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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Médico, planos de saúde e mitologia grega

Erisictão, rei da Tessália, era um personagem na mitologia grega que teve um estranho fim: por ser arrogante, não prestar homenagem a nenhum deus e ignorar os apelos de Deméter, deusa da agricultura, para que não derrubasse a sua árvore sagrada, foi invadido em suas entranhas por Némesis (a vingança) e Limos (a fome), por ordem desta, de forma que a partir daquele momento passaria a ter uma fome tão intensa que, após extinguir toda a comida de seu reino e de vender sua família para adquirir mais comida e ainda assim não saciar a sua fome, acabou por comer a si mesmo e morrer.

Encontrei nessa história a metáfora mais que perfeita para servir de fio condutor nessa homenagem às avessas ao dia do médico, que ocorreu recentemente.

Devo confessar que em pelo menos um aspecto não vejo muito que comemorar nessa data: os médicos estão infelizes com a situação à qual a própria classe se colocou com relação à intermediação das relações de trabalho feitas pelas operadoras de planos de saúde, que não entregam aos profissionais o valor ao qual fazem jus pelos seus serviços. E o pior, tais quais as ondas do mar batendo nas pedras (me perdoem a licença poética), todos os anos reproduzem as mesmas queixas e muxoxos, sem nenhuma conquista de impacto para a classe.

Longe de ser um comentário panfletário, e sem esperar esgotar o assunto, não consigo deixar de refletir acerca dessa situação tão imperfeita, e que afeta toda uma categoria profissional  nas suas mais variadas formas de agir. E, por respingos, outras categorias, por que não dizer.

As operadoras de planos de saúde vicejaram em nosso país em função de um hiato criado pela nossa própria sociedade. A ordem vigente mantinha um sistema de atendimento em saúde pública distorcido, excludente e burocrático que somente veio a se parecer com algo mais universal e socializante com a 8ª Conferência Nacional de Saúde e o seu filhote, o SUDS (hoje SUS). A classe média crescente, órfã de um atendimento em saúde diferenciado, sem filas e com qualidade superior, enxergava nos planos de saúde da época um meio de, através de uma contrapartida razoável dos seus orçamentos, exercer seu direito de ter um padrão diferenciado de atenção à saúde.

Naquele momento (estamos falando na década de 70 até meados da década de 80 do século passado), os custos envolvidos na cadeia produtiva em saúde eram muito baixos em relação aos custos atuais, assim como os insumos voltados para tecnologias diagnósticas e terapêuticas estavam apenas iniciando seus primeiros passos rumo à explosão de inovações disponíveis a partir dos anos 90, e seus consequentes custos cumulativos. Para os padrões da época, um salário pago por uma operadora de planos de saúde, ou mesmo os valores descritos em suas tabelas de procedimentos para pagamento de serviços, tais como as consultas, eram bastante atraentes para os médicos.

No caminho inverso, os profissionais dos serviços públicos tiveram um achatamento sem precedentes em seus vencimentos, na esfera federal e estadual. Com a municipalização, corolário básico do SUDS/SUS, os cargos de gestão ficaram por definição a serem constituídos e remunerados de acordo com cada prefeitura dentro de um planejamento individual, num mosaico de valores e formas de agregação confusa, pouco clara, não regulada, e que até hoje persiste.

A transferência de responsabilidades na assistência à saúde, tirando gradativamente esse encargo do plano de federal, ficou cada vez mais evidente nos governos que se seguiram à época da ditadura, provocando um distanciamento cada vez maior entre uma obrigação constitucional de prover um serviço universal e de boa qualidade, e os orçamentos minguados para o que deveria ser feito. Esses mesmos orçamentos algumas vezes nunca eram aplicados em sua totalidade, em outras vezes aplicados de forma inadequada por incapacidade gerencial ou, para ficar num vocabulário mais moderninho, seguiam os “maus caminhos”. Ainda hoje o governo federal se esquiva de assumir seus compromissos orçamentários (lembrem-se da discussão acerca da emenda 29), deixando aos estados e municípios o ônus de serem obrigados a manter seus gastos determinados por lei sem poderem contar com a contrapartida da União na sua plenitude.

O ambiente para a disseminação das empresas que comercializavam planos de saúde nunca esteve mais propício nessa época, fazendo crescer empresas sérias e empresas oportunistas, que lesaram muita gente inocente. E em função de uma terrível sopa de letrinhas, em que cada empresa ditava suas regras de exclusão e de transferência de custos para as mensalidades de usuário, surgiu a lei 9656 de 1998 para regulamentar a atuação dos Planos de Saúde, seguida da criação da ANS – Agência Nacional de Saúde, nascida com a função primordial de tentar criar a interface apropriada nas relações entre usuários de planos de saúde e as operadoras que vendiam os tais planos. Até mesmo a ideologia neo-liberal da época, trabalhando na criação de um estado mínimo, teve que se render a uma certa regulaçãozinha devido à pressão popular e política da época.

Ocorre que de lá para cá muita coisa mudou: mudou a pirâmide populacional do país, que passou a contar com indivíduos cada vez mais velhos (e, consequentemente, mais propensos a desenvolver doenças, principalmente as doenças ditas da modernidade, crônicas e caras). Mudou também o perfil da indústria de insumos e tecnologias em saúde, a partir de inovações (muitas delas de eficácia duvidosa) rapidamente absorvidas pelos usuários, seus médicos ou hospitais prestadores de serviço, sempre sob a justificativa de agregar valor à saúde das pessoas. Com o sucateamento dos serviços públicos, mudou também o padrão de prestação de serviços em saúde, que passou a contar com estruturas que privilegiavam cada vez mais a complexidade do tratamento em detrimento da prevenção de doenças, numa indisfarçada maneira de auferir lucros maiores num mercado cada vez competitivo, aproveitando a fragilidade das estruturas de planejamento nas ações de prevenção de doenças e gestão pública adequada. Todas essas mudanças elevaram de forma exponencial os custos de toda a cadeia produtiva no setor, fazendo com que as operadoras de planos de saúde passassem a ser obrigadas a ter maior controle em seus gastos e maior atenção no comportamento de usuários e prestadores.

Desde então inúmeras estratégias de contenção de custos por parte das operadoras de planos de saúde têm sido tentadas na expectativa de reverter esse cenário adverso. Com índices de sinistralidade bem próximos da faixa de inoperabilidade, não havia outra forma de um negócio como esse sobreviver sem que algo não pudesse ser feito. Sim, quando falo em negócio, é negócio mesmo. É uma empresa, com formas de constituição e estatuto social diferentes entre si (seguros-saúde, auto-gestão, cooperativas, filantropias e medicina de grupo), mas sempre negócios, ou seja, sua existência está condicionada a um elemento fundamental que parece estar sempre oculto: necessitam dar lucro para sobreviverem enquanto organizações e precisam dar os retornos financeiros esperados aos seus sócios-investidores.

Não vou me estender acerca das várias formas utilizadas para o alcance desse objetivo, mas uma forma em especial nos remete ao tema central dessa conversa: os valores pagos pelo trabalho ou ato médico sofreram (e ainda sofrem) um processo progressivo de desvalorização tão grande e inconcebível que quase se paga para trabalhar hoje nos consultórios e hospitais que atendem usuários dessas empresas.

Como já foi amplamente demonstrado através de incontáveis estudos, os reajustes percentuais das operadoras aos usuários sempre esteve bem acima daqueles repassados para pagamento de honorários médicos, principalmente consultas, utilizado como procedimento-âncora nas reivindicações. Na condição de já ter convivido por um tempo bem grande nas entranhas de grandes operadoras, é nítido que os valores apresentados pelas faturas hospitalares, principalmente de hospitais de alta complexidade, têm um papel fundamental na prioridade da utilização do mísero dinheirinho que deveria tornar os honorários mais atraentes. Não é para menos. É consenso geral de que as contas hospitalares representam a grande chaga na contabilidade das empresas, por onde escoa a maior parte daquilo que é arrecadado.

Mas não é tão somente isso. No atual estado de coisas, para que negociar com uma classe que por trás de um discurso de unidade apresenta inúmeras dissensões? Se eu consigo minar qualquer movimento oferecendo meia dúzia de bananas e um pacote de balas Juquinha (lembram?) a mais nos valores da consulta para alguns grupelhos de pessoas, para que abrir negociação coletiva? E mais, se não existe nenhuma iniciativa legítima, orquestrada, que envolva toda a classe profissional, para que me preocupar com um gritinho aqui e outro acolá? E o que dizer daqueles que, privilegiando de forma acrítica somente a superutilização dos recursos terapêuticos e diagnósticos dos quais são proprietários para ganhos pessoais destroem qualquer sonho de atividade solidária para com seus pares, demais colegas de profissão? E quanto às organizações prestadoras de serviços em saúde, quase todas com orçamentos apertados, que se vêem na obrigação de compensar déficits numa fatura cheia de gordura a ser apresentada à fonte pagadora, no caso a operadora?

A relação dos médicos com as empresas de planos de saúde é uma relação viciada, obscena na maior parte das vezes e de insatisfação mútua. Não se pode conceber que numa consulta médica habitual um profissional faça uma abordagem técnica minimamente satisfatória em quinze minutos. Sim, quinze minutos, pois esse é o tempo estimado de consulta nos diversos consultórios, ambulatórios e demais locais de atendimento médico. Se paga pouco por consulta? Atendemos em escala. Quanto mais atendimentos, maior o rendimento. O que o paciente quer? Exame básico e check-up. Nada mais. O coitado do usuário finge que foi atendido e o profissional finge que atende...
É para isso que fomos treinados?

Não podemos deixar de reforçar a seguinte questão: somos todos empresas, no sentido de desejar obter vantagens competitivas. Os hospitais e similares são empresas prestadoras de serviço em grandes proporções. As operadoras de planos de saúde são empresas que necessitam maximizar seus lucros para justificar sua existência. O complexo médico-industrial reúne grandes empresas, que também não fogem à necessidade de vender cada vez mais para um público alvo com fome cada vez maior de consumo. E nós, médicos, somos empresas também, pois num sentido mais literal precisamos fazer com que nossa prestação de serviço gere um resultado financeiro ao final do mês que pague as nossas contas. A diferença está que, em nosso caso, temos a obrigação ética de entregar um valor para o paciente, temos uma obrigação de meio para prover o melhor estado de saúde para o paciente, temos o dever moral de sermos atenciosos, corteses e empenhados em fazer o melhor dentro da melhor técnica e arte para o qual fomos treinados..... Mas, francamente, isso é que acontece, de fato?

O dilema entre médicos e operadoras não vai acabar nunca. As operadoras não vão jamais atender aos reclames da classe na proporção esperada. Não querem, por considerar que seria um passo inicial para levantar questionamentos futuros para outros procedimentos; e não podem, porque ao contrário do que arrotam na mídia, mal andam com as próprias pernas. A questão é ideológica: se eu sei as regras do jogo a mim desfavoráveis, se eu conheço as minhas minguadas perspectivas de ganho, se eu estou ciente da falência do sistema, e ainda assim aceito entrar como prestador de serviço, então nada há o que reclamar. Muito mais elegante e honesto procurar outros meios de ganhar a vida se não concordar com o jogo.

O descredenciamento coletivo para o atendimento de consultas seria assim a melhor solução para operadoras, médicos e usuários. Médicos poderiam, enfim, retornar a uma relação absolutamente liberal no sentido de estabelecer seus preços, mais justos, e se ajustar à concorrência individualmente ou em grupos. Operadoras se livrariam de uma parcela significativa de usuários que fazem uma superutilização de seus serviços de forma desnecessária e onerosa. A compensação pelo ressarcimento de consultas aos usuários, com esses valores maiores, seria feita através do menor volume de consultas que seriam pagas ao profissional pelas vias normais. Por fim, pacientes poderiam procurar profissionais da sua escolha por reputação, conveniência ou preço, sabendo que teriam um atendimento com padrão de qualidade somente oferecido a um paciente particular. É tentador imaginar um cenário em que as relações entre os médicos e seus pacientes atendidos se elevem a um patamar de dignidade há muito esquecido.

O consolo é que se essa consciência coletiva não despertar para essa ou qualquer outra atitude, pelo menos ninguém vai morrer de fome (ou de comer) como nosso infeliz personagem do início do texto.

Ou vai?

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Alguns aspectos das parcerias entre médicos e hospitais

“As relações mais felizes são aquelas baseadas na mútua incompreensão.”


Os serviços de saúde em geral são realizados através da construção de relacionamentos, instituídos vertical ou horizontalmente, nos quais o bem comum da assistência ao paciente passa a ser o objetivo de todos os seus atores. No caso dos hospitais, é impossível dissociar o alcance de bons resultados para o tratamento das condições de saúde dos indivíduos se as mesmas não estiverem fortemente estabelecidas, seguindo uma razão exponencial: relações bem azeitadas se transformam em valor para o paciente numa proporção muito maior que a esperada. O paciente, ao ser atendido ou internado numa organização dessa natureza, passa a ser o centro de uma cadeia de ações interligadas, concomitantes ou seqüenciais, às quais mais modernamente nos acostumamos a chamar de processos, herdando a terminologia das demais organizações. Como exemplo, um indivíduo que vai ser submetido a um tratamento dentro do hospital interage direta ou indiretamente com os médicos que lhe assistem, com a equipe de enfermagem que lhe dá suporte, com outros profissionais que eventualmente participem do atendimento, da farmácia que dispensa as medicações, do laboratório e setor de radiologia que fazem os exames, do serviço de hotelaria e manutenção que lhe provêm a melhor comodidade e funcionalidade durante a sua permanência, da copa que lhe envia suas refeições e por aí segue a lista.

Esse mosaico de ações confere aos serviços de saúde em geral, e em particular aos hospitais, características que, juntamente com outras tantas peculiaridades, os tornam organizações diferentes e repletas de desafios para os administradores. Seria de se perguntar o porquê da existência dessa sincronia, algumas vezes nem tão síncronas assim, ser como de fato é. Não é uma resposta muito fácil, mas devemos levar em conta que a consolidação do modelo hospitalar de assistência (na forma mais modernamente concebida, ou seja, a partir do século XVIII), vem evoluindo ao longo do tempo na medida do aumento da percepção de necessidades dos usuários coalhada de interesses diversos, sejam eles de natureza estrutural, tecnológica ou de perfil assistencial. E a evolução não para por aí: nunca antes se discutiu tanto o papel dos serviços de saúde no fornecimento do seu produto final para o paciente. Inovações, teorias e novos modelos de fazer a coisa surgem com uma velocidade tão grande que nem conseguimos acompanhar em tempo real: quando travamos contato, outra já a superou. Em todos eles, palavras como equipe, sintonia, qualidade, multidisciplinaridade e liderança, para ficar apenas nesses exemplos, servem para dar a sustentação conceitual para aquilo que se convencionou chamar de “modelo de gestão hospitalar” em seu sentido mais genérico. Aqui se observa uma reciprocidade verdadeira, invisível, intrínseca, pulsátil e viva, e que faz com que toda a organização cresça ou não, na dependência da intensidade com que o corpo diretivo e de gestores perseguem os valores impressos no DNA da organização.

Mais recentemente, novas formas de arranjo organizacional tem procurado estabelecer uma relação um pouco mais próxima entre gestores e o Corpo Clínico dos hospitais. Uma delas, genericamente chamada “parceria”, parece povoar o imaginário daqueles que enxergam no trabalho médico uma parcela razoável de culpabilidade pelo mau desempenho da organização. Seja pelo genuíno despreparo de seus profissionais (e isso também é um sintoma de gestão ineficiente), seja para encobrir as fragilidades de uma gestão incapaz de atender às demandas da organização, é tentador implicar nos custos crescentes da prática médica (que realmente têm um custo elevado em muitos casos) a culpa por uma conta que não fecha.

Através de inúmeras formas, explícitas ou não, a maioria travestida de oportunidade única, as tais parcerias oferecem contrapartidas (a maioria em dinheiro) em troca a uma obediência a certas linhas de conduta que podem vir a desvirtuar uma boa prática médica.  

Toda generalização é perigosa, então mais uma vez convém destacar que algumas organizações parecem ter amadurecido a tal ponto que relacionamentos dessa natureza parecem trazer de fato benefícios mútuos, muitos deles através de incentivos não necessariamente na forma de dinheiro. Mas as propostas oferecidas pela imensa maioria dos hospitais e demais organizações, sob a justificativa de trazer vantagens mútuas, não passa de um embuste grotesco e de mau gosto. É feio para quem formula, que na imensa maioria das vezes não tem o conhecimento de causa suficiente para alcançar todas as dimensões de uma prática como é a prática médica, e muito mais feio para quem se sujeita ao mesmo. Mas os gestores da alta administração ou os membros do corpo diretivo/societário ainda não parecem ter se convencido com as experiências alheias.

Não tenho a pretensão de listar as incontáveis formas de acordo que podem criados. Mas ao longo desses anos de observação, leituras e relatos de caso, ao menos numa coisa me sinto confortável em afirmar: nenhuma “parceria” nesse contexto sobreviveu tempo suficiente para servir de modelo para a melhoria da assistência ou do desempenho organizacional, pelo menos nesse país. Curiosamente, no país aonde a maioria dessas propostas são criadas, desenvolvidas e vendidas como solução na forma de teses, cursos de MBA e livros, também não. Porter, Christensen, Bohmer e outros tantos da Harvard Business School, a maioria não médicos, têm se debruçado na geração de ideias e arranjos que agreguem valor cada vez maior ao paciente, dentro da perspectiva de que a adoção de algumas práticas semelhantes teriam invariavelmente repercussões inexoráveis e de maneira positiva no orçamento das organizações e dos países. E não são poucas as propostas, todas, com uma ou outra exceção, bastante atraentes por sinal.

O Corpo Clínico dos hospitais não está de maneira alguma dissociado dessas reflexões. Ao contrário. Corpo Clínico eficiente, efetivo e eficaz não se traduz em muitos médicos, nem em médicos renomados, de todas as especialidades. Que o digam os hospitais que vem obtendo níveis de excelência em prestação de serviços médicos com a implantação do modelo hospitalista.  Grosso modo, boa parte do sucesso da gestão hospitalar no seu sentido mais amplo deve ter como pilar uma assistência à saúde que seja exercida por profissionais que disponham de todos os bons atributos que se espera para o bom desempenho num negócio tão peculiar, acrescido de outro poucas vezes levado em conta: bom senso. É esse atributo que faz com que, dentro da autonomia que a legislação e a atividade-fim intrínseca, secularmente conferida à profissão, ele desenvolva sua atividade de forma liberal, porém solidária; procurando a melhor relação custo x benefício nas suas ações, mas com o discernimento de usar alternativas mais caras se realmente se justificarem; obediente às normas básicas de conduta e atividade profissional de cada organização, e, finalmente, recebendo os incentivos adequados, de tal maneira que se sinta estimulado a manter seu nível de atenção sempre de acordo com as aspirações da organização.

Trocando em miúdos, profissionais bem selecionados, e com os incentivos certos e justos, não se sentem atraídos para acordos diferenciados que privilegiem, teoricamente, ambos os lados. Como não existe relação comercial simétrica perfeita, médicos assim seduzidos logo percebem que os pretensos incentivos não são exatamente aquilo que imaginava. Ou, para consegui-los, talvez tenham que se sujeitar a determinadas formas de agir que podem ir frontalmente às suas noções de ética, justiça e solidariedade.

Que me perdoem os incontáveis entusiastas dessa ideia de parcerias. Mas já houve tempo de observação suficientemente grande para que se chegasse à conclusão de que isso não funciona para a maioria das organizações. Não que em teoria não seja exequível, pelo contrário. Mas, não bastassem as incontáveis diferenças desse negócio para outros, cada organização tem suas particularidades, missão, valores e prioridades. Para muitas, o valor para o paciente é uma preocupação real. Para tantas outras, nem tanto. Outros valores lhe antecedem. E para completar, tal qual o ser humano em geral, nós, médicos, frequentemente somos atraídos pela perspectiva de vantagens adicionais que extrapolam o acordado, o aceitável e o ético. Ou simplesmente deixamos outro agente interferir nessa sagrada relação que comporta o binômio médico x paciente, e mais ninguém. Que o digam aqueles que prestam serviços intermediados por operadoras de planos de saúde e seu comportamento subserviente. Mas isso é assunto para outra conversa.

Médicos desconfiam desse tipo de parceria. Médicos são talhados para serem médicos, nada mais. Até que os currículos das escolas médicas incorporem noções de economia da saúde e gestão, assim será por muito tempo. Gestores não devem ficar traçando estratégias para atrair o médico para o seu negócio, pintando um cenário de perspectivas que levem à falsa sensação de que o médico será um colaborador diferenciado ou um dos donos do negócio. Que obterá vantagens que não existem. O médico não será dono de nada, apenas de sua arte e conhecimento.  As queixas de que médicos não são parceiros são atribuídas ao despreparo do médico para colaborar com a organização dentro da perspectiva do gestor. Jamais a organização vai reformular seu agir partido do pressuposto de que talvez ela esteja equivocada.

Talvez esteja chegando a hora de haver uma reflexão acerca desse tema com maior profundidade. Em cada encontro ou evento que participo, escuto nos diversos bate-papos que o Corpo Clínico não colabora, que o médico não é parceiro, que não tem noção do que consome, que não se prende a regras, que reclama muito. Não é chegada a hora de pensar outra estratégia? Buscar no mercado outro gestor, talvez? Capacitar de forma adequada quem está à frente do negócio ou pedir ajuda a quem tem experiência também ajudam. Ser qualificado para exercer um cargo de gestão pode significar ter a habilidade e convencimento necessário para buscar soluções criativas e alinhadas com a realidade de cada organização, desde seu presidente até os níveis de gerência, sem esquecer o gestor médico. Mas reclamar definitivamente não vai resolver. A cabeça do médico, certo ou errado, é diferente da cabeça de quem não é.

A sugestão que deixo é a seguinte: médicos serão médicos sempre, e, salvo exceções, tenderão a não aderir de imediato a qualquer movimento que tente seduzi-lo ou fidelizá-lo na forma de parcerias de natureza indisfarçadamente comercial. Se a parceria surgir, que seja naturalmente, como são as relações intra-organizacionais que se desenvolveram através dos anos, citadas nos início desse texto. O médico não coloca todas as suas fichas num mesmo lugar. Nunca. Não esperem que tenham o mesmo comportamento daqueles que têm um emprego formal.

Do contrário, as conversas nos eventos vão continuar sendo um muro de lamentações sem fim.

terça-feira, 22 de julho de 2014

O desperdício nosso de cada dia.

Não gostaria de aproveitar esse espaço para ficar apontando coisas que emperram o desempenho dos hospitais no Brasil. A tentação de listar novos problemas e de reforçar antigos é muito grande, mas dessa vez vou me ater a um aspecto assistencial que há muito tempo me incomoda profundamente na minha prática diária como médico: o desperdício.

Seria uma repetição desnecessária apontar os enormes bueiros por onde hospitais veem se esvair perdas de receitas e oportunidades de melhoria contínua a partir de suas práticas, que vão desde torneiras mal reguladas por onde muitos litros de água se perdem até procedimentos complexos não pagos (ou pagos em parte) em função de algum filtro imposto por fontes pagadoras ou condução inadequada da assistência. O fato é que os hospitais têm esse péssimo hábito de desperdiçar. Mas não estou afirmando que não existem pessoas altamente competentes nesse terreno, que não sejam capazes de identificar onde os escoadouros estão e de propor medidas para que os fechem, principalmente quando o desperdício se dá por inadequações logísticas, materiais, estruturais, funcionais, legais e até mesmo aquelas relacionadas a recursos humanos em geral. A depender da alta direção e dos tetos orçamentários nem sempre acessíveis, suas ações podem gerar a adoção de boas medidas, imediatas ou não. Na verdade, se todos os problemas de perdas dos hospitais resultassem desse tipo de perda, seu desempenho financeiro seria bem mais vigoroso do que na média é.

O grande problema são as perdas insensíveis, intangíveis e invisíveis, na maioria das vezes negligenciadas, não auditadas, não enfrentadas e frequentemente não responsabilizadas pelo mau desempenho dessas organizações. Destas, sem a menor sombra de dúvida, o montante proporcionado pelas inadequações dos atos médicos, ou seja, de seu Corpo Clínico, é tão grotesco e óbvio que não dá para imaginar o atingimento de padrões de qualidade e de desempenho financeiro-operacional de hospitais sem que as mesmas sejam, ao menos, mensurada.

Acima do dever de proporcionar o bem estar aos pacientes sob seus cuidados e se empenhar na resolução dos problemas de saúde atinentes aos mesmos, papel central da função do médico, existem questões de natureza prática que deveriam ocupar lugar central na condução clínica hospitalar em geral, que passam ao largo das preocupações tanto de quem está na ponta do sistema, o médico propriamente dito, quanto de quem deveria estar cumprindo seu papel fiscalizador da boa prática dentro dos princípios da economia da saúde, ou seja, o gestor hospitalar. Isso para não falar da pouca preocupação em se criar um ambiente apropriado para o estabelecimento de métricas que privilegiem a qualidade com adequabilidade econômica, por parte de muitas fontes pagadoras, dentre elas, e de forma historicamente recorrente, os orçamentos públicos.

Existem pressupostos que tentam dar uma explicação a este fato, sobejamente conhecido, mas certamente não enfrentado, a começar pelos currículos das escolas médicas: muitos analistas enxergam como uma das causas para a pouca preocupação com custos a falta da adoção de disciplinas que incluam de alguma forma discussões acerca de políticas públicas, economia da saúde e administração hospitalar. Antes dessa revolução tecnológica que estamos assistindo já era um esforço heroico incutir na cabeça dos estudantes a noção de que nossa realidade sanitária e de alocação de recursos, públicos ou privados, apresenta problemas e equívocos. Não eram poucos os que tentavam mostrar que era seu papel, enquanto futuro profissional, ajudar a amenizar essa realidade em nome do bem estar social coletivo. Mas hoje ficou bem mais difícil essa tarefa.

Devido a uma pressão absurda nunca antes vista para a adoção de práticas médicas alinhadas com interesses corporativos e ligados a produtores de insumos na área, e com a facilidade de acesso a publicações de toda ordem (boa parte delas de má qualidade), ficou mais fácil defender pontos de vista técnicos suspeitos, travestidos de recomendações e protocolos de última linha que pretensamente visam favorecer a uma subpopulação específica de pacientes que em muitos casos não enchem um vagão de metrô. Esse fenômeno sempre existiu, mas no passado alguém sempre pagava a conta e os instrumentos de avaliação de tecnologias pecavam pela postura acrítica (hoje não é mais assim, pelo menos não imaginamos que seja). E parece justo que toda prática deva ser rigorosamente confrontada com padrões de custo-benefício apropriados para aquela situação. Afinal, quem paga uma conta tem todo o direito de saber porque paga.

Na outra extremidade da corda está a estrutura hospitalar, soberba e ao mesmo tempo sofrida, tentando achar meios para melhor definir seu papel assistencial e seu locus no mercado, pressionada por metas e necessidade de adequações legais ou de auditagem, buscando reconhecimento na comunidade e entre seus pares através de iniciativas de Acreditação (muitas vezes em vão) e eternamente buscando soluções que tragam uma melhor receita operacional nas suas atividades. Mas, como alguém já disse, o hospital enquanto ser dinâmico e provido de força própria não existe. O que existem são pessoas, são valores e são percepções de realidade que podem variar imensamente entre si. E dentre essas, cabem aos gestores imprimir esses valores através de técnicas focadas no melhor desempenho a baixo custo, exercendo seu papel de líder justamente num cenário nunca antes tão necessário.

É muito difícil experimentar no cotidiano dos hospitais a sensação de que os recursos são implacavelmente utilizados de forma inadequada, algumas vezes até irresponsável, em nome de uma pseudo boa prática que visa muito mais a super-utilização de recursos para uma sobre-valorização de receitas, principalmente no escopo da assistência suplementar e privada. Nos hospitais públicos, dentre muitas outras contradições, não é difícil encontrar uma perniciosa combinação de despreparo técnico, imaturidade profissional e falta de seguimento de parâmetros básicos que incluam bom senso e racionalidade na utilização dos parcos recursos que todos conhecem bem.

Selos de Acreditação e tv a cabo nos quartos não são a melhor expressão da qualidade em si, ela não pode existir só nos jornais e revistas para que todos saibam que ela existe. Qualidade assistencial é um valor que vai muito além da própria mensuração. Consiste na absorção de conceitos e princípios que, transmitidos a todos nela envolvidos, inclui rigorosamente a necessidade de supervisão de seus pressupostos, além de, me perdoem os líricos, fiscalização permanente daquilo que se convencionou chamar de boas práticas. Ou seja, um bom capataz.

Passando do teórico para o prático, vão aí alguns exemplos de como se pode amenizar essa questão, sem a menor pretensão de esgotar o assunto:
* comissões de revisão de óbito, do prontuário do paciente e de longa permanência não podem ter papel figurativo. Devem ter autonomia chancelada pela alta direção para propor, implantar e monitorar boas práticas relacionadas à permanência hospitalar dos pacientes internados;
* a unidade de Emergência deve ser privilegiada com os recursos de espaço físico, de pessoal e de logística necessários para a resolução de problemas que dispensem a internação propriamente dita, privilegiando a resolução rápida, pontual e objetiva dos problemas e aumentando o turnover de pacientes. Além disso, devem ter em seus quadros profissionais experientes e bem remunerados para compor o filtro de alocação de recursos e resolução de problemas clínicos mais complexos (diaristas ou rotinistas) que muitas vezes são deixados para que profissionais sem muito treinamento o façam;
* rotinas que privilegiem a análise criteriosa de custo-benefício naqueles pacientes que se encaixem no conceito, sempre muito subjetivo, de terapia fútil: incentivar a criação de comissões de cuidados paliativos e seu papel consultor, junto com a Psicologia hospitalar;
* diretrizes e protocolos não são meros documentos para mostrar que existem. Se existem, é porque alguém presumivelmente teve o trabalho de trazer para aquela organização uma proposta sobre o melhor jeito de fazer as coisas naquele local. Se não estiver à altura da organização, deve ser repensado. Senão, deve ser seguido. Se contiver coisas absurdas, o próprio mercado condena. O que não pode é ser de mentirinha;
* priorizar insumos que após análise criteriosa possam ser utilizados, sem perda de qualidade, para o tratamento de pacientes internados: parece óbvia essa proposição, mas não é. Aquisição não criteriosa de equipamentos, matérias, saneantes, drogas, consultorias e alterações estruturais que fujam do “core” da organização ainda são utilizados em larga escala (para não dizer dos incentivos paralelos e escusos que acontecem tão comumente, mas essa é uma outra história);
* transformar a cabeça do gestor ou da organização: essa é a parte mais difícil. Seja por uma total impossibilidade física do gestor estar em vários locais ao mesmo tempo, seja por total incapacidade de percepção desses fatores, a organização tende a subestimar seu desperdício técnico. Afinal, por falta de olhos atentos, ninguém dá muita atenção mesmo a isso...

É por isso que eu desenvolvi uma opção para salvar os hospitais dessas reflexões, aproveitando o clima de baixo astral pela derrota na Copa do mundo e o ano eleitoral: quero convocá-los para me ajudarem a propor aos nossos ilustres candidatos para que incluam em suas plataformas de promessa o “Bolsa Desperdício”!! Uma forma prática e oficial de ressarcir as inadequações e falta de gestão com o dinheiro público ou privado, bem ao gosto de nossa sociedade!!!

Piadas sempre são legais, mas o assunto é sério. Na falta de espaço para aumentar o orçamento, que tal olhar para o próprio umbigo e tentar melhorar o que está embaixo do nariz?

O Gestor Clínico pode e deve assumir seu papel. Sob seu comando estão as pessoas que vão ao final colocar a organização nesse ou naquele rumo.

Se não for assim, não é gestor. É encarregado.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Conceitos não alinhados, resultados aquém do esperado.


