envolvem, inclusive, a criação de "ranking´s" de eficiência na implantação de políticas de saúde. Os organismos buscam as informações nos cartórios, aonde são emitidas as "Certidões de Óbito" com os dados relacionados à causa da morte (ou causas), por sua vez fornecidos por quem preencheu a Declaração de Óbito, ou seja, o médico.
Eis que em nosso país na imensa maioria dos casos esse documento, de enorme valor enquanto fonte de dados, é manipulado por profissionais que não tem o preparo adequado para preenchê-lo. O médico que assina a Declaração de Óbito num paciente hospitalizado via de regra não conhece e não prestou antes assistência direta ao paciente que acaba de falecer, algumas vezes apenas o fez em seus momentos finais, em função do atendimento da intercorrência que culminou com o óbito. É geralmente um plantonista de um outro setor, e que tem, entre as suas obrigações, o dever de assistir às urgências de pacientes internados. 
O documento que ele assina tem espaços destinados à colocação do evento principal que levou àquele desfecho, assim como os eventos secundários que podem ou não estar relacionados ao evento principal. Ao todo, são cinco espaços destinados à colocação de diagnósticos. Existe também um espaço destinado à caracterização do grau de relacionamento entre o profissional que assina o atestado e o paciente, onde se pergunta se o profissional que assina o documento é aquele que prestou a assistência durante o seu período de internação. Dentre as opções, existe uma chamada "substituto", que vem a ser a mais frequentemente assinalada. 
Engana-se quem pensa que esses espaços são preenchidos de forma adequada, fazendo com que o valor da Declaração de Óbito seja respeitado. Na imensa maioria das vezes as organizações preferem ignorar essa relevância, deixando o preenchimento a cargo de médicos sem treinamento no preenchimento do documento, e o pior, sem conhecer o paciente. Isto porque o profissional que assiste ao paciente, o médico titular que o conhece, geralmente não está disponível para comparecer ao hospital naquele momento e inserir os dados da forma correta. Outras vezes ele não é localizado. E em outras, quando o paciente é assistido por dois ou mais profissionais especialistas simultaneamente, é extremamente comum a escusa de um ou todos em assinar o documento, ou mesmo orientar o preenchimento deste, sob a alegação de que não é o médico assistente, mas apenas um consultor. Por isso a quadrícula "substituto" é a mais frequentemente assinalada.
A equipe de enfermagem frequentemente arca com a responsabilidade de dar o melhor direcionamento a um processo que deriva de uma responsabilidade ética e legal única e exclusivamente médica.
Os hospitais que implantaram núcleos de epidemiologia parecem ter um desempenho melhor na qualidade da informação gerada pelas Declarações de Óbito, seja através de uma ação educativa com os profissionais, seja através de proposições junto à alta direção que privilegiem um adequado registro. Aqueles que implantaram equipes de médicos hospitalistas também experimentam registros um pouco melhores.
Uma das ações possíveis é, por mais banal que possa parecer, estipular no documento de internação o profissional titular pela assistência, para que este seja acionado em situações como essa, seja para orientar o preenchimento da declaração (no caso de não estar disponível para preenchê-lo), seja para fazê-lo pessoalmente. Se em algum momento da assistência sua participação na condução da assistência àquele paciente deixou de ser relevante, e outro profissional passa a sê-lo, este último assume a titularidade.
O que se espera é que a qualidade da informação seja adequada, servindo assim ao propósito fundamental de embasar políticas de saúde, além de servir de ferramenta de planejamento interno e fonte de dado confiável em demandas jurídicas ou relacionadas à idenização de familiares por seguradoras.
É, antes de tudo, um compromisso com a verdade. Não fica bem uma organização fornecer uma informação desta natureza de forma leviana ou insuficiente.
Nota: alguns textos interessantes para quem quiser se aprofundarno assunto (e são poucos) -

http://www.scielo.br/pdf/rsp/v24n4/09.pdf

http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/iesus_vol11_1_editorial.pdf

