Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de novembro de 2010

"Sobre a morte e o morrer" parte 4: quando não se pode tentar alguma coisa.

Volta e meia os meios de comunicação fazem alusão a situações marcantes do nosso cotidiano, algumas vezes apontando, sugerindo soluções e fomentando debates de alto nível. Em outras vezes, nos dá a sensação ou que não tem o que falar e explora-se aquilo que já é sabidamente um assunto instigante, ou que o fazem de forma propositadamente distorcida por incompetência ou má fé. Entretanto, agindo de forma sensacionalista ou comedida, a questão da falta de leitos de UTI incomoda e frequentemente povoa o noticiário e o discurso dos políticos e gestores em saúde, seja de forma demagógica, seja de forma bem intencionada na expectativa de apontar soluções para a questão. Porque quem tem um mínimo de seriedade e conhecimento do assunto sabe muito bem que é um problema insolúvel em nosso país.

O Jornal "O Globo" publicou no dia 15/11 recente a primeira do que seria uma série de reportagens sobre a crise na saúde (mas parece que não houve continuidade), envolvendo principalmente as UTI's dos hospitais da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (a íntegra pode ser vista em http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/11/15/media-de-obitos-do-ultimo-trimestre-chega-8-6-por-dia-nos-ctis-publicos-e-32-3-maior-que-dos-ultimos-dois-anos-923028748.asp). Nela, descreve-se, a partir de uma situação pontual, um cenário de adversidades e inadequações na prestação dos serviços em saúde que realmente impressionam, ilustrada com alguns números contundentes:
      * morre-se nas filas de vagas para UTI no estado 258 pessoas em média por mês, ou 8,6 pessoas por dia;
      * existe um déficit de 510 leitos de UTI para suprir essa demanda;
      * em dois anos de atuação da Central de Regulação de Leitos do Estado, verificou-se que em média apenas 36% dos pedidos de vagas em UTI para pacientes graves são contemplados.

Por trás dos dados, alguns pormenores que passam desapercebidos. Os hospitais públicos no estado do Rio de Janeiro, a maioria grandes prédios construídos no modelo "hospitalocêntrico" tão difundido quanto equivocado em nosso meio, são organizações antigas, muitas das quais herdadas do antigo INAMPS (que por sua vez se apropriou dos IAP's). Boa parte deles possuem centros de tratamento intensivo - CTI (como o carioca gosta de falar, em contraposição à UTI), com uma quantidade de leitos ebm dimensionada internamente para esta finalidade. Em se tratando de hospitais públicos, lá, mais do qualquer outra grande capital, existem os hospitais da Secretaria Estadual de Saúde (a que se refere a reportagem), os Hospitais da Secretaria Municipal de Saúde (a construção de hospitais municipais de maior porte não é uma constante em nosso país, sendo um modelo pouco seguido por outras cidades), os antigos hospitais do INAMPS que hoje fazem parte da rede do Ministério da Saúde (com gestão e financiamento federais), e as filantrópicas (destaque para a Santa Casa de Misericórdia).

As vagas disponibilizadas para a internação de pacientes em hospitais públicos, inclusive aqueles que necesstam de UTI, devem ser geridas pelas Centrais de Regulação de Leitos, de acordo com a Portaria 1.559/08 do Ministério da Saúde. Isso acontece em todas as capitais e cidades maiores. Entretanto, no Rio de Janeiro, segundo a reportagem, os leitos de UTI disponíveis nos hospitais municipais e federais não entram na contabilidade pois não foram confiadas a sua gestão à Central de Regulação. Resultado: mais de 1000 vagas não entram na conta, o que não quer dizer que não estejam sendo utilizadas. Aqui, quem determina quem as ocupará é o gestor da unidade e não a central. Outro dado que, ao invés de trazer alívio traz maiores preocupações: segundo a Dra. Rosane Goldwasser, que para os intensivistas representa seriedade e comprometimento, "de 2006 a 2010 o número de leitos de UTI da Rede Estadual do Rio de Janeiro...aumentou de 87, 11 e 171 para 253, 42 e 372 leitos de UTI adulto, pediátrico e neonatal, respectivamente, e passamos a atender de 2000 pacientes em 2006 a 9391 pacientes, isto é, quadruplicou-se o número de atendimentos" (veja depoimento completo em http://www.amib.org.br/noticias.asp?id_noticia=827).