Tenho refletido muito acerca do uso repetitivo do termo “Gestão do Corpo Clínico” e seus derivativos. Nos encontros em que participo, nos contatos que faço e nas fontes que busco, vejo uma diversidade enorme de percepções sobre o que vem a ser o termo, quais são as ferramentas utilizadas, seus mecanismos reguladores, qual o seu efeito prático na melhoria da qualidade assistencial e nos resultados operacionais para a organização que resolve adotar alguma iniciativa na implantação desses mesmos conceitos.
Segundo o site Wikipédia, “conceitos são universais por se aplicarem igualmente a todas as coisas em sua extensão”. Assim sendo, seria de se esperar que, a exemplo do senso comum, o conceito de Gestão do Corpo Clínico fosse de tal forma constituído que, independente de variações semânticas naturais de ocorrerem, na sua essência representasse uma idéia central que pudesse ser compreendida por quem dele faz uso. Não é o que parece ocorrer nesse caso em particular.
O termo, inicialmente adaptado do “clinical manegement” nos Estados Unidos, foi introduzido em nosso meio à medida em que a percepção de que processos de qualidade na abordagem dos diversos problemas envolvendo médicos em hospitais poderiam e deveriam ser sistematizados de tal forma que resultassem em padrões aplicáveis senão a todos os hospitais, à maioria deles. E por que hospitais? Simplesmente porque são os maiores sorvedouros de recursos aplicados na assistência à saúde, seja de cunho privado ou público. E não poderia ser de outra forma, tais as características próprias dessas organizações.
Louva-se a iniciativa de alguns organismos, dentre os quais a da Associação Nacional dos Hospitais Privados – ANAHP, que de forma sensível e assertiva foi uma das primeiras a apresentar o cenário desfavorável dos custos ascendentes em saúde, com repercussões para todos os elementos da cadeia produtiva a ela associada, chamando à discussão gestores hospitalares e fomentando a necessidade de reflexão séria sobre o tema, ao mesmo tempo em que introduzia novos elementos que mostravam que era possível alcançar bons resultados clínicos através do uso de certas ferramentas gerenciais até então desconhecidas ou não sistematizadas na maioria dos hospitais que foram chamados a essa discussão. Tive e oportunidade de fazer parte de alguns desses encontros e pude atestar como essas novas idéias, inovadoras à época, foram bem absorvidas e implantadas, e hoje se fala de forma natural em protocolos, diretrizes, indicadores e outros nos meios gerenciais.
Dez anos se passaram desde então. Mas está faltando alguma coisa. Deveríamos ter uma percepção de que avançamos no atingimento de padrões de qualidade assistencial além daqueles que já alcançamos na aplicação desses princípios, já amadurecidos com o tempo. Entretanto, a confusão conceitual parece obscurecer o núcleo central da questão: com todos os avanços na adoção de algum tipo de ferramenta gerencial voltada para boas práticas do Corpo Clínico, por que ainda somente algumas organizações transparecem uma atmosfera de melhor cuidado que a imensa maioria dos 6837 hospitais brasileiros (CNES, maio 2014)? E por que é tão difícil fazer a ligação entre a adoção desses mesmos princípios com os resultados operacionais e os índices de satisfação daqueles que se utilizam dos serviços hospitalares em geral?
Para alguns, Gestão do Corpo Clínico tem uma dimensão predominantemente administrativa-financeira: Gestão do Corpo Clínico adequada seria caracterizada por intervenções na maneira de atuação dos médicos que impliquem em racionalidade no uso de insumos (farmaco e tecno-economia, desperdício minimizado), na pouca permanência do paciente internado, na eliminação de perdas (glosas), na escolha das melhores alternativas terapêuticas (sem espaço para superutilização) e no melhor resultado  operacional para a organização.
Para outros, a dimensão Legal seria a mais importante: Gestão do Corpo Clínico adequada seria caracterizada pelo seguimento a normas e preceitos legais “do Conselho Federal e Regional de Medicina (CFM e CRM), com as recomendações para boa prática clínica da Associação Médica Brasileira (AMB), das Sociedades de Especialistas e em consonância com a legislação específica do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)” (Manual do Corpo Clínico da ANAHP).
A dimensão processual é invocada em outras situações como a mais importante: Gestão do Corpo Clínico adequada seria aquela em que os médicos atendessem à recomendação de seguir os princípios elementares da qualidade assistencial definidos pela alta Direção, lastreando sua prática em conformidade com as melhores evidências científicas disponíveis para a utilização dentro da organização, dentro da menor margem possível de variabilidade na assistência ao paciente sob seus cuidados.
A dimensão ética sugere que Gestão do Corpo Clínico adequada seria aquela em que os médicos seguissem as recomendações da alta Direção, expressa através da obrigatoriedade da elaboração do Regimento Interno e demais comissões obrigatórias com ampla participação da classe; do estabelecimento da representatividade da categoria médica através de Diretor Clínico eleito, assembleias, reuniões com os médicos e ouvidoria; da diferenciação de papéis entre Diretor Técnico e Diretor Clínico; da política de certificação profissional (credenciamento médico seguindo normativas éticas previamente estabelecidas) e do desenvolvimento de políticas de comunicação afinada e estratégica com o Corpo Clínico.
Por fim, alguns acreditam que a dimensão humana é a principal: Gestão do Corpo Clínico adequada seria aquela em o que o exercício de liderança dos gestores clínicos proporcionasse a geração de um ambiente de cooperação e respeito mútuos entre todos os profissionais que participassem da assistência ao paciente, tendo como ponto de partida a adoção pelos médicos que compõem o Corpo Clínico de uma postura ética, respeitosa, inclusiva e participativa na rotina da organização.
Existem outros vieses de interpretação. Por exemplo, com a adoção crescente da Medicina Hospitalar, sobejamente estabelecida como estratégia de resultados inquestionáveis em ganho para os pacientes e para a organização quanto à qualidade assistencial, muitos gestores acreditam que basta a contratação de uma boa equipe de hospitalistas e todos os seus problemas relacionados ao Corpo Clínico estarão resolvidos. A Medicina Hospitalar é um dos instrumentos mais valiosos que um gestor pode dispor em seu hospital. Mas não é a expressão da proposição em si.
Com os processos voltados para a obtenção de selos de Acreditação ocorre fenômeno semelhante e distorcido em várias organizações. Nessas, o imaginário irrefletido de que basta ser acreditado que todo o hospital mudará sua maneira de ser para melhor ainda povoa a cabeça daqueles que buscam soluções fáceis, não se importando em pagar por elas. A experiência vem mostrando de forma consistente quão desastroso é pensar e agir assim.
Nessa sopa de letrinhas que permeia as discussões, é desapontador que ainda hoje se fale da necessidade de Gestão do Corpo Clínico sem uma noção muito clara do que o mesmo vem a ser. Basta perguntar para qualquer gestor seu significado para ver como os conceitos são múltiplos. Ou, fato corriqueiro, não se tenha a menor ideia do que se trata. Pior ainda é perceber a pobreza de meios e oportunidades para um aprofundamento dessas questões: o único livro que trata especificamente do assunto no Brasil foi publicado em 2008. E em eventos criados para discutir especificamente o assunto, o que se vê é uma síntese do que tem sido a tônica nessas ocasiões: relatos de experiências individuais ditas como exitosas, num interminável “como eu faço”, listando de forma repetitiva estratégias parecidas com os discursos alheios, sem o necessário aprofundamento de questões específicas ou reflexões de caráter macro que possam servir como fio condutor de ações que alinhem esses elementos com as reais necessidades de uma organização em especial.
Mas deixemos os dilemas conceituais de lado. O mais importante é reconhecer que muito se avançou no entendimento dessas questões. Independente do viés utilizado e do caminho escolhido, só a percepção de algo pode ser feito nesse campo, e que isso pode de alguma forma trazer benefícios para o ambiente organizacional, já demonstra um amadurecimento. O próximo passo talvez seja a transformação da bagagem teórica-prática adquirida numa mudança do ambiente relacional, de tal forma que gestores e lideranças possam mensurar o impacto de suas iniciativas de maneira consistente. Mais que isso, que possam, num movimento às avessas do que tem sido até o momento, vivenciar de maneira mais presencial a rotina de quem está na ponta do sistema, sentindo os odores e os humores de toda a experiência de cuidar.
Como escreveu Kant, “todo o conhecimento humano começou com intuições, passou daí aos conceitos e terminou com idéias”.
Como sempre digo, o escritório do gestor é o corredor do hospital. Esse é o momento de colocar as idéias em prática.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Lideranças. E a falta que elas fazem nos hospitais.