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

"Sobre a Morte e o Morrer", parte 1: generalidades

A frase acima é o título de uma obra ímpar na literatura, não necessariamente médica, escrito por uma inglesa em meados do século passado chamada Elizabeth Kubler Ross. Com ela, inaugurou-se uma ciência chamada Tanatologia, que se ocupa de estudar a morte nas suas dimensões forenses, psicológicas, sociais e antropológicas. Ou seja, é um estudo multi-dimensional. E nem poderia ser de outra forma, pois são tantos os aspectos relacionados a este inevitável momento, que reduzi-lo a um enfoque apenas seria, no mínimo, injusto.
Eu recomendo a leitura deste livro para profissionais de saúde e público em geral. É uma boa forma de se introduzir num assunto tão cercado de tabus, e que a todo instante envolve aqueles que trabalham nos hospitais, particularmente nas UTI's.
Basicamente, seu relato trata de questões relacionadas aos pacientes portadores de doenças terminais, ou seja, aqueles em que não há nenhuma expectativa de cura de sua doença básica, e que nada pode ser feito a não ser minorar o sofrimento físico e espiritual, além de compreendê-los e dar o suporte necessário para que ele percorra todo um roteiro instintivamente seguido sem ter sido apresentado, que envolve a negação, a revolta, a negociação, a introspecção e a aceitação.
Após tantos anos trabalhando nesse ambiente, me dei conta que não importa a experiência que você adquire no trato diário do paciente, ser humano como você que me lê: não há como não se sensibilizar com o sublime momento em que o espírito vivo abandona gradativamente a matéria que fica. Principalmente em ocasiões nas quais as condições a que um paciente está submetido (nas UTI's por exemplo) são muitas vezes degradantes em função de seu lastimável estado de saúde, mas que são as tecnicamente recomendadas, na expectativa de reversão de quadros clínicos muitas vezes tão graves que soa falsa a afirmação de que o mesmo está "confortável". Quem poderia estar confortável tendo seu corpo aviltado de maneira não consentida por tubos, cateteres, equipamentos, sondas, fraldas e outras tantas coisas estranhas?

Voltamos a falar sobre mais alguns aspectos adicionais nas próximas postagens.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Lá vamos nós de novo com a CPMF...

Se tem uma coisa nesse país que é consenso entre todos os cidadãos, essa coisa chama-se aversão a impostos. Todos odeiam. E acredito que a grande maioria assim se comporte em função da forma imoral e irresponsável com o qual as autoridades públicas tratam nosso dinheiro.
A CPMF, criada e ardorosamente defendida por uma autoridade incontestável no cenário político da época, Dr. Adib Jatene, então Ministro da Saúde, desvirtuou-se completamente de sua finalidade, pois na prática serviu para cobrir buracos alheios. Vendida como uma das principais soluções para o crônico financiamento deficiente da saúde, acabou por se transformar num recurso que cobria tudo, menos aquilo para qual foi criada. E acabou extinta não por algum tipo de demonstração de cidadania e bom senso dos parlamentares de oposição do congresso e senado federal, mas pela pressão popular e das entidades civis.
Eis que o Ministro Temporão resolve abraçar a bandeira da recriação da CPMF, só que agora travestido de outro nome: CSS - Contribuição Social da Saúde. O discurso permanece o mesmo, aquele blá, blá, blá de sempre de que agora seria diferente, pois novos dispositivos criados pelos parlamentares no Congresso Nacional para impedir o que ele chama de "desvirtuamento de sua finalidade". E ainda tem a cara-de-pau de dizer que "isso não passa de lenga-lenga e ladainha", acerca da necessidade ou não da criação do novo imposto (veja entrevista completa no O Globo, http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/11/09/temporao-volta-defender-mais-recursos-para-saude-mas-nao-com-modelo-da-cpmf-922982789.asp). 
Ninguém mais se recorda da Emenda 29. Criada por ocasião dos 10 anos de existência do SUS, ou seja, produto de uma gestação prolongada e intensamente refletida e debatida, a proposta põe fim a essa discussão estéril, antipática e imoral (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm). Até hoje está na gaveta, por falta de vontade política daqueles que deveriam ser os primeiros a defendê-la. Vejam o artigo de Gustavo Corrêa, publicado no O Globo de 08/11/2010 (http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2010/11/08/regulamentacao-da-emenda-29-melhor-caminho-para-elevar-financiamento-da-saude-922968320.asp) para maiores detalhes.
Senhor Ministro, nosso problema é sim, de gestão. Ache os meios técnicos e, principalmente, morais e legais de manter a integridade da utilização destes recursos que a saúde pública no Brasil encontrará rapidamente os 40 a 50 bilhões de reais que o senhor busca com a sua CSS.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sepse: comentários finais.

Uma vez definida e mais ou menos explicada quanto aos seus fatores associados, além de já termos comentado a respeito de alguns aspectos relacionados à sua incidência, mortalidade e fatores vinculados a problemas no seu diagnóstico e tratamento nos hospitais do Brasil, completo essa sequência citando alguns pontos adicionais.

Na verdade, bom era o tempo em que grave mesmo era ser identificado na escola como portador de piolho na cabeça, sendo necessário se submeter ao "tratamento" intensivo com Neocid. Naquela época morria-se muito de infecções graves, como hoje, mas seguramente o papel atribuído aos germes resistentes, principalmente aqueles adquiridos nos hospitais, não era tão importante como é hoje. Numa relação de causa e efeito simples, o destaque (ainda pouco) dado ao assunto sepse vem crescendo na mesma proporção em que se notificam bactérias super-resistentes. O que é uma pena, pois ela já faz parte do cotidiano das UTI's, contribuindo significativamente para a morte de muitos pacientes potencialmente tratáveis. E digo potencialmente porque existem sim recomendações muito bem estabelecidas para o tratamento da sepse, e que se baseiam numa premissa básica: rapidez.

O fato a se lamentar é que os serviços de saúde em geral não costumam favorecer as abordagens imediatas e às vezes agressivas que devem ser feitas nesses casos. Para piorar, a classe médica também não está adequadamente preparada para identificar essa situação e tomar as providências cabíveis imediatas. E são providências muito básicas, sem maiores complicações.

Em 2001, num artigo do The New England Journal of Medicine, a revista científica médica mais respeitada do mundo, um pesquisador chamado Emanuel Rivers chamou a atenção para como as medidas simpes feitas na própria emergência dos hospitais tinham repercussões tremendas na sobrevivência daqueles que se apresentavam com suspeita de sepse (se tiverem curiosidade, vejam www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa010307). Desde então esse "manual" se tornou uma referência entre os estudiosos, que juntamnete com o lançamento no mercado mundial da única droga realmente promissora aprovada para tratamento das alterações graves induzidas pela sepse no homem, a dotrecogina alfa ativada, motivaram a realização de algumas camapnhas para esclarecimento da classe médica a respeito do tema. Diga-se de passagem, foi necessário um ente privado, no caso o laboratório que fabrica a droga, fomentar a discussão e trazer para perto dos profissionais esse conhecimento, que deveria ser de responsabilidade dos órgãos públicos de saúde. Evidentemente que a prescrição da droga, caríssima por sinal, recebeu um impulso. Afinal, não existe almoço de graça.

Ainda assim são louváveis, porém ainda tímidas, as iniciativas de algumas associações. Dentre elas, destaco o Instituto Latino Americano de Sepse - ILAS (www.sepsisnet.org), entidade sem fins lucrativos, que dá uma orientação muito boa e completa para o público em geral e para os profissionais de saúde. Vale a pena conferir.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ainda sobre a sepse.

Começo fazendo um esclarecimento a respeito de uma dúvida de um leitor.

A sepse é um estado que pode ser provocado a partir de uma infecção em qualquer parte do corpo, causada por uma bactéria, um vírus ou um fungo. Por serem agentes infecciosos, via de regra eles somente são eliminados se, dentre várias medidas, forem utilizados os antibióticos adequados nas doses e vias de utilização corretas. Entretanto, em se tratando de uma bactéria multi-resistente (como no caso da KPC), a eficácia da utilização do antibiótico fica comprometida em função de sua resistência. Nessa circunstâncias, o resultado geralmente não é o melhor e frequentemente o paciente morre.

Uma vez mais ou menos dimensionado o problema, que, volto a repetir, é de total desconhecimento da população em geral (acostumada muitas vezes a decorar nomes de doenças comuns), vamos ao lado negro da questão.

Somos um país de 130 milhões de pessoas, com uma população que tem acesso a serviços de saúde privados, ou seja, que podem pagar um planos de saúde, na faixa de 25% (mais ou menos 33 milhões de brasileiros). O restante é atendido, e de forma geral bem atendido, pelo Sistema Único de Saúde. Convenhamos, tratar de forma justa e garantir o acesso deste contingente de forma universal é um tremendo desafio, mas muito se avançou nesse processo. Dentro desse contexto, algumas coisas ainda estão bastante longe do ideal, entre elas a capacitação dos profissionais de saúde no serviço público para o manejo da sepse, as condições materiais oferecidas nos hospitais para este manejo e a disponibilização de vagas para o atendimento deste paciente grave (Unidade de Terapia Intensiva ou Semi-Intensiva).

Um artigo escrito pela jornalista Karina Toledo no Estado de São Paulo do dia 28/10 ilustra bem esta questão, que reflete de forma tão desigual nossa realidade. Segundo ela "os pacientes dos hospitais públicos tiveram de esperar, em média, seis horas pelo diagnóstico. E só em 24% dos casos a sepse foi identificada na primeira hora. Nos privados, o tempo de espera foi de três horas e em 39% dos casos o diagnóstico ocorreu em menos de uma hora".  Vale a pena ler a reportagem inteira no http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101028/not_imp630904,0.php, e se tiver dúvidas mande para a gente esclarecer.

A gente volta a falar sobre isso mais à frente.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Você já ouviu falar em sepse?

O público em geral, e infelizmente uma parte dos profissionais de saúde, desconhecem o termo "sepse". Na esteira do sucesso de público da superbactéria KPC, um conhecimento acerca dessa tema seria bem conveniente.
A sepse (antigamente chamada septicemia) é uma síndrome e não uma doença. É, portanto, um conjunto de sinais e sintomas na grande maioria das vezes associadas a infecções mais graves de qualquer localização. Esses sinais e sintomas são produzidos por toxinas provenientes do próprio agente infeccioso (bactéria, vírus ou fungo) e, na maior parte, por substância chamadas "mediadores inflamatórios" produzidas por células do nosso sistema imune, despejadas em grande quantidade na circulação em resposta à presença do organismo invasor. Esses mediadores inflamatórios, e não o agente infeccioso em si, são os maiores responsáveis pela sucessão de eventos danosos que ocorrem no organismos, caracterizadas em última análise pela incapacidade de manter uma adequada perfusão sanguínea nos diversos tecidos do corpo.
Se o processo não for interrompido de forma adequada, podemos ter um colapso circulatório ao qual chamamos de "choque séptico". A manutenção desse estado, mesmo que o tratamento adequado seja instituído, promove o mal funcionamento (por má perfusão sanguínea) dos órgãos vitais tais como coração, cérebro, rins e fígado, levando ao que chamamos "disfunção orgânica", em boa parte das vezes com graves consequências, quando não leva ao falecimento do paciente.
A importância de trazer essa reflexão parte do pressuposto de que entre 50 a 60% dos pacientes com sepse na sua forma grave não resistem e morrem nas UTI's, tanto no Brasil quanto no mundo, a despeito do melhor tratamento. E o pior é que dentro desse contexto de KPC's e outras bactérias super-resistentes, que como falei antes não é um evento isolado (ao contrário, corriqueiro), o diagnóstico mais frequente entre todas as UTI's tomadas em conjunto é justamente a sepse.
Isso posto, falaremos um pouco mais sobre as repercussões globais desse fato nos próximos post's, mas era necessário fazer essas definições.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Tá sentindo o quê?: O que está por trás do sucesso da KPC, a superbactéria.

Tá sentindo o quê?: O que está por trás do sucesso da KPC, a superbactéria.

O que está por trás do sucesso da KPC, a superbactéria.

É interessante notar como dentro do comportamento humano as coisas se repetem de forma absolutamente previsível. No caso desta nova "onda" midiática da superbactéria KPC (na verdade um germe da família dos gram negativos chamada Klebsiella Pneumoniae. O "C" vem de carbapenemase, que significa que ela é produtora de uma substância - a carbapenemase - que a torna resistente a uma classe de antibióticos muito potente chamada carbapenêmicos), não existe nada de surpresa.
Bactérias multi-resistente, ou, mais modernamente falando, "super-bactérias"; são companheiras inseparáveis de hospitais, clínicas e também de domicílios, com o advento do fenômeno da internação domiciliar ("home-care"), sendo observados surtos mais ou menos divulgados na imprensa de acordo com o veículo utilizado. O que envolve de anacronismo da notícia é a cortina de fumaça que o Ministério da Saúde criou em torno da situação, através de pronunciamento do ministro e da ANVISA a respeito de medidas urgentes que serão adotadas na compra e venda de antibióticos pelas farmácias, para o público leigo passando a impressão de que essa é uma das estratégias mais importantes no combate a surtos futuros. A assertiva está correta, aliás há muito tempo especialistas e profissionais vem requerendo uma atitude de decência por parte dos governantes para acabar com a farra da venda de antibióticos (muitos deles sem eficácia, ultrapassados ou não recomendados em outros países) sem controle adequado. Mas a eficiência de uma medida desta natureza no controle de um germe hospitalar com este potencial de resistência é nula, por um motivo singelo: nenhum antibiótico à venda nas farmácias tem ação sobre este tipo de bactéria. A medida tem valor enquanto política de controle de disseminação de germes resistentes na população em geral, na prevenção de super-infecções e na redução de efeitos adversos causados por estas drogas. Mas já deveria ter sido implantada há muito tempo.
O mais engraçado da história é ver como as Secretarias de Saúde de diversos estados da federação, tais como São Paulo, Ceará, Paraíba, Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, além do próprio Distrito Federal, vêm divulgando suas taxas de infecção pela "super-bactéria KPC" como se fossem um fato trivial, mas ao mesmo tempo passando a impressão de uma disputa para ver quem ganha em casos.
O fato é trivial, sim. Mas não menos grave por isso.
Episódios como essa KPC são frequentes e ocorre a todo momento no Brasil e no mundo, envolvendo bactérias diversas, e são de conhecimento das respectivas Secretarias Estaduais de Saúde, responsáveis pelas políticas relacionadas a resistência bacteriana nos hospitais, mas nem sempre são de conhecimento da imprensa. Muitas vezes sequer são divulgadas além dos muros do hospital. Mas quase sempre o surto se extingue ou se mantém sob controle através da adoção de medidas locais mais eficientes de adequação de tráfego, de melhor aplicabilidade de testes de sensibilidade antibiótica nas infecções, no aprimoramento de medidas de higiene, no "mix" mais eficiente de drogas, ou na combinação destas medidas. Ainda bem.
Quem não está muito "bem na fita" são os profissionais de saúde, principalmente os médicos, que em última análise são os principais responsáveis pelo aparecimento destes micro-organismos por serem aqueles que prescreverão os antibióticos, neste caso de forma inadequada, e gerarão todo um ciclo de eventos que culmina na eleição dentro daquele meio de germes multi-resistentes, assim alçando essa condição geralmente por mutação. Venho observando o trabalho de alguns profissionais ligados diretamente às Comissões de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH's) de alguns hospitais que não parecem ter a clareza necessária no ato de indicar este ou aquele cuidado, ou este ou aquele antibiótico para uma determinada situação particular. Médicos que atuam nas Unidades de Tratamento Intensivo são propensos também a fazerem escolhas infelizes quando se trata de antibióticos. E, via de regra, toda a comunidade que frequenta o hospital não adota as medidas para evitar a disseminação das infecções hospitalares de forma certa, tais como uma simples lavagem das mãos de forma correta. Está pronto o caldo aonde as KPC's da vida vão se desenvolver e aparecer no Jornal Nacional.
Quanto aos antibióticos em si, não mais estão disponíveis na quantidade que se tinha a dez ou quinze anos atrás, pois a indústria farmacêutica percebeu que a pesquisa, fabricação e comercialização de novos agentes que superem essa resistência não compensava o custo no investimento aplicado. Tanto é que nos últimos anos quem tem acompanhado o assunto vai perceber que pouquíssimos lançamentos surgiram, com indicações cada vez mais específicas e preços cada vez mais salgados.
Mesmo nessas situações, o que fazem nossos profissionais? Na falta de perspectiva para se obter a melhora dos nossos pacientes internados, graves, muitas das vezes moribundos e com indicação técnica apenas para cuidados paliativos, prescrevem essas mesmas drogas, específicas para uma determinada condição, de forma empírica e irracional para um paciente com este perfil, não respeitando anos de testes clínicos que não a indicam para aquela finalidade.
Em suma, o problema não é novo, as estratégias oficiais divulgadas para o combate são boas (vem atrasadas) porém inócuas, e fique atento sim, leitor, pois você ou alguém de seu círculo de relacionamento pode estar em contato com essas super-bactérias e nem sequer desconfiar. A KPC é apenas, eu disse apenas, uma delas.Veja também

Tá sentindo o quê?: O que está por trás do sucesso da KPC, a superbactéria.