A questão é complexa, para variar, e qualquer análise acerca das repercussões desta equação que não fecha devem contemplar uma análise mais aprofundada a respeito dos avanços (e retrocessos) recentes. Fato inquestionável é que as secretarias de saúde em geral têm apresentado investimentos vultosos na construção, ampliação e modernização de UTI's em suas unidades hospitalares, preenchendo um vácuo de muitos anos nesse aspecto assistencial (dentre os muitos existentes). Mas é insuficiente. Não só pela deficiência absoluta e relativa de leitos para atender a totalidade da população mas também por alguns fatores, centrais e periféricos, tais como:
      * a população brasileira está envelhecendo, não só sua longevidade média aumentou como também a proporção de idosos em relação à população em geral. Isso significar dizer que há uma tendência natural ao aparecimento de doenças próprias desta faixa etária, que por sinal se sobrepõem umas às outras em virtude  de algum grau de melhora no acesso aos serviços de saúde e às políticas de barateamento de medicamentos de uso contínuo. Assim, é natural que mais pessoas precisem de UTI porque mais pessoas estão convivendo com doenças crônicas que geralmente se tornam graves a ponto de precisarem deste leito quando se complicam;
      * tal como dito acima, logo abaixo na incidência de população sujeita a dispor de leitos de UTI estão as vítimas da violência urbana. No Rio de Janeiro esse percentual, como todos sabem, é significante;
      * UTI construída não é UTI funcionante. Algumas unidades inauguradas não podem ou não conseguem fazer cumprir a sua função por um motivo absolutamente singelo: não existem profisionais em número suficiente para fazê-las funcionar. O profissional médico, enfermeiro, fisioterapêuta e técnico de enfermagem, para ficar apenas nesses exemplos, para poder trabalhar em uma UTI, necessita ser dotado de alguns conhecimentos específicos, além de ser altamente desejável que tenha um certo grau de amadurecimento profissional para exercer com competência essa função. E não se encontram profissionais com esse perfil, problema que atinge também a rede hospitalar privada;
      * os profissionais que atuam em UTI, justo aqueles que exibem uma qualificação adequada, somente aceitam ser remunerados com valores que justifique todo o investimento em capacitação que tiveram. As secretarias de saúde em geral não podem pagar esses salários, principalmente para os médicos, que vão prestar seus serviços na rede privada. Em alguns estados adotaram-se firulas administrativas para "driblar" o fato de a maioria destes não fazerem parte de seus quadros, e ainda por cima receberem salários competitivos, não sem resistências e críticas. Em alguns lugares serviços instalados retrocederam na qualidade em função da obrigatoriedade de preenchimento destes postos por profissionais do quadro funcional da secretaria, notadamente sem a qualificação necessária. Não seria distorcido dizer que em alguns lugares, se o paciente não morre por falta de vaga, morre por estar nela;
      * os poucos leitos existentes em UTI concentram-se nas grandes cidades. O que não quer dizer que o restante das populações das demais cidades não precisem de uma UTI. No interior de alguns estados do norte e nordeste, ter um agravo de saúde grave o suficiente que justifique internação em UTI (pública ou privada) é uma sentença de morte;
      * por fim, e não menos importante, nossa população é pobre. Não consegue vislumbrar a oportunidade de dispor de um plano de saúde na expectativa de sentir-se um pouco mais segura num momento como esse. Em torno de 60% dos leitos de UTI estão na rede privada, atendendo a cerca de 25-30% da população, enquanto os demais 40% restantes dos leitos atendem os restantes 70-75%. A conta não fecha. Mesmo nos hospitais privados eventualmente se noticia a dificuldade de se disponibilizar um leito de UTI. Ainda por cima, quando o idoso consegue ter acesso a um plano de saúde, frequentemente ele se vê obrigado a deixar de contribuir para o mesmo em função do aumento das mensalidades, por sua vez incrementada pelo aumento da sinistralidade presumida.

Nosso sistema público de saúde, pretensamente universal e integral, não é perfeito. Denominado Sistema Único de Saúde, apresenta uma complexidade e uma dificuldade de gerenciamento tão grandes quanto a população que dela faz uso (na teoria 75% da população, ou 150 milhões de pessoas. Na prática, e com a prerrogativa da lei, 100% da população, principalmente quando aqueles que têm planos de saúde a ele recorre em função de negativas de tratamentos). Não se pode negar que avanços consideráveis foram alcançados, mas, via de regra, é mais interessante noticiar a miséria humana em seus diversos cenários, é mais impactante e dá mais audiência. Muito raramente se noticia, por exemplo, que o mais ambicioso programa de transplante de órgãos do planeta é financiado integralmente pelo SUS (os transplantes não são cobertos pelos planos de saúde), muito menos as estatísticas a ele relacionada. Ou os dados do programa de tratamento dos soro-positivos para HIV, bancado integralmente por ele (os planos de saúde nem de longe cogitam a idéia de fazer algo semelhante). Na maioria das vezes quando se fala em SUS a imagem é emergência cheia, gente morrendo na porta do hospital por falta de vaga, os velhinhos dentro da ambulância sem atendimento....

Não se pretende com isso fechar os olhos para as iniquidades do setor, que existem, devem ser encaradas de frente, e exigem atitudes sérias por parte de seus gestores. Pelo visto, ainda vamos conviver com novos retornos a esse tema, apesar de, objetivamente, haver uma tendência à diminuição. Acabar, nunca.


Nenhum comentário: