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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Resolução 1.956/10: gol de placa para o Conselho Federal de Medicina

Durante muito tempo hesitei em fazer algum tipo de comentário que envolvesse a questão da utilização de órteses, próteses, materiais implantáveis e materiais especiais, mais conhecidos pela sigla OPME. Reza a sabedoria popular que quanto maior a ignorância a respeito de um assunto suspeito, maior é a felicidade do indivíduo, e nesse caso não é diferente. Entretanto, já inicio esse texto informando que por mais ampla que seja a análise, ainda faltarão kilômetros de aspectos a serem comentados.
Na condição de coordenador médico, vivenciando experiências em hospitais de todos os tamanhos e complexidades, me foi impossível não adentrar nesse universo tão complexo e ao mesmo tempo tão velado que envolve médicos, administradores de hospitais e representantes das indústrias de materiais, medicamentos e equipamentos. Na maioria das vezes, mesmo com o peso da representatividade, os avanços no entendimento mais detalhado do fenômeno não foi possível em função do pouquíssimo acesso às informações fornecidas pelos seus protagonistas. Naturalmente, não é o tipo de assunto que se fale por aí. Mas eis que, após alguns pequenos avanços, finalmente surge um documento mais completo e objetivo para regular as relações entre os fornecedores e aqueles que em função da utilização destes insumos podem ter algum benefício paralelo. É interessante notar que apesar desse avanço, em nenhum momento a sociedade civil tomou conhecimento mais aprofundado a respeito do grau com que essas relações ocorrem. O consumidor final, ou seja, o paciente, que pode ser qualquer indivíduo (inclusive você que me lê), não sabe o que envolve a aquisição e aplicação ou implantação daquele material, droga ou equipamento que está sendo indicado para tratamento de seu problema de saúde. Esse é um perfeito exemplo de assimetria de informação, na qual o paciente não tem a menor possibilidade de questionar se o que está sendo indicado é o mais correto, o melhor, o mais durável, o menos sujeito a defeitos e revisões, e por aí vai.
As mudanças ocorridas no mundo e em nosso país nos últimos anos acentuaram ainda mais essa questão, proporcionando a oportunidade para que a discussão a respeito do tema tomasse seu lugar nas pautas. Comparando dois momentos na história recente do país podemos, dentre tantas outras diferenças, apontar algumas cruciais:
Década de 90:
- Pirâmide populacional iniciando processo de inversão, menor proporção de idosos;
- Insumos médicos importados com preços muito elevados, regras fiscais e tributárias desestimulando a aquisição destes no exterior;
- Produção industrial nacional incipiente e de baixa complexidade;
- Poucas inovações no mercado de drogas, próteses e órteses;
- Menor quantidade de especialidades médicas no país;
- Procedimentos de maior complexidade e custo geralmente repassados para e arcados pelo Sistema Único de Saúde;
- Ausência de cobertura contratual para inúmeros procedimentos para usuários de planos de saúde;
- Ambiente de inflação descontrolada e incertezas quanto às regras de comércio, desestímulo à produção e ao empreendedorismo;
- Menor quantidade de profissionais médicos entrantes no mercado;
- Poupança pública e individual em baixo nível;
- Demandas éticas pouco noticiadas, conflitos de interesse pouco visíveis.

Dias atuais:
- Inversão progressiva da pirâmide populacional, maior proporção de idosos;
- Alíquotas de importação mais baixas para produtos médico-hospitalares, competitividade, fortalecimento das empresas nacionais, maior oferta de produtos importados de maior custo e complexidade;
- Inovações sucessivas na cadeia de produção de artigos médico-hospitalares, principalmente próteses;
- Criação de inúmeras sub-especialidades médicas;
- Regulação da Agência Nacional de Saúde – ANS no número de planos de saúde, interferência direta na determinação de reajustes a usuários, fiscalização das operadoras;
- Reajustes de materiais especiais na Tabela SUS abaixo do esperado, viés econômico na preferência por materiais de origem nacional;
- Incorporação de procedimentos especiais e de alta complexidade a serem arcados por planos de saúde;
- Maior quantidade de profissionais no mercado;
- Demandas judiciais freqüentes;
- Maior acessibilidade à informação científica através da internet;
- Conflitos de interesse e demandas éticas mais visíveis, denúncias mais freqüentes;
- Interferência direta da indústria na preferência do profissional, com oferta de benefícios de ordem financeira e outros.