Tá sentindo o quê?: O que está por trás do sucesso da KPC, a superbactéria.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Doutor, você conhece sua energia?

"Espera-se que você pratique o bem, e não que apresente desculpas."

Ralph Emerson

Nunca o médico teve tanto poder em suas mãos para catalisar transformações no ambiente ao seu redor, seja ele sua pequena área de atuação, no consultório por exemplo, ou nos corredores das esferas de poder no âmbito público ou privado. E as razões para isso são muito simples. 
A dimensão da palavra saúde ultimamente vem se revestindo de significados novos e muitas vezes confusos, integrada agora ao glossário dos gestores e executivos no negócio saúde (ou doença, dependendo do ponto de vista). Mas o seu real significado, dentro de um contexto purista e ao mesmo tempo plural, atravessa a necessidade de significação frequentemente imposta pelos discursos para se situar exatamente aonde deve ser destacada: na boa prática do cotidiano.
Assim sendo, quero homenagear meus colegas desta profissão que dificilmente deixará de exercer seu encanto para quem faz dela seu mister, mesmo naqueles que se julgam desiludidos com tantas regras de mercado e aviltamento do seu trabalho.
Mas essa é a nossa realidade, a realidade de um país que tenta melhorar, e de um povo, em sua imensa e esmagadora maioria, que muitas vezes se satisfaz apenas com um sorriso do doutor. Não nos furtemos de distribuir essa energia que nem sequer desconfiamos que temos. E vamos utilizá-la para o bem, não importa onde, quando e como.
Porque, convenhamos, que pagamento melhor podemos ter quando vemos que nosso conhecimento trouxe um alento, uma esperança ou uma gratidão sincera de um ser humano?
Pequenas atitudes somadas podem convergir em grandes transformações. Vamos tentar fazer o melhor ou vamos nos desculpar?
Parabéns a todos os médicos no seu dia, e em todos os dias.

Soluções perfeitas: cuidado com o que se lê.

