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domingo, 15 de maio de 2016

O futuro do Corpo Clínico

“Existem três tipos de empresas (e pessoas): as que fazem as coisas acontecerem, as que ficam vendo as coisas acontecerem e as que perguntam: o que aconteceu?”
Philip Kotler

A despeito da paralisia coletiva provocada pelas turbulências nacionais e as transformações mais recentes mundo afora, a partir da análise de informações que circulam no meio, principalmente acadêmico, algumas mudanças silenciosas nas características demográficas populacionais, nas políticas de saúde e nos processos internos dos hospitais estão em pleno avanço sem que os principais formadores de opinião ainda se dêem conta.

Num mercado que envolve negócios de vários zeros e que emprega uma porção substancial da força de trabalho nos diversos países, como o nosso, o hospital, enquanto organização, tem um papel de absoluto destaque, sendo muitos os motivos histórico-sociais que os transformaram em referência no tratamento das doenças em geral. A dinâmica assistencial no modelo adotado pelos governantes ao longo de décadas privilegia o hospital como centro de referência para a prestação dos serviços de saúde, tendo como motor a geração de receita operacional a partir dos processos relacionados à ocupação de suas unidades de internação com pacientes em seus mais diversos problemas.

A sofisticação tecnológica crescente incentivada e incorporada por seus gestores, a criação e oferta de novos serviços de continuidade da assistência, assim como a concentração de muitos quadros técnicos de referência numa mesma estrutura predial, aliados aos já conhecidos fatores demográficos em transformação (tais como envelhecimento populacional e maior prevalência de doenças crônicas), acabaram por criar no imaginário popular e no das pessoas que têm uma relação próxima ao poder (estes muitas vezes com uma visão distorcida, intencional ou não, do que vem a ser assistência à saúde de qualidade), a firme proposição de que essas estruturas bastam para atender às necessidades da população. Como conseqüência, devem ser privilegiadas com relação a investimentos e políticas de beneficiamento e, em alguns casos, de tratamento fiscal diferenciado. Aqui, com alguns pormenores gerados pela contemporaneidade, os argumentos se repetem da mesma forma com tem sido há quarenta anos, fazendo prosperar por tempo indeterminado a manutenção daquele modelo hospitalocêntrico tão duramente contestado por aqueles que acreditam em outras formas de se gerar saúde do ponto de vista de coletividade.

Porém eis que uma transformação está em curso.

De forma gradual o hospital, da forma como o concebemos, encontra-se numa curva descendente cada vez mais inclinada enquanto local para internação de pacientes.  Sem levar em consideração seus outros papéis assimilados ao longo do tempo, pode-se afirmar, sem medo de errar, que a não ser que sua estrutura seja exclusivamente ambulatorial (o que foge ao conceito lato de hospital) ou seu modelo de negócio seja exclusivamente do tipo “Day Hospital”, dentro de poucas décadas a disponibilidade de leitos hospitalares será drasticamente reduzida. Senão vejamos:
  • A percepção de que na atual conjuntura a sobrevivência organizacional no mercado de saúde tem privilegiado aqueles hospitais cuja produção de serviços ocorre em escala, muitos têm experimentando dificuldades financeiras e destes um número significativo tem fechado as suas portas ou estão passando para controle de outros grupos de maior porte, principalmente os de estrutura familiar. Os motivos são muitos e escapam ao escopo desse artigo;
  • A disponibilização de leitos hospitalares segue um padrão assimétrico a depender da localização e da natureza de gestão do hospital: hospitais públicos e privados situados nos grandes centros concentram a maior parte dos atendimentos e procedimentos, são os que têm maiores custos e receitas (ou orçamentos), e têm maiores taxas de ocupação. Nos milhares de hospitais espalhados pelo país, em torno de 60% são estruturas com até 50 leitos, com baixo arsenal tecnológico e capacidade resolutiva (a maioria pequenos hospitais municipais ou pequenas fundações), explicando assim porque a quantidade de leitos é grande, mas do ponto de vista operacional não é;
  •  Após um movimento de expansão importante no número de hospitais nas décadas de oitenta e noventa do século passado, atualmente há uma nítida contração do setor. No Sistema Único de Saúde isso se observa com maior nitidez, conforme tabela abaixo:
           Ainda sob esse aspecto, atualizando esses dados para 2016, a tendência se mantém, conforme              tabela abaixo (elaborada pelo autor):
   
Ano
População (segundo IBGE)
Leitos disponíveis para internação (SUS)
Leitos disponíveis para internação (privados)
Total de leitos disponíveis
Relação leito por habitantes
2009
191.481.045
338.461
122.867
461.328
1/565
2015
202.768.562
311.917
129.884
441.801
1/650
                      Fonte: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Ministério da Saúde e Federação Brasileira de Hospitais

Há uma diferença de -13,0% entre os dois períodos quanto à relação de leitos por habitante, ou seja, com a redução do número de leitos ocorre maior concentração de habitante por leito. A variação entre a quantidade total de leitos SUS entre os dois períodos foi de - 7,8%.  Por outro lado, cresce a oferta de leitos em hospitais privados (+5,4%), talvez motivado pelo aumento em números absolutos da quantidade de usuários de planos de saúde à época da avaliação, sem, entretanto, suprir o déficit registrado no setor público em números absolutos. No restante do mundo a tendência de redução e leitos também é observada de maneira contundente, conforme o gráfico abaixo, em relação à União Européia:

  • Novas modalidades assistenciais estão surgindo como substituto à internação hospitalar convencional, representados principalmente pelas empresas de “home-care”. Raras antes do ano 2000, gradualmente vêm se convertendo num modelo de atendimento bastante satisfatório com relação a expectativas de fontes pagadoras e familiares dos pacientes, que de outra forma estariam internados por tempo indefinido e sem perspectiva de alta em uma série de situações clínicas, gerenciáveis em domicílio. Segundo o jornal “O Estado de São Paulo” de 2011 a 2014 houve um crescimento da ordem de 33,5%, passando de 92600 para 132300 pacientes atendidos em casa;
  •  Processos de melhoria da qualidade, representados pela certificação na forma da Acreditação Hospitalar tendem, pelo seu custo de implantação e manutenção, a ser adotados apenas pelas organizações cuja estrutura e complexidade atingem um determinado patamar de saúde financeira, sem exceção. A tendência natural é, com o reconhecimento cada vez maior pelo mercado dessas iniciativas, somente hospitais com essa estrutura de serviços e possibilidade de redimensionamento nos seus investimentos voltados para a Qualidade devem continuar a fazê-lo. As demais têm futuro incerto, principalmente se, conforme se prevê, começarem a ser adotados pelas fontes pagadoras padrões diferenciados de remuneração por serviços prestados baseados na adoção ou não de políticas de Qualidade, obrigatoriamente sacramentadas por selos de Acreditação Hospitalar para fins de comprovação;
  • Contrariamente ao que acontece no restante do mundo, a inflação médica no país desafia a razão e se eleva em comparação com outros países, mesmo com a retração da economia. Dados do Instituto de Estudos da Saúde Suplementar – IESS apontam para um aumento significativo desse indicador, que ao final reduz ainda mais as margens de lucro de prestadores e sufoca de forma inexorável fontes pagadoras, em função do modelo de pagamentos vigente e da incrível absorção acrítica de incontáveis elementos ditos inovadores e inadequadamente mais caros.     
  • Isso pode, pelo menos em parte, justificar o porquê economias como a nossa apresentam um estranho comportamento em relação a outras quanto ao gasto por saúde per capita versus renda per capita, conforme se observa abaixo em três exemplos, incluindo o Brasil, segundo essa mesma fonte:


         Os gráficos são auto-explicativos, e servem para introduzir mais um elemento na análise do                custo em saúde, pública ou privada. Custos elevados inibem, dentre outras coisas,                                investimentos e geração de novos leitos em unidades já consolidadas, ou a construção de novas          unidades, contribuindo dessa forma para o déficit de leitos observado;
  • Os hospitais públicos experimentaram nos últimos quinze anos uma gradual transferência de responsabilidades do aparelho do Estado para a iniciativa privada através de terceirizações do cuidado assistencial, principalmente para as Organizações Sociais e autarquias. O objetivo é claro (contenção de custos), mas tem no seu discurso oficial a necessidade de oferecer melhor qualidade no atendimento, às vezes questionável. Através da vinculação trabalhista oferecida pelo empregador público mediante concurso, o profissional tinha, pelo menos, a sensação de inatingibilidade quanto à sua estabilidade, salvo falta grave. Esse modelo (que ainda se mantém em unidades hospitalares da rede própria – federais, estaduais ou municipais, com variações muito amplas em termos de eficiência assistencial por parte do Corpo Clínico ao paciente internado) propiciava ao gestor a possibilidade de implantar e acompanhar (ou não) as atividades nos corredores da instituição sem maiores sobressaltos além das normais carências crônicas de pessoal (dentre outras coisas) que, via de regra, esses hospitais apresentam. Hoje, com a implantação de uma política neo-liberalizante escancarada, esse modelo de gestão está em extinção, e nesses novos arranjos os médicos e demais profissionais se comportam exatamente igual aos seus pares na organização privada, com objetivos e metas claras e serem seguidas, produção monitorada, sobrecarga de trabalho, insegurança institucional, salários incompatíveis, qualificação profissional às vezes duvidosa por parte de seu corpo de profissionais, capacitação insuficiente, volatilidade persistente e o risco sempre presente do ente público não renovar o contrato de gestão. Ou pior, suspendê-lo por conveniências políticas.
E o Corpo Clínico dos hospitais como se encaixa nessa nova conjuntura? Após essas considerações, arrisco dizer que com o estreitamento dos ambientes físicos e funcionais para o desenvolvimento da atenção hospitalar a pacientes internados, os papéis dos hospitais devem assumir outros valores, e com eles o próprio papel do Corpo Clínico. É possível e provável que num espaço de uma década, a persistirem os mesmo fatores que impedem a progressão necessária na quantidade de leitos hospitalares efetivamente operacionais (a despeito da necessidade imperiosa da manutenção de políticas públicas, e mesmo privadas, de promoção da saúde e prevenção da doença), o Corpo Clínico de hospitais passe a ser uma categoria elitizada, altamente especializada, fechada em seu círculo, e em extinção. Por outro lado, os dados de literatura pressupõem que novas formas de cuidado devem ser desenvolvidas ou criadas, determinando que, ao largo de qualquer reflexão acerca de mercado de trabalho, os pacientes continuarão sob cuidados eficazes.

Para os novos profissionais entrantes desse mercado, resta viver um paradoxo: de um lado uma população com doenças da modernidade, crônicas e cada vez mais prevalentes, e que requerem com freqüência internação hospitalar em função de suas complicações freqüente; um mercado superaquecido do ponto de vista de opções de diagnóstico e tratamento, e ambiente crescente de inovação e especialização. E do outro, falta de hospitais para acompanhar pacientes internados, mesmo os “seus pacientes”.

Vamos deixar que as idéias inovadoras apontem um caminho.



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