O constrangimento causado por esta prática vem despertando manifestações cada vez mais frequentes no meio médico, dado que nem mesmo escalas hierárquicas mais elevadas nas organizações são imunes à sedução, cada vez mais poderosa, que esses benefícios incluem. Estamos falando em valores que podem chegar a  cinco ou seis dígitos em função de percentuais sobre o valor de venda: no campo cardiologia intervencionista, por exemplo, equipamentos implantáveis tais como cardioversores/desfibriladores podem chegar a custar em média R$ 50.000,00 na tabela SUS. No caso dos materiais utilizados pelos planos de saúde, esses valores podem duplicar ou até mesmo triplicar.
Lembro-me bem de um texto publicado no portal do CFM em 2009, que mostrava a indignação do Dr. José Pedro Jorge Filho, intitulado "A Maldição da Prótese" (para ler na íntegra, acesse http://www.portalmedico.org.br/artigos/artigo.asp?id=1059). Nele, Dr. José Pedro coloca o assunto nas suas dimensões éticas de forma didática e contundente. Porém nada se compara à Resolução 1.956/10 (que pode ser acessada na íntegra em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1956_2010.htm, comentários em http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21177:resolucao-recebe-apoio-de-entidades&catid=3).
O texto da resolução diz que, ao invés de direcionar sua escolha através de determinadas marcas de sua preferência, o profissional solicitante deverá listar as características físicas e funcionais do material que ele necessita para a realização de um determinado procedimento, sem mencionar fabricantes. A partir de então, caberá à fonte pagadora (SUS ou operadora de plano de saúde) adquirir o material com as especificações descritas.  No caso de não concordância com o material disponibilizado por esta última, diz o artigo 5º: "O médico assistente requisitante pode, quando julgar inadequado ou deficiente o material implantável, bem como o instrumental disponibilizado, recusá-los e oferecer à operadora ou instituição pública pelo menos três marcas de produtos de fabricantes diferentes, quando disponíveis, regularizados juntos à Anvisa e que atendam às características previamente especificadas.
Parágrafo único. Nesta circunstância, a recusa deve ser documentada e se o motivo for a deficiência ou o defeito material a documentação deve ser encaminhada pelo médico assistente ou pelo diretor técnico da instituição hospitalar diretamente à Anvisa, ou por meio da câmara técnica de implantes da AMB (implantes@amb.org.br), para as providências cabíveis".  Se ainda assim persistir a divergência, diz a resolução que um perito especialista será nomeado para arbitrar a respeito da questão.
Mal o documento acabou de ser escrito e uma série de manifestações, a maioria de apreço e incentivo, começaram a surgir (veja o resultado da reunião da Câmara Técnica de Implantes da Associação Médica Brasileira em 10/12 em http://www.amb.org.br/teste/index.php?acao=mostra_noticia&id=6603). Outras tantas destacam a limitação da liberdade de atuação do médico, pedra angular da chamada boa prática. A esse respeito não há como deixar de registrar o frequente viés no qual tal argumento é levantado, a despeito da existência de excelentes profissionais que pautam seu trabalho com honestidade e retidão, sem se deixar seduzir por vantagens escusas. Mas o CFM entende que não há outra maneira, e nesse sentido foi um gol de placa.
A discussão não se encerra com a publicação da resolução. Problemas devem surgir em decorrência de uma interpretação mais ou menos fora do eixo, de acordo com quem a interpreta. Senão vejamos:
      * os planos de saúde devem ver na medida uma excelente oportunidade de oficializar aquilo que já vem sendo feito na prática. Com relação a este aspecto, muitas operadoras têm imposto aos profissionais que necessitam fazer uso destes materiais produtos fabricados por empresas desconhecidas ou com pouca tradição nesse mercado, a maioria nacionais, apesar de salvaguardadas as exigências legais e o registro destes na Anvisa. Muitos destes materiais despertam desconfiança, e nunca é demais lembrar que alguns riscos de mau funcionamento ou quebras (necessitando imediata intervenção para a retirada) existem, porque há diferenças de qualidade inequívocas entre os vários fabricantes, de uma forma geral. Aqui, como em qualquer segmento de mercado, maior qualidade e durabilidade estão geralmente associados a maior custo;
      * um dos possíveis efeitos benéficos apontados pelos autores da resolução seria uma menor quantidade de demandas judiciárias em função de os conflitos poderem agora ser arbitrados sem a necessidade de irem até os tribunais. Não há nenhuma garantia de que o judiciário, que sente-se muito desconfortável em ter que julgar questões dessa natureza, ser impelido a julgar a capacitação do árbitro perito designado, se assim for contestado por uma das partes;
      * e por falar em árbitro, a resolução também não fixou ainda os critérios para a nomeação deste. Falou-se em um perito especialista na área, e só. Aqui também não há, mesmo que esse perfil venha a ser parametrizado, nenhuma garantia de que ele mesmo não possa estar envolvido num conflito de interesses. Temos de um lado um médico, cidadão, e do outro uma grande empresa. Quem já viu o documentário "The Corporation" sabe do que estou falando;
      * os profissionais  de saúde têm muitas competências, na imensa maioria das vezes utilizadas para o bem. Se um fabricante de material especial inventar que um dispositivo é mais eficiente se for pintado de azul e não de vermelho, e somente aquele fabricante assim o faz , com toda a certeza não faltarão estudos e pareceres atestando a eficiência do dispositivo azul (como dizia um professor de Metodologia Científica, nesse meio você prova o que quiser desde que tenha um bom estatístico por detrás da pesquisa). Estando o profissional seduzido, ele pode tirar vantagem disso;
      * as tabelas de preço destes materiais não são uniformes. Diferenças exorbitantes no preço ocorrem entre países, entre estados, entre cidades, entre hospitais e entre operadoras de planos de saúde. Enquanto não houver a publicação de valores de referência, o trabalho de fiscalização será mais árduo.
É ver para crer. Torcemos muito para dar certo. Já estava na hora de alguém fazer algo a respeito.


