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terça-feira, 22 de julho de 2014

O desperdício nosso de cada dia.

Não gostaria de aproveitar esse espaço para ficar apontando coisas que emperram o desempenho dos hospitais no Brasil. A tentação de listar novos problemas e de reforçar antigos é muito grande, mas dessa vez vou me ater a um aspecto assistencial que há muito tempo me incomoda profundamente na minha prática diária como médico: o desperdício.

Seria uma repetição desnecessária apontar os enormes bueiros por onde hospitais veem se esvair perdas de receitas e oportunidades de melhoria contínua a partir de suas práticas, que vão desde torneiras mal reguladas por onde muitos litros de água se perdem até procedimentos complexos não pagos (ou pagos em parte) em função de algum filtro imposto por fontes pagadoras ou condução inadequada da assistência. O fato é que os hospitais têm esse péssimo hábito de desperdiçar. Mas não estou afirmando que não existem pessoas altamente competentes nesse terreno, que não sejam capazes de identificar onde os escoadouros estão e de propor medidas para que os fechem, principalmente quando o desperdício se dá por inadequações logísticas, materiais, estruturais, funcionais, legais e até mesmo aquelas relacionadas a recursos humanos em geral. A depender da alta direção e dos tetos orçamentários nem sempre acessíveis, suas ações podem gerar a adoção de boas medidas, imediatas ou não. Na verdade, se todos os problemas de perdas dos hospitais resultassem desse tipo de perda, seu desempenho financeiro seria bem mais vigoroso do que na média é.

O grande problema são as perdas insensíveis, intangíveis e invisíveis, na maioria das vezes negligenciadas, não auditadas, não enfrentadas e frequentemente não responsabilizadas pelo mau desempenho dessas organizações. Destas, sem a menor sombra de dúvida, o montante proporcionado pelas inadequações dos atos médicos, ou seja, de seu Corpo Clínico, é tão grotesco e óbvio que não dá para imaginar o atingimento de padrões de qualidade e de desempenho financeiro-operacional de hospitais sem que as mesmas sejam, ao menos, mensurada.

Acima do dever de proporcionar o bem estar aos pacientes sob seus cuidados e se empenhar na resolução dos problemas de saúde atinentes aos mesmos, papel central da função do médico, existem questões de natureza prática que deveriam ocupar lugar central na condução clínica hospitalar em geral, que passam ao largo das preocupações tanto de quem está na ponta do sistema, o médico propriamente dito, quanto de quem deveria estar cumprindo seu papel fiscalizador da boa prática dentro dos princípios da economia da saúde, ou seja, o gestor hospitalar. Isso para não falar da pouca preocupação em se criar um ambiente apropriado para o estabelecimento de métricas que privilegiem a qualidade com adequabilidade econômica, por parte de muitas fontes pagadoras, dentre elas, e de forma historicamente recorrente, os orçamentos públicos.

Existem pressupostos que tentam dar uma explicação a este fato, sobejamente conhecido, mas certamente não enfrentado, a começar pelos currículos das escolas médicas: muitos analistas enxergam como uma das causas para a pouca preocupação com custos a falta da adoção de disciplinas que incluam de alguma forma discussões acerca de políticas públicas, economia da saúde e administração hospitalar. Antes dessa revolução tecnológica que estamos assistindo já era um esforço heroico incutir na cabeça dos estudantes a noção de que nossa realidade sanitária e de alocação de recursos, públicos ou privados, apresenta problemas e equívocos. Não eram poucos os que tentavam mostrar que era seu papel, enquanto futuro profissional, ajudar a amenizar essa realidade em nome do bem estar social coletivo. Mas hoje ficou bem mais difícil essa tarefa.

Devido a uma pressão absurda nunca antes vista para a adoção de práticas médicas alinhadas com interesses corporativos e ligados a produtores de insumos na área, e com a facilidade de acesso a publicações de toda ordem (boa parte delas de má qualidade), ficou mais fácil defender pontos de vista técnicos suspeitos, travestidos de recomendações e protocolos de última linha que pretensamente visam favorecer a uma subpopulação específica de pacientes que em muitos casos não enchem um vagão de metrô. Esse fenômeno sempre existiu, mas no passado alguém sempre pagava a conta e os instrumentos de avaliação de tecnologias pecavam pela postura acrítica (hoje não é mais assim, pelo menos não imaginamos que seja). E parece justo que toda prática deva ser rigorosamente confrontada com padrões de custo-benefício apropriados para aquela situação. Afinal, quem paga uma conta tem todo o direito de saber porque paga.

Na outra extremidade da corda está a estrutura hospitalar, soberba e ao mesmo tempo sofrida, tentando achar meios para melhor definir seu papel assistencial e seu locus no mercado, pressionada por metas e necessidade de adequações legais ou de auditagem, buscando reconhecimento na comunidade e entre seus pares através de iniciativas de Acreditação (muitas vezes em vão) e eternamente buscando soluções que tragam uma melhor receita operacional nas suas atividades. Mas, como alguém já disse, o hospital enquanto ser dinâmico e provido de força própria não existe. O que existem são pessoas, são valores e são percepções de realidade que podem variar imensamente entre si. E dentre essas, cabem aos gestores imprimir esses valores através de técnicas focadas no melhor desempenho a baixo custo, exercendo seu papel de líder justamente num cenário nunca antes tão necessário.

É muito difícil experimentar no cotidiano dos hospitais a sensação de que os recursos são implacavelmente utilizados de forma inadequada, algumas vezes até irresponsável, em nome de uma pseudo boa prática que visa muito mais a super-utilização de recursos para uma sobre-valorização de receitas, principalmente no escopo da assistência suplementar e privada. Nos hospitais públicos, dentre muitas outras contradições, não é difícil encontrar uma perniciosa combinação de despreparo técnico, imaturidade profissional e falta de seguimento de parâmetros básicos que incluam bom senso e racionalidade na utilização dos parcos recursos que todos conhecem bem.

Selos de Acreditação e tv a cabo nos quartos não são a melhor expressão da qualidade em si, ela não pode existir só nos jornais e revistas para que todos saibam que ela existe. Qualidade assistencial é um valor que vai muito além da própria mensuração. Consiste na absorção de conceitos e princípios que, transmitidos a todos nela envolvidos, inclui rigorosamente a necessidade de supervisão de seus pressupostos, além de, me perdoem os líricos, fiscalização permanente daquilo que se convencionou chamar de boas práticas. Ou seja, um bom capataz.

Passando do teórico para o prático, vão aí alguns exemplos de como se pode amenizar essa questão, sem a menor pretensão de esgotar o assunto:
* comissões de revisão de óbito, do prontuário do paciente e de longa permanência não podem ter papel figurativo. Devem ter autonomia chancelada pela alta direção para propor, implantar e monitorar boas práticas relacionadas à permanência hospitalar dos pacientes internados;
* a unidade de Emergência deve ser privilegiada com os recursos de espaço físico, de pessoal e de logística necessários para a resolução de problemas que dispensem a internação propriamente dita, privilegiando a resolução rápida, pontual e objetiva dos problemas e aumentando o turnover de pacientes. Além disso, devem ter em seus quadros profissionais experientes e bem remunerados para compor o filtro de alocação de recursos e resolução de problemas clínicos mais complexos (diaristas ou rotinistas) que muitas vezes são deixados para que profissionais sem muito treinamento o façam;
* rotinas que privilegiem a análise criteriosa de custo-benefício naqueles pacientes que se encaixem no conceito, sempre muito subjetivo, de terapia fútil: incentivar a criação de comissões de cuidados paliativos e seu papel consultor, junto com a Psicologia hospitalar;
* diretrizes e protocolos não são meros documentos para mostrar que existem. Se existem, é porque alguém presumivelmente teve o trabalho de trazer para aquela organização uma proposta sobre o melhor jeito de fazer as coisas naquele local. Se não estiver à altura da organização, deve ser repensado. Senão, deve ser seguido. Se contiver coisas absurdas, o próprio mercado condena. O que não pode é ser de mentirinha;
* priorizar insumos que após análise criteriosa possam ser utilizados, sem perda de qualidade, para o tratamento de pacientes internados: parece óbvia essa proposição, mas não é. Aquisição não criteriosa de equipamentos, matérias, saneantes, drogas, consultorias e alterações estruturais que fujam do “core” da organização ainda são utilizados em larga escala (para não dizer dos incentivos paralelos e escusos que acontecem tão comumente, mas essa é uma outra história);
* transformar a cabeça do gestor ou da organização: essa é a parte mais difícil. Seja por uma total impossibilidade física do gestor estar em vários locais ao mesmo tempo, seja por total incapacidade de percepção desses fatores, a organização tende a subestimar seu desperdício técnico. Afinal, por falta de olhos atentos, ninguém dá muita atenção mesmo a isso...

É por isso que eu desenvolvi uma opção para salvar os hospitais dessas reflexões, aproveitando o clima de baixo astral pela derrota na Copa do mundo e o ano eleitoral: quero convocá-los para me ajudarem a propor aos nossos ilustres candidatos para que incluam em suas plataformas de promessa o “Bolsa Desperdício”!! Uma forma prática e oficial de ressarcir as inadequações e falta de gestão com o dinheiro público ou privado, bem ao gosto de nossa sociedade!!!

Piadas sempre são legais, mas o assunto é sério. Na falta de espaço para aumentar o orçamento, que tal olhar para o próprio umbigo e tentar melhorar o que está embaixo do nariz?

O Gestor Clínico pode e deve assumir seu papel. Sob seu comando estão as pessoas que vão ao final colocar a organização nesse ou naquele rumo.

Se não for assim, não é gestor. É encarregado.