Há uma frase supostamente atribuída a Nigel Farage, membro do parlamento britânico, a respeito do presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, em um acalorado debate naquela casa parlamentar, no qual o primeiro diz com a ironia cortante de um britânico: “Não quero ser rude, mas, falando sério, você tem o carisma de um pano de chão e a aparência de um bancário qualquer”.  Honestamente, fiquei encantado pela frase no sentido em que quando olho para algumas organizações de saúde, principalmente hospitais, a comparação não poderia ser mais feliz ao se tratar de lideranças à frente do Corpo Clínico.
Todos têm ciência da carência generalizada de quadros capacitados a exercer funções de gestores em geral, e, fato grave, de gestores clínicos em particular. Num contexto mais amplo, não custa lembrar que em todo o mundo orçamentos públicos e privados destinados a hospitais são muito elevados em relação às demais ações de saúde. Para ficar apenas no nosso exemplo, alguns estudiosos chegam a afirmar que nada menos que setenta por cento de todo o orçamento do Ministério da Saúde é aplicado nessas organizações, sejam elas públicas ou privadas, em seus variados arranjos. Não cabe aqui fazer uma reflexão acerca dos fatores que levam a esta distribuição, tampouco as motivações que dão substância à forma como ela é feita. Porém uma coisa não pode deixar de ser cada vez mais repensada: a maneira como esses valores são utilizados pode ser melhorada?
Evoca-se aqui, mais uma vez, o pano de fundo que mostra as transformações recentes em escala mundial que vem produzindo um novo perfil consumidor do mercado de saúde: uma população maior e mais rapidamente envelhecida obviamente consome mais recursos no tratamento de doenças e condições crônicas. Epidemias de problemas relacionados à violência urbana, frequentemente ignorada nos discursos, dão uma contribuição especial ao custo-saúde, principalmente em nosso país. No complexo médico-industrial, impossível não deixar de mencionar o papel das inovações na área de tecnologia de serviços de saúde, todas caras porém importantes, e que por uma característica intrínseca deste tipo de mercado são absorvidas (algumas vezes induzidas ao uso de forma oportunista e acrítica) sem substituir a anterior, encarecendo ainda mais a prestação do serviço (fato igual não ocorre em nenhum outro tipo de ambiente industrial: via de regra, se você decide comprar um telefone celular novo e com mais recursos tecnológicos, por exemplo, é muito provável que deixe de utilizar o anterior, que por sua vez à época da compra foi adquirido a um valor modular mais elevado que o de melhor tecnologia que você acabou de adquirir. Porém se seu hospital adquirir um equipamento de última geração para qualquer coisa, dificilmente seu antecessor deixará de ser utilizado).
Sem aprofundar mais ainda assunto tão palpitante, parece mais ou menos óbvio que a arte de utilizar bem os recursos (finitos) que dispomos deixou de ser um requinte para ser uma necessidade, em face de uma realidade que só tende a piorar.
Gerenciar bem os recursos dentro das organizações segue certos ritos objetivos, fundamentados em um planejamento estratégico às vezes bem difícil de seguir em função de muitas externalidades típicas do setor. É nesse momento que o talento deve se manifestar através de lideranças que pensam, têm atitude, elaboram alternativas, planejam ações, influenciam positivamente todo o meio ao redor, contagiam os demais, e ampliam a capacidade de adaptação aos momentos adversos, sem deixar de manter o reconhecimento de seu papel primordial de prestação de serviços assistenciais de boa qualidade.
Aí que o gestor clínico se insere. Através de sua fluência, de sua experiência, seu carisma e de sua capacidade de motivação, não sem antes vencer algumas resistências naturais, deve reunir os elementos necessários para se tornar uma referência na sua função: o respeito advindo de sua postura coerente, justa, acolhedora, vigilante e, mais do que nunca, providencialmente interventora, costumam ter um poder transformador.
Até bem pouco tempo, a figura do Diretor Clínico e suas variantes era ocupada por personagens que faziam parte do cotidiano da organização, em que se valorizava a experiência clínica e o respeito de seus pares, muitos sendo alçado a essa condição como uma espécie de homenagem à sua contribuição como médico para a mesma. Todas as pessoas que pensam o tema são unânimes em afirmar que novos atributos foram adicionados a essa função, como requisito básico para a melhor condução desse árduo trabalho que é estar à frente de médicos. Porque os médicos que formam o Corpo Clínico querem ser na maioria das vezes apenas médicos. Uns poucos querem participar da rotina administrativa da organização e outros tantos fazem esforços para se adequar a um comportamento de cunho supostamente gerencial, com o único objetivo de obter as compensações financeiras que dele se extrai.
Continua sendo inimaginável que uma estrutura complexa que é um hospital ainda abra mão dessas reflexões, por não considerá-las prioridades. É difícil entender como essa preocupação frequentemente é secundária, justamente quando o corpo técnico ao qual deve ser dirigido o foco é simplesmente um dos pilares, senão o mais robusto, um dos mais básicos da assistência. Impossível compreender como pagadores, presidentes, sócios majoritários e demais elementos na cadeia hierárquica superior dessas organizações ainda ignoram o fato de que a forma como seu Corpo Clínico trabalha tem relação direta com o melhor desempenho técnico, administrativo e financeiro.
Naturalmente muitos fatores interferem nessa percepção, que pode, inclusive, intencionalmente estar sendo mantida em plano secundário para benefício de uns em detrimento de outros melhor qualificados. Sim, existem profissionais qualificados para essa missão. São raros, caros e às vezes difícil de serem reconhecidos no meio de tanta mediocridade.
É uma pena. O mercado de panos de chão está em alta e agradece.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Vamos pedir piedade

Há uma canção do Cazuza que sempre me faz pensar, na medida em que remete à certeza de que somos em grande medida limitados enquanto seres humanos. Em “Blues da Piedade” (http://www.vagalume.com.br/cazuza/blues-da-piedade.html) ele escracha, como de hábito, um aparcela significativa das pessoas que vivem no nosso mundo, mas, de forma instigante na sua definição “perderam a viagem”. Mexe comigo porque frequentemente vejo que ele parece ter uma forte dose de razão. E começa assim:

“Agora eu vou cantar pros miseráveis que vagam pelo mundo derrotado, pra essas sementes mal plantadas, que já nascem com cara de abortadas...”

A princípio esse início não caberia num assunto que volta e meia vem à tona. O paralelo entre ambos está justamente na capacidade do ser humano ser tão pobre na percepção do universo ao seu redor. No caso das organizações hospitalares e de seu Corpo Clínico, dentre as muitas iniciativas de resultados duvidosos na sua implantação, a reflexão acerca da necessidade de criar um ambiente propício à prática de “Humanidades” me soa bastante incômodo.

“Pras pessoas de alma bem pequena, remoendo pequenos problemas, querendo sempre aquilo que não têm..”

Fomos inexoravelmente separados de uma prática ancestral que colocava médicos e pacientes em um nível de sintonia muito próximo. Desde meados do século XIX estamos sendo seduzidos de forma progressiva por um agir e pensar muitíssimo em desacordo com os princípios hipocráticos milenares que são o alicerce da profissão médica. Não se trata de uma afirmação tão óbvia assim: muitos têm dificuldade em entender em profundidade esse pressuposto básico, que nos acompanha desde a colação de grau.