terça-feira, 7 de dezembro de 2010

"Sobre a morte e o morrer" parte 5: a morte aonde menos se espera.

Um aspecto que passa frequentemente despercebido do público em geral, e inaceitavelmente ignorado ainda hoje pelos gestores de saúde em particular, é a questão da segurança ao paciente internado. Uma quantidade enorme de situações de risco está ocorrendo neste exato momento nos hospitais, não só no Brasil como no mundo inteiro, e geralmente são ocasionadas por erros de dosagem de medicações, interações medicamentosas não suspeitadas ou negligenciadas, efeitos adversos de drogas (antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos, contrastes iodados para exames de imagem, dentre outros) e derivados de sangue (incluindo reações alérgicas potencialmente fatais), efeitos nocivos ocasionados pelo uso de equipamentos utilizados em diagnósticos ou terapias (dialisadores, ventiladores mecânicos, cateteres inseridos com finalidade de monitoração clínica, etc..) e quebra de protocolos na assistência (tais como tempo de desinfecção de instrumentais cirúrgicos inadequado, falta de assepsia na manipulação de drogas e dietas, funcionários inadequadamente treinados no manejo de pacientes, dentre tantas outras situações). O Ministério da Saúde e a ANVISA, responsáveis pela regulamentação de normas voltadas para o setor, apresenta dados fragmentados e estatísticas imprecisas daquilo que se convencionou chamar de Farmacovigilância, Hemovigilância e Tecnovigilância, mas as dificuldades de mensuração destes eventos é realmente difícil. Como nosso país não privilegia uma política de fiscalização e capacitação na prevenção eficazes, os casos seguem acontecendo.

No dia 05/12, vimos acontecer mais um desses casos, com a menina Stephane dos Santos Teixeira, de apenas 12 anos. No caso dela, foi injetado em sua veia vaselina líquida ao invés de soro, levando a um agravamento do quadro, sua transferência para a UTI da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e posterior óbito (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/12/06/cremesp-e-santa-casa-abrem-sindicancia-no-caso-da-adolescente-que-recebeu-vaselina-na-veia.jhtm). Esse é um exemplo extremo, gritante e absurdo, porém extremamente ilustrativo de como as coisas ocorrem. E não é o único.

