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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O Corpo Clínico em evidência: bandido ou mocinho dos custos assistenciais?

Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças.
Leon C. Megginson

Algumas reflexões sobre aspectos relacionados às políticas de saúde têm sido precedidas por outras mais urgentes ou de maior repercussão, a despeito da relevância intrínseca que cada um individualmente representa. O atual momento político confuso no nosso país, aliado a outros problemas de abrangência internacional, levam os formuladores de políticas de saúde a restringirem seus aprofundamentos às urgências cotidianas, num momento em que outras demandas urgentes clamam por direcionamento.

Enquanto assistimos com pesar a disseminação do vírus zika pelo mundo, os círculos do poder no nosso país discutem iniciativas de eficácia duvidosa. Assim o é, por exemplo, com relação à proposta de criação de um plano de saúde para a população de menor poder aquisitivo. A idéia é que essas pessoas possam ter acesso a serviços de saúde que de outra forma não teriam se dependessem única e exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), dadas as dificuldades de acesso a consultas, exames e procedimentos que, em tese, deveriam ser supridos pelo referido sistema. Sob uma lógica evidentemente neo-liberal, postula-se o desmantelamento de um patrimônio do povo brasileiro conquistado (não sem muita luta), sob o argumento de que o custo de manutenção do sistema é inaceitavelmente alto. Segmentos representativos da sociedade já se debruçam sobre como contestar a iniciativa, e possivelmente saberão através dos meios legais não deixar que a ideia, falsa, falaciosa, ignorante e sob motivações suspeitas; venha a vicejar. Mas vamos falar sobre isso em outro momento 

No cenário internacional também não faltam elementos para discussão, envolvendo prioritariamente dificuldades advindas dos custos de manutenção de padrões de qualidade na assistência à saúde, historicamente estabelecida, tanto pelas nações em que o Estado protagoniza as políticas assistenciais, como por aquelas em que a livre concorrência e ausência ou pouca interferência estatal é a regra. Nesse aspecto, é interessante a notável confluência de interesses na busca de soluções.

Uma das idéias recorrentes voltadas para este fim está centrada no conceito de que o verdadeiro caminho para uma assistência à saúde deve privilegiar o resultado final do ciclo de atendimento de uma pessoa ou de uma população, ou seja, o valor que é entregue ao final desse ciclo. Vários autores e importantes pensadores, principalmente da Escola de Harvard, têm preconizado que a se manter o cenário atual, e principalmente, no que virá a ser em poucos anos, os sistemas de saúde vão certamente implodir. Apenas para ficar num exemplo, nos Estados Unidos da América (EUA) o percentual do Produto Interno Bruto (PIB) destinado à assistência global à saúde é atualmente de 18 a 20%, dependendo da fonte. Outras nações enfrentam dificuldades semelhantes, se bem que em percentuais menos assustadores. Acredita-se que se nada for feito em relação aos custos de manutenção do sistema, em menos de vinte anos o percentual do PIB destinado à saúde nos EUA chegará a 30%, o que, do ponto de vista de gestão orçamentária, é certamente inaceitável e impossível de ser mantido.

Segundo o economista em saúde Len Nichols, “a reforma do pagamento que recompensa a qualidade em detrimento do volume é a chave para usar as forças do mercado para alinhar incentivos para pacientes, prestadores e pagadores” (http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1001604#t=article – acesso em 01/09/2016). Reforçando a tese, Michael Porter, um cientista aeroespacial que se tornou uma referência mundial na disseminação dos conceitos envolvendo entrega de valor ao paciente, também tem vasta produção abordando essa idéia, incluindo o seu famoso livro “Repensando a Saúde – Estratégias para Melhorar a Qualidade e Reduzir Custos” (Bookman- Grupo A, 2006). Com a repercussão extremamente positiva de suas convicções no nosso meio, principalmente entre os pagadores de serviços, Porter chegou a vir ao Brasil por duas ou três vezes como convidado para ajudar a disseminar as suas idéias, sempre com auditórios cheios e resultados invariavelmente pífios com relação à mudança de atitudes. Aqui, como em seu país natal, nem sempre idéias bem recebidas se cristalizam em iniciativas. Faz algum tempo que ele não retorna aqui.