A edição brasileira da Harvard Business Review de abril deste ano traz quatro artigos que falam sobre gestão em saúde, com foco no diagnóstico de causas para seu desempenho ruim dentro do contexto econômico, principalmente dentro dos Estados Unidos. Elenca também alguns caminhos para a solução de problemas dentro da perspectiva da liderança, que pode ser exercida pelo médico, principalmente no ambiente hospitalar.Sem sombra de dúvida essa edição mexeu com aqueles que tratam do tema, pois desde então passou a ser referência obrigatória em congressos de gestão em saúde e outros encontros. A Escola de Administração de Harvard há muito é reconhecida como um laboratório de inovação nas práticas gerenciais, ultimamente com foco também na saúde. Michel Porter e seu "Repensando a Saúde" trouxe à tona um coro de manifestações, a maior parte de concordância quase que irrestrita aos princípios por ele apontados da boa gestão estratégica (sua especialidade) em saúde, assim como às suas inúmeras sugestões de como contornar esse cenário adverso na história dessas organizações. Seguindo essa trilha, outros como Clayton Christensen e colaboradores, com o seu "Inovação na Gestão da Saúde", também da mesma escola, têm trazido algumas importantes colaborações aos nossos gestores tupininquins.
Como prudência e dinheiro no bolso não fazem mal a ninguém, é recomendável um pouco de cautela nessa hora. Apesar de ser sobejamente conhecido de que carecemos de tradição na arte de gerir, tenho observado o quão influenciável é a nossa elite diretiva das organizações de saúde, não só dos hospitais como também dos demais atores corporativos (planos de saúde, consultorias, provedores de serviços) e profissionais em geral. Não posso deixar de me preocupar com alguns aspectos que soam mal "traduzidos" para nosso meio, dentre os quais:
        1 - Nossa economia definitivamente não é igual à dos Estados Unidos, inspiradora dos preceitos emanados pela Escola de Harvard;
        2 - Nossas crenças e princípios tradicionais de condução dos negócios em geral, e em particular na saúde, ainda não estão alinhados (e talvez nunca estarão) com o caráter estéril e cirúrgico das intervenções reiteradamente sugeridas pelos mentores da boa gestão naquele país. Diferenças éticas, morais, religiosas e de costumes nos impedem de absorver certas recomendações na sua integralidade;
        3 - Nosso meio carente de estudos confiáveis, às vezes carente de confiança em estudos bem conduzidos, é fortemente influenciado por concepções externas muitas vezes focadas em exemplos dispersos de sucesso em uma ou outra ação, de uma organização aqui e outra acolá, reunidas "num mesmo saco" para finalmente induzirem à conclusão, uma vez montado esse mosaico, que estamos diante de uma alternativa estratégica viável. A intenção pode não ser essa, mas justifica-se uma assertiva interessante com justificativas enviesadas;
       4 - Há um consenso universal a respeito das diferenças históricas e regionais entre as organizações de saúde e o impacto que medidas genéricas podem acarretar nas mesmas. Nossa multiplicidade de modelos é de deixar qualquer teórico, no mínimo, desconfiado quanto a viabilidade de determinadas ações sublinhadas como essenciais ou genéricamente inevitáveis;
       5- O médico não é lider de coisa nenhuma no seu negócio. Quando muito, um bom administrador de seu pequeno universo material de finanças bancárias e aquelas relacionadas à gestão de suas faturas de convênios, à administração básica de seus espaços de trabalho, e à condução de sua produção acadêmica, quando tem tempo para isso. Assim sendo, dentro da realidade cotidiana imposta aos profissionais de saúde, principalmente à classe médica, soa como utópico o papel apocalíptico destinado a esse indivíduo na revolução que se espera que aconteça, para o bem de todos e a sustentação do negócio saúde em seu contexto macro-econômico.
Como sempre tento ressaltar, as ações no seu micro-ambiente de trabalho cotidiano serão o divisor de águas no sucesso ou fracasso de qualquer organização. Assim, soluções que envolvam grandes mudanças comportamentais e, principalmente, que envolvam riscos à segurança do pequeno e limitado escopo de ação do médico, podem ter absorção muito limitada. E de fato assim o são: inúmeras intervenções têm sido tentadas no fortalecimento da participação do médico na co-gestão de seu negócio, principalmente dentro do ambiente hospitalar, ao longo dos últimos anos em nosso país. Não há evidências científicas, ou melhor, numéricas, de que o impacto correspondeu a um resultado operacional esperado. E se ocorreu, ainda aguarda por uma divulgação adequada.
Nem por isso as iniciativas não devem ser tentadas. Sempre deverão ser. Imaginar um cenário sem algumas conquistas atribuídas aos novos preceitos modernos de gestão em saúde é negar uma realidade tangível e bem documentada de conquistas pontuais, conseguidas por algumas organizações de maior representatividade e fôlego financeiro. E mesmo que soem como inadequadas à nossa realidade, o gestor criativo pode adaptá-las para daí tirar o proveito que almeja. Mas atribuir ao médico a responsabilidade e o peso da liderança dentro deste viés de heroísmo, como alguns preconizam, é, no mínimo, uma tremenda inocência.
O médico pode e deve ser envolvido na cadeia produtiva da organização de saúde. Sua participação cada vez mais eficiente é um processo de amadurecimento que terá um teto, que por sua vez irá variar em tamanho de acordo com uma série de fatores. Mas a construção dessa participação é o elemento catalisador da formação do bom parceiro, não do herói ou líder fantástico. Estamos falando da Gestão do Corpo Clínico, mais uma vez.
Sem receio de ser repetitivo, penso que as organizações de saúde devem conhecer melhor seus profisionais, principalmente seus médicos, e acompanhar de perto seu desempenho para daí traçarem de comum acordo estratégias de colaboração mútua baseadas no estabelecimento de compromissos e metas escalonadas, mas nunca atribuindo a estes um papel de "liderança", como se fosse uma virtude enrustida pronta a despontar a qualquer momento. O médico quer ser tutelado, ele quer uma parceria com resultados imediatos e objetivos, e não um discurso edificante de metas a médio ou longo prazo. E quem deve cumprir esse papel de aproximação são os gestores, a quem cabe a missão de, sem estrelismo, construir um mapa de ações e um roteiro de iniciativas exequíveis capazes de mobilizar toda a organização numa mesma direção tendo como palavra de ordem a construção compartilhada de responsabilidades.