O fato é que na rotina dos hospitais os casos de danos à saúde dos pacientes, nem todos levando ao extremo do óbito, são bem mais sutis e podem facilmente ser atribuídos a outras coisas. No ambiente da UTI isso é levado ao extremo, pois nessas circunstâncias os pacientes, muitas das vezes idosos (população particularmente susceptível a efeitos adversos de drogas), portadores de múltiplas morbidades e crianças (principalmente neonatos, que não podem manifestar de forma objetiva o que sentem), são submetidos a inúmeros procedimentos e tratamentos que são necessariamente importantes, e que, com a consciência da equipe assistencial ou não, acabam por se constituir numa ação na qual o benefício supera o risco. E um eventual dano é assumido em função de uma possível vantagem no tratamento.

Outro setor crítico nesse aspecto é o centro cirúrgico. No embalo das reportagens oportunistas, a imprensa vem ressuscintando notícias de fatos passados, mas convenientes para engrossar a matéria. Recentemente uma criança de dois anos foi submetida a três procedimentos ao invés de um, como estava programado (veja http://noticias.uol.com.br/ultnot/agencia/2010/11/10/ult4469u64731.jhtm). Todas as medidas disciplinares e administrativas parecem ter sido tomadas nesse caso. A direção do hospital parece ter agido como deveria. Mas engana-se quem acha que situações como essa são raras. Não são. A coisa é tão séria que os maiores institutos de qualidade dos Estados Unidos, local aonde situações como essas tem um impacto tremendo (principalmente no que tange a idenizações por erros médicos), recomendam a realização de um "check-list" completo pela equipe cirúrgica antes de qualquer procedimento, englobando, dentre tantas outras perguntas, algumas prosaicas como "você tem certeza de qual membro irá operar?". Parece engraçado, mas operar o joelho errado, por exemplo, não é novidade em nosso país.


Especialistas no assunto advertem para o grau de conhecimento que um recém-formado em medicina tem a respeito da utilização das drogas em geral no tratamento de pacientes. Num estudo feito na Universidade de São Paulo, aonde se encontra a melhor escola médica do país, mais de cinquenta por cento dos entrevistados recém-formados não sabiam prescrever drogas de uso corriqueiro tais como analgésicos, drogas para vômitos e anti-inflamatórios. Muito menos seus potenciais efeitos interativos com outras drogas ou cuidados com superdosagem. Pesquisadores norte americanos vão mais além. Segundo vários deles, o custo total dos danos diretos e indiretos relacionados aos efeitos adversos de drogas e tratamentos só não superam aqueles relacionados às doenças cardiovasculares. Portanto, não é um detalhe: é um fato relevante.

Os hospitais, principalmente aqueles de maior porte (acima de 100 leitos) devem constituir uma Comissão de Farmacovigilância (que englobaria também a hemo e a tecnovigilância), para a proteção de seus pacientes e também de seus colaboradores. Existem trabalhos na literatura bastante extensos ensinando a buscar o efeito adverso e a preveni-lo, assim como manuais atualizados da ANVISA, mas é necessário se prontificar a encontrá-los, analisá-los, adaptá-los à realidade da organização e a partir daí adotar uma postura pró-ativa na prevenção dos mesmos. O investimento seguramente é superado pelo benefício aos pacientes.

Seria muito bom se as agências fiscalizadoras das atividades hospitalares, através de órgãos públicos (como as secretarias de saúde, por exemplo), pudessem criar algum tipo de programa de capacitação em diversos níveis, visando a sensibilização do pessoal hospitalar e o fomento à criação destas comissões, com exigência de notificações, como já é feito em relação às infecções hospitalares, e a promoção de ações conjuntas de melhoria dos padrões. O Conselho Federal de Medicina, por determinação legal, obriga a todos os hospitais e formarem algumas comissões, ditas obrigatórias (Comissão de Ética, de Ética em Pesquisa, de Infecção Hospitalar, e de Revisão de Prontuário), além do Regimento Interno do Corpo Clínico. A Comissão de Farmacovigilância não é sequer citada. Porque se depender da vontade dos gestores, no atual cenário de contenção de gastos e de acomodação em relação a novos desafios, ficaremos na mesma situação. Principalmente numa questão na qual na esmagadora maioria das vezes o dano é sutil e não pode ser relacionado inequivocamente a um possível erro de dosagem, ou de interação medicamentosa, ou seja lá o que for.