Mais recentemente pudemos conhecer algumas experiências concretas nesse campo, que aparentemente se mostram promissoras do ponto de vista de resultados clínicos satisfatórios e recompensas aos prestadores com economia substancial de recursos. A obra “Buscando o Triple Aim na Saúde” (Atheneu, 2015), por Maureen Bisognano e Charles Kenney, nos apresenta alguns exemplos em que a predisposição de tentar caminhos diferentes dos que existem na assistência à saúde sob a ótica da compensação financeira atrelada ao valor obtido ao cabo de um ciclo de doença pode, aparentemente, lograr êxito. Na obra são elencadas algumas experiências que, se não perfeitas, parecem ter sim resultados satisfatórios para profissionais, gestores, provedores e pagadores de saúde. Apesar de conclusões que apontam nessa direção, fatores como a dificuldade de estabelecer métricas de avaliação dos serviços, mecanismos de pagamento super ou subdimensionados, e ausência de transparência, são apontados pelos autores como problemas ainda sem solução.

Mas que não se iludam os entusiastas. Os caminhos não são fáceis de serem trilhados e relatos dessa natureza tendem a ser enviesados por diversos motivos. Para nós, não custa repetir o recado: idéias e conceitos não são modelos estabelecidos de sucesso. Ainda que fossem, modelos nem sempre são reprodutíveis em circunstâncias diversas. Ou seja, se deu certo em um lugar, não significa que dará certo em outro. Por falar em motivos, não nos esqueçamos que a preocupação com a saúde da população é real, mas tão ou mais real ainda é a preocupação do quanto vai custar aos pagadores: governos e corporações.

Quanto aos hospitais, não conhecemos ainda no nosso país iniciativas dessa natureza que possam ser replicadas dadas a nossa infinidade de arranjos organizacionais na prestação de serviços em saúde, nosso ambiente político e regulatório, e, principalmente, nas formas de pagamento. Algumas organizações de reconhecida reputação e que há muito incorporaram no seu DNA os modernos conceitos de Qualidade enquanto política institucional, gradualmente vem adotando métricas e práticas que privilegiam o custo-efetividade e a eficiência alocativa de recursos de forma mais pragmática que aqueles que, a despeito de um discurso sintonizado com tendências atuais, e com os mesmos níveis de certificação de qualidade, ainda vivem sob total dependência do modelo que privilegia o volume de produção como referência para a remuneração pelos seus serviços prestados.

Discursos não faltam para repetir as mesmas queixas em relação ao sistema vigente e tendem a se tornarem escassos na medida em que se esgotam: ouve-se mais do mesmo. Críticas à estrutura política, percepções vagas sobre alternativas para superar crises, opiniões que se repetem de forma automática e, principalmente, reforço sobre a desordem gerencial nos marcos regulatórios da prestação dos serviços em saúde tanto públicos e privados, ainda não tiveram a capacidade promoveram alguma mudança de mentalidade que se traduza em ação.  Todos os segmentos envolvidos na assistência à saúde percebem de forma muito clara a necessidade de transformações imediatas, mas poucos se arriscam a fazer mudanças na direção de uma matriz que possa satisfazer se não todos os elementos dessa cadeia, pelo menos o paciente. Mais comum uma postura conservadora com relação aos destinos do mercado, deixando para frente decisões tão polêmicas.

As propostas que trazem uma tentativa de agregar valor ao paciente e ao serviço de saúde no ciclo de atendimento são mais uma das muitas que já foram sugeridas. Não é possível que com tanto material produzido aqui e no mundo, tantas boas idéias formuladas na busca de um ideal assistencial, ainda tenhamos que nos ater a um modelo de produção de bens e serviços em saúde que privilegie pura e simplesmente o pagamento por serviços prestados. Não vai se sustentar. Simples assim.

Sob esse aspecto, um misto de comodismo, urgências para as demandas motivadas por custos cotidianos, e interesses pouco claros ou suspeitos impedem que, por exemplos, lideranças clínicas, pagadores, gestores, fabricantes de insumos, a academia e estratos do governo sentem-se na mesma mesa para discutirem de forma séria alternativas aos modelos existentes na prestação de serviços à saúde e aos mecanismos de financiamento.

Nos hospitais em especial (elemento dessa cadeia com fortíssimo impacto nos custos assistenciais), a manutenção de modelos de prestação de serviços de maneira conservadora dá a falsa impressão de segurança da viabilidade do negócio em si. Meras quimeras. Há décadas tanto os hospitais públicos quanto os privados, em sua imensa maioria, têm muito mais a se queixar que a comemorar. Não é à toa que justamente aqueles que privilegiam políticas de qualidade (faço questão de assinalar que adotar políticas de qualidade não é sinônimo de ter Certificados de Acreditação. Enquanto um é princípio básico, elemento de seu core, o outro é uma conseqüência e não um fim em si) ou que tiveram a capacidade de identificar os quadros mais apropriados que deveriam estar à frente da sua complexa gestão, são aqueles que servem de exemplos de eficiência dentre as organizações hospitalares. Mas cabe aqui uma distinção: certificação de qualidade não é sinônimo de vontade para alterar o modelo vigente, que privilegia a quantidade com valor agregado. O que se propõe é a quebra dessa lógica em nome de uma medicina longitudinal e não horizontal, mais enxuta nos custos sem perda de qualidade.

E dentro da rotina hospitalar, a prestação de serviço ao paciente internado é sem dúvida o ponto nevrálgico dessas reflexões, por representarem com seus números superlativos a essência do que se faz, como se faz e quanto se faz. Dito de outra forma, não é falso admitir que os maiores custos (nas organizações públicas) e recompensas (nas organizações privadas), dentro da lógica vigente, tem a ver diretamente com o tipo de assistência que é prestada ao pacientes internados em suas dependências. O que inevitavelmente também nos remete à atuação do Corpo Clínico nesses espaços.

Seguindo pelo mesmo raciocínio, também não é errado admitir que num contexto mais amplo, a não adoção de algum tipo de direcionamento, métrica ou arranjo entre os membros do Corpo Clínico que propicie a incorporação de princípios de atenção global (e não fragmentada entre múltiplos especialistas), humanidades (evitando delegar responsabilidades simples aos psicólogos e assistentes sociais, por exemplo), agregação (envolvendo a equipe multiprofissional nas discussões, principalmente a enfermagem) e senso de racionalidade (evitando exames e terapias desnecessárias ou não prioritárias, considerando a relação custo-benefício e de custo-efetividade de suas práticas); conduza a um resultado operacional e assistencial que tende a ficar muito aquém do potencial, do que seria possível ser feito. Os elementos acima representam apenas os alicerces da boa assistência médica, seja qual for o modelo adotado. Arrisco dizer que isso não se vê com clareza em boa parte das organizações hospitalares. Senão na maioria.

O desenvolvimento de iniciativas como a disseminação do conceito de Medicina Hospitalar representam um avanço considerável na percepção do que vem a ser uma assistência de qualidade para o paciente internado nos hospitais. As vantagens da adoção do modelo são inequívocas. Mas esse mesmo modelo ainda hoje enfrenta barreiras importantes, e que vão desde a impossibilidade financeira dos hospitais em contratarem equipes capacitadas (situação ainda vigente para a imensa maioria dos hospitais), até ineficiência total do modelo em função da não compreensão dos seus objetivos, e, por conseguinte, suas vantagens competitivas no ambiente externo, além da segurança e qualidade para os pacientes internados. Mas a Medicina Hospitalar também não é o único meio para melhorar o desempenho hospitalar nesse aspecto. A percepção da necessidade de se obter melhores resultados no campo da segurança assistencial, resultados clínicos e recompensas financeiras advindas disso, poderia mobilizar pagadores, gestores e governantes que estejam sensíveis à percepção de que algo efetivamente precisa ser feito. Propostas de ação, idéias inovadoras e mecanismos de transformação não faltam nas nossas estantes.