Gestão do Corpo Clínico: modismo ou necessidade?

Algumas propostas têm sido feitas por estudiosos em gestão na saúde com o intuito de gerar iniciativas que se traduzam em inovação, na expectativa de criar um ambiente de diferenciação competitiva. O cenário para o negócio saúde, adverso em inúmeros aspectos exaustivamente citados, prevê dificuldades progressivas num espaço de tempo muito curto para todos aqueles que, de uma forma ou outra, não começarem a se preocupar SINCERAMENTE com a saúde organizacional de seu negócio.
As receitas preconizadas por especialistas vão desde o enxugamento máximo na oferta de serviços até a ampliação em escala das opções de acesso para o usuário, em ambas as situações obrigatoriamente agregando a maior diferenciação tecnológica possível, estas, por sua vez, facilitada pelas inúmeras vias de crédito atualmente disponíveis. A organização de saúde no nosso país, entendida na prática como um hospital, por muito tempo será o laboratório para a maioria das ações relacionadas à assistência à saúde, independente do grau de complexidade que o usuário vai exigir na sua abordagem. Portanto, nada mais lógico que nesse local é que se desenvolvam boa parte das contradições que vemos na prática.
Em todo contexto de adversidade, é natural que a todo momento apareçam novas propostas de solução, o que é bom pois demonstra uma preocupação saudável. Porém, para aqueles que lidam com gestão em saúde, abraçar de forma acrítica idéias, conceitos, propostas e modelos rotulados como inovadores pode representar riscos de, no mínimo, levar a perda de tempo e dinheiro.
Mais recentemente vem sendo desenvolvido de forma gradual o conceito de que a condução adequada dos processos dentro de uma organização hospitalar, levando a um melhor desempenho destas, passa necessariamente por um olhar mais diferenciado para aqueles que efetivamente catalisam (ou não) seus resultados operacionais, ou seja, seu corpo clínico. Entendido conceitualmente como o conjunto de médicos que representa o corpo assistencial dentro do hospital, até o momento esse grupo tem se mantido à margem de processos decisórios e estratégicos conduzidos pelas alta direçâo nas organizações, que até então tem preferido a adoção de modelos muitas das vezes completamente dissociados da cultura organizacional que pretendem melhorar.
Tal conceito inclui, antes de mais nada, um profundo respeito pelas diferenças inter-organizacionais quanto ao perfil de usuários, carteira de convênios, modelos de prestação de serviço, missão e valores, grau de especialização, diferenciação  tecnológica, dentre outros, e tenta, de forma global, aproximar o gestor daqueles que estão na linha de frente desta batalha diária que é a rotina de um hospital. Através do delineamento do seu corpo clínico, cada hospital pode traçar mecanismos de abordagem deste segmento de forma diferenciada com o intuito de identificar oportunidades de melhoria nas suas ações, corrigir distorções, filtrar processos e profissionais, redirecionar fluxos, planejar melhor alocação de recursos, criar mecanismos de privilegiamento e desenvolver fidelidades.
Obviamente que não é uma receita simples e nem apresenta resultados instantâneos. Porém as primeiras iniciativas documentadas de abordagem nessa linha têm apresentado resultados promissores, tal como podemos ver nas estratégias desenvolvidas pelo Hospital Mãe de Deus (www.maededeus.com.br), em Porto Alegre (RS) e Hospital Mater Dei (www.materdei.com.br), em Belo Horizonte (MG).
Visto dessa forma, parece pouco claro e convincente para o gestor que ainda não está familiarizado com o tema. E de fato o é. Mas, por outro lado, desenvolver a capacidade de refletir sobre esse conceito e ao mesmo tempo se debruçar sobre quem de fato é o principal responsável pela saúde organizacional, pode produzir descobertas muito interessantes. E, algumas vezes, transformar um gestor de boas intenções num gestor de bons resultados.