“Pra quem vê a luz, mas não ilumina suas mini certezas.”

Poderia discorrer sobre os diversos fatores que levaram a essa situação, mas sem nenhuma dúvida o exagerado apego à tecnologia nas suas mais diferentes manifestações mudaram comportamentos e percepções, tornando nós, médicos, em entusiastas de uma forma de agir e pensar que reza pela objetividade levada ao extremo, calcada na premissa de que o ser humano no processo de adoecimento necessita primordialmente da adoção de critérios bem estabelecidos de diagnóstico e tratamento para seus variados problemas de saúde, mantendo distância segura de qualquer envolvimento ou aquisição de conhecimentos acerca das dimensões psicológicas ou sociais que envolvem cada um nesse processo e estreitando toda a prática a uma faixa de atuação bastante limitada.

“Vive contando dinheiro, e não muda quando é lua cheia”.

Não raro percebemos como o distanciamento dessas dimensões subjetivas, trazem frustração tanto para quem trata quanto para é tratado. Um reflexo disso nos anos mais recentes é exemplificado na popularização de abordagens mais holísticas por parte de profissionais de saúde, não necessariamente médicos (aí residindo, inclusive, a abertura de oportunidades para a imperícia e o charlatanismo), tal como as práticas alternativas de medicina, dentre elas a Acupuntura e a Homeopatia, que consideram no seu âmago toda uma estrutura de vida e de relacionamento do mundo que hoje a medicina tradicional, ocidentalizada e consagrada por métricas estranhamente incompletas, não dá conta.

“Pra quem não sabe amar........Vive esperando alguém que caiba no seu sonho”.

As operadoras de planos de saúde, através de um viés obviamente econômico, há algum tempo já perceberam a necessidade de mudanças nas suas escolhas de serviços e profissionais prestadores de serviço, tentando (de forma ainda desastrada e sem muita eficácia) privilegiar a atuação do profissional de formação mais generalista, o que não deixa de ser uma possibilidade para o usuário ter uma abordagem mais ampla de seu problema. Alguns chegam a remunerar melhor esse profissional, na expectativa de que dessa forma poderão melhorar suas receitas operacionais pela redução de encaminhamentos a especialistas e no volume de internações/procedimentos desnecessários.

”Como varizes que vão aumentand....Como insetos em volta da lâmpada”

Nos hospitais, a figura do hospitalista vem ganhando reconhecimento e popularidade. A despeito de algumas lacunas conceituais, a figura de um indivíduo que ao menos se propõe a lidar com o paciente de forma mais integrada, com uma visão de conjunto antes inexistente, denota uma evolução gradual nas práticas de se fazer Medicina. Falta ainda percorrer uma boa faixa de terreno para se chegar a uma uniformização quanto a alguns aspectos assistenciais, mas algumas organizações já avançam no sentido de dar um caráter multidisciplinar à abordagem dos pacientes internados, passando a privilegiar informações e percepções que até a algum tempo soariam como risíveis, objeto de gracejo por parte principalmente de nós, médicos, e dos gestores em geral. E ainda o são para uma parcela significativa, muitos deles bem jovens.

“Vamos pedir piedade, Senhor piedade. Pra essa gente careta e covarde. Lhes dê grandeza e um pouco de coragem.”

Esse é outro aspecto cruel em toda a história. As grades curriculares das faculdades de Medicina continuam a reproduzir uma práxis voltada para o endeusamento da inovação tecnológica e para a aquisição de valências essencialmente técnicas, desprovidas de vivências humanísticas, a despeito de um discurso revolucionário de fachada. O acesso à informação é cultuado e colocado num patamar de importância tão grande que dita comportamentos: se você não leu, não acessou ou não clicou você não está sintonizado. Não é surpresa que nesse contexto não sobre algum espaço para uma discussão que leve em consideração esses tais aspectos humanísticos da relação médico-paciente. A esse respeito recomendo a leitura da excelente revisão do assunto no texto “A influência da visão holística no processo de humanização hospitalar”, que está disponível na internet.

“Quero cantar só pras pessoas fracas, que estão no mundo e perderam a viagem. Quero cantar o blues, com o pastor e o bumbo na praça.”

Dessa forma, voltamos ao ponto de partida. De forma vertical, de cima para baixo, organizações, instituições e governos tentam incutir valores e formas de pensar que tragam à tona essas reflexões, fomentando a realização de congressos, publicações, cursos, sociedades de humanização, grupos de discussão e por aí vai. Eivadas de boas intenções, todas as iniciativas, que transitam no terreno da Bioética, ainda não encontram solo firme para a sua fundação. E, cá entre nós, humanizar relações humanas? Tem redundância maior que essa? 

“Vamos pedir piedade, pois há um incêndio sob a chuva rala.”

O núcleo familiar, como sempre, sempre será o cenário ideal para a formação do indivíduo humanista. Famílias que prezam o amor ao ser humano de maneira incondicional, a abolição incondicional dos preconceitos e a adoção de valores éticos e morais sublimes formam cidadãos “humanos”, sem necessidade de serem doutrinados no futuro. Sejam médicos ou quaisquer outros profissionais. E independente de convicções religiosas ou a ausência delas. Mas já que não podemos interferir nesse processo de formação do indivíduo, que na opinião de muitos está em franca deterioração em função dos novos arranjos que a sociedade moderna incorporou, pelo menos as universidades, centro formador do caráter do indivíduo sob vários aspectos, poderiam tentar pelo menos trazer alguns desses elementos para a discussão e reflexão.

“Somos iguais em desgraça. Vamos cantar o Blues da Piedade”

É muito difícil aceitar que médicos, principalmente aqueles que aparentam maturidade em função dos anos de contato com o ser humano, reproduzam atitudes de desrespeito e de “coisificação” do sagrado ato médico e de seu paciente aos seus cuidados, em detrimento de um enaltecimento das “coisas” ao redor. No nosso cotidiano, independente da arena aonde se encontra, a razão de ser será sempre o ser humano. Não se pode esperar nada menos que uma atitude humanista na sua essência no trato com o paciente que lhe procura ou lhe foi confiado. E com perdão da ironia, vejam só, coincidentemente humano também.

Para finalizar, cito Antonio Damásio, que no seu livro “O Erro de Descartes” (http://livros-downloads.blogspot.com.br/2010/09/o-erro-de-descartes-antonio-r-damasio.html), uma obra que tenta mostrar que o famoso filósofo se equivocou ou separar a razão da emoção no ser humano, escreve um capítulo abordando essas questões e conclui, a meu ver de forma muito apropriada: “Se, como julgo, o êxito atual dos tratamentos alternativos é um indício da insatisfação do público em relação à incapacidade da medicina tradicional de considerar o ser humano como um todo, é de prever que essa insatisfação irá aumentar nos próximos anos, à medida que se aprofundar a crise espiritual da sociedade ocidental”


Vamos pedir piedade.