Nosso país, assim como os EUA, caminha para a anarquia e inadimplência generalizada na prestação de cuidados em saúde, que não poupará ninguém. Ninguém mesmo.


Mudar é possível, preciso e urgente. 

domingo, 15 de maio de 2016

O futuro do Corpo Clínico

“Existem três tipos de empresas (e pessoas): as que fazem as coisas acontecerem, as que ficam vendo as coisas acontecerem e as que perguntam: o que aconteceu?”
Philip Kotler

A despeito da paralisia coletiva provocada pelas turbulências nacionais e as transformações mais recentes mundo afora, a partir da análise de informações que circulam no meio, principalmente acadêmico, algumas mudanças silenciosas nas características demográficas populacionais, nas políticas de saúde e nos processos internos dos hospitais estão em pleno avanço sem que os principais formadores de opinião ainda se dêem conta.

Num mercado que envolve negócios de vários zeros e que emprega uma porção substancial da força de trabalho nos diversos países, como o nosso, o hospital, enquanto organização, tem um papel de absoluto destaque, sendo muitos os motivos histórico-sociais que os transformaram em referência no tratamento das doenças em geral. A dinâmica assistencial no modelo adotado pelos governantes ao longo de décadas privilegia o hospital como centro de referência para a prestação dos serviços de saúde, tendo como motor a geração de receita operacional a partir dos processos relacionados à ocupação de suas unidades de internação com pacientes em seus mais diversos problemas.

A sofisticação tecnológica crescente incentivada e incorporada por seus gestores, a criação e oferta de novos serviços de continuidade da assistência, assim como a concentração de muitos quadros técnicos de referência numa mesma estrutura predial, aliados aos já conhecidos fatores demográficos em transformação (tais como envelhecimento populacional e maior prevalência de doenças crônicas), acabaram por criar no imaginário popular e no das pessoas que têm uma relação próxima ao poder (estes muitas vezes com uma visão distorcida, intencional ou não, do que vem a ser assistência à saúde de qualidade), a firme proposição de que essas estruturas bastam para atender às necessidades da população. Como conseqüência, devem ser privilegiadas com relação a investimentos e políticas de beneficiamento e, em alguns casos, de tratamento fiscal diferenciado. Aqui, com alguns pormenores gerados pela contemporaneidade, os argumentos se repetem da mesma forma com tem sido há quarenta anos, fazendo prosperar por tempo indeterminado a manutenção daquele modelo hospitalocêntrico tão duramente contestado por aqueles que acreditam em outras formas de se gerar saúde do ponto de vista de coletividade.

Porém eis que uma transformação está em curso.

De forma gradual o hospital, da forma como o concebemos, encontra-se numa curva descendente cada vez mais inclinada enquanto local para internação de pacientes.  Sem levar em consideração seus outros papéis assimilados ao longo do tempo, pode-se afirmar, sem medo de errar, que a não ser que sua estrutura seja exclusivamente ambulatorial (o que foge ao conceito lato de hospital) ou seu modelo de negócio seja exclusivamente do tipo “Day Hospital”, dentro de poucas décadas a disponibilidade de leitos hospitalares será drasticamente reduzida. Senão vejamos:
  • A percepção de que na atual conjuntura a sobrevivência organizacional no mercado de saúde tem privilegiado aqueles hospitais cuja produção de serviços ocorre em escala, muitos têm experimentando dificuldades financeiras e destes um número significativo tem fechado as suas portas ou estão passando para controle de outros grupos de maior porte, principalmente os de estrutura familiar. Os motivos são muitos e escapam ao escopo desse artigo;
  • A disponibilização de leitos hospitalares segue um padrão assimétrico a depender da localização e da natureza de gestão do hospital: hospitais públicos e privados situados nos grandes centros concentram a maior parte dos atendimentos e procedimentos, são os que têm maiores custos e receitas (ou orçamentos), e têm maiores taxas de ocupação. Nos milhares de hospitais espalhados pelo país, em torno de 60% são estruturas com até 50 leitos, com baixo arsenal tecnológico e capacidade resolutiva (a maioria pequenos hospitais municipais ou pequenas fundações), explicando assim porque a quantidade de leitos é grande, mas do ponto de vista operacional não é;
  •  Após um movimento de expansão importante no número de hospitais nas décadas de oitenta e noventa do século passado, atualmente há uma nítida contração do setor. No Sistema Único de Saúde isso se observa com maior nitidez, conforme tabela abaixo:
           Ainda sob esse aspecto, atualizando esses dados para 2016, a tendência se mantém, conforme              tabela abaixo (elaborada pelo autor):
   
Ano
População (segundo IBGE)
Leitos disponíveis para internação (SUS)
Leitos disponíveis para internação (privados)
Total de leitos disponíveis
Relação leito por habitantes
2009
191.481.045
338.461
122.867
461.328
1/565
2015
202.768.562
311.917
129.884
441.801
1/650
                      Fonte: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Ministério da Saúde e Federação Brasileira de Hospitais

Há uma diferença de -13,0% entre os dois períodos quanto à relação de leitos por habitante, ou seja, com a redução do número de leitos ocorre maior concentração de habitante por leito. A variação entre a quantidade total de leitos SUS entre os dois períodos foi de - 7,8%.  Por outro lado, cresce a oferta de leitos em hospitais privados (+5,4%), talvez motivado pelo aumento em números absolutos da quantidade de usuários de planos de saúde à época da avaliação, sem, entretanto, suprir o déficit registrado no setor público em números absolutos. No restante do mundo a tendência de redução e leitos também é observada de maneira contundente, conforme o gráfico abaixo, em relação à União Européia:

  • Novas modalidades assistenciais estão surgindo como substituto à internação hospitalar convencional, representados principalmente pelas empresas de “home-care”. Raras antes do ano 2000, gradualmente vêm se convertendo num modelo de atendimento bastante satisfatório com relação a expectativas de fontes pagadoras e familiares dos pacientes, que de outra forma estariam internados por tempo indefinido e sem perspectiva de alta em uma série de situações clínicas, gerenciáveis em domicílio. Segundo o jornal “O Estado de São Paulo” de 2011 a 2014 houve um crescimento da ordem de 33,5%, passando de 92600 para 132300 pacientes atendidos em casa;
  •  Processos de melhoria da qualidade, representados pela certificação na forma da Acreditação Hospitalar tendem, pelo seu custo de implantação e manutenção, a ser adotados apenas pelas organizações cuja estrutura e complexidade atingem um determinado patamar de saúde financeira, sem exceção. A tendência natural é, com o reconhecimento cada vez maior pelo mercado dessas iniciativas, somente hospitais com essa estrutura de serviços e possibilidade de redimensionamento nos seus investimentos voltados para a Qualidade devem continuar a fazê-lo. As demais têm futuro incerto, principalmente se, conforme se prevê, começarem a ser adotados pelas fontes pagadoras padrões diferenciados de remuneração por serviços prestados baseados na adoção ou não de políticas de Qualidade, obrigatoriamente sacramentadas por selos de Acreditação Hospitalar para fins de comprovação;
  • Contrariamente ao que acontece no restante do mundo, a inflação médica no país desafia a razão e se eleva em comparação com outros países, mesmo com a retração da economia. Dados do Instituto de Estudos da Saúde Suplementar – IESS apontam para um aumento significativo desse indicador, que ao final reduz ainda mais as margens de lucro de prestadores e sufoca de forma inexorável fontes pagadoras, em função do modelo de pagamentos vigente e da incrível absorção acrítica de incontáveis elementos ditos inovadores e inadequadamente mais caros.     
  • Isso pode, pelo menos em parte, justificar o porquê economias como a nossa apresentam um estranho comportamento em relação a outras quanto ao gasto por saúde per capita versus renda per capita, conforme se observa abaixo em três exemplos, incluindo o Brasil, segundo essa mesma fonte:


         Os gráficos são auto-explicativos, e servem para introduzir mais um elemento na análise do                custo em saúde, pública ou privada. Custos elevados inibem, dentre outras coisas,                                investimentos e geração de novos leitos em unidades já consolidadas, ou a construção de novas          unidades, contribuindo dessa forma para o déficit de leitos observado;
  • Os hospitais públicos experimentaram nos últimos quinze anos uma gradual transferência de responsabilidades do aparelho do Estado para a iniciativa privada através de terceirizações do cuidado assistencial, principalmente para as Organizações Sociais e autarquias. O objetivo é claro (contenção de custos), mas tem no seu discurso oficial a necessidade de oferecer melhor qualidade no atendimento, às vezes questionável. Através da vinculação trabalhista oferecida pelo empregador público mediante concurso, o profissional tinha, pelo menos, a sensação de inatingibilidade quanto à sua estabilidade, salvo falta grave. Esse modelo (que ainda se mantém em unidades hospitalares da rede própria – federais, estaduais ou municipais, com variações muito amplas em termos de eficiência assistencial por parte do Corpo Clínico ao paciente internado) propiciava ao gestor a possibilidade de implantar e acompanhar (ou não) as atividades nos corredores da instituição sem maiores sobressaltos além das normais carências crônicas de pessoal (dentre outras coisas) que, via de regra, esses hospitais apresentam. Hoje, com a implantação de uma política neo-liberalizante escancarada, esse modelo de gestão está em extinção, e nesses novos arranjos os médicos e demais profissionais se comportam exatamente igual aos seus pares na organização privada, com objetivos e metas claras e serem seguidas, produção monitorada, sobrecarga de trabalho, insegurança institucional, salários incompatíveis, qualificação profissional às vezes duvidosa por parte de seu corpo de profissionais, capacitação insuficiente, volatilidade persistente e o risco sempre presente do ente público não renovar o contrato de gestão. Ou pior, suspendê-lo por conveniências políticas.
E o Corpo Clínico dos hospitais como se encaixa nessa nova conjuntura? Após essas considerações, arrisco dizer que com o estreitamento dos ambientes físicos e funcionais para o desenvolvimento da atenção hospitalar a pacientes internados, os papéis dos hospitais devem assumir outros valores, e com eles o próprio papel do Corpo Clínico. É possível e provável que num espaço de uma década, a persistirem os mesmo fatores que impedem a progressão necessária na quantidade de leitos hospitalares efetivamente operacionais (a despeito da necessidade imperiosa da manutenção de políticas públicas, e mesmo privadas, de promoção da saúde e prevenção da doença), o Corpo Clínico de hospitais passe a ser uma categoria elitizada, altamente especializada, fechada em seu círculo, e em extinção. Por outro lado, os dados de literatura pressupõem que novas formas de cuidado devem ser desenvolvidas ou criadas, determinando que, ao largo de qualquer reflexão acerca de mercado de trabalho, os pacientes continuarão sob cuidados eficazes.

Para os novos profissionais entrantes desse mercado, resta viver um paradoxo: de um lado uma população com doenças da modernidade, crônicas e cada vez mais prevalentes, e que requerem com freqüência internação hospitalar em função de suas complicações freqüente; um mercado superaquecido do ponto de vista de opções de diagnóstico e tratamento, e ambiente crescente de inovação e especialização. E do outro, falta de hospitais para acompanhar pacientes internados, mesmo os “seus pacientes”.

Vamos deixar que as idéias inovadoras apontem um caminho.