Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais
inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças.
Leon C. Megginson
Algumas reflexões sobre aspectos relacionados às políticas de saúde
têm sido precedidas por outras mais urgentes ou de maior repercussão, a
despeito da relevância intrínseca que cada um individualmente representa. O atual
momento político confuso no nosso país, aliado a outros problemas de abrangência
internacional, levam os formuladores de políticas de saúde a restringirem seus aprofundamentos
às urgências cotidianas, num momento em que outras demandas urgentes clamam por
direcionamento.
Enquanto assistimos com pesar a
disseminação do vírus zika pelo mundo, os círculos do poder no nosso país
discutem iniciativas de eficácia duvidosa. Assim o é, por exemplo, com relação
à proposta de criação de um plano de saúde para a população de menor poder
aquisitivo. A idéia é que essas pessoas possam ter acesso a serviços de saúde que
de outra forma não teriam se dependessem única e exclusivamente do Sistema
Único de Saúde (SUS), dadas as dificuldades de acesso a consultas, exames e
procedimentos que, em tese, deveriam ser supridos pelo referido sistema. Sob
uma lógica evidentemente neo-liberal, postula-se o desmantelamento de um
patrimônio do povo brasileiro conquistado (não sem muita luta), sob o argumento
de que o custo de manutenção do sistema é inaceitavelmente alto. Segmentos
representativos da sociedade já se debruçam sobre como contestar a iniciativa,
e possivelmente saberão através dos meios legais não deixar que a ideia, falsa,
falaciosa, ignorante e sob motivações suspeitas; venha a vicejar. Mas vamos falar sobre isso em outro momento
No cenário internacional também
não faltam elementos para discussão, envolvendo prioritariamente dificuldades advindas
dos custos de manutenção de padrões de qualidade na assistência à saúde, historicamente
estabelecida, tanto pelas nações em que o Estado protagoniza as políticas
assistenciais, como por aquelas em que a livre concorrência e ausência ou pouca
interferência estatal é a regra. Nesse aspecto, é interessante a notável
confluência de interesses na busca de soluções.
Uma das idéias recorrentes
voltadas para este fim está centrada no conceito de que o verdadeiro caminho
para uma assistência à saúde deve privilegiar o resultado final do ciclo de atendimento
de uma pessoa ou de uma população, ou seja, o valor que é entregue ao final
desse ciclo. Vários autores e importantes pensadores, principalmente da Escola
de Harvard, têm preconizado que a se manter o cenário atual, e principalmente,
no que virá a ser em poucos anos, os sistemas de saúde vão certamente implodir.
Apenas para ficar num exemplo, nos Estados Unidos da América (EUA) o percentual
do Produto Interno Bruto (PIB) destinado à assistência global à saúde é atualmente
de 18 a 20%, dependendo da fonte. Outras nações enfrentam dificuldades
semelhantes, se bem que em percentuais menos assustadores. Acredita-se que se
nada for feito em relação aos custos de manutenção do sistema, em menos de vinte
anos o percentual do PIB destinado à saúde nos EUA chegará a 30%, o que, do
ponto de vista de gestão orçamentária, é certamente inaceitável e impossível de
ser mantido.
Segundo o economista em saúde Len
Nichols, “a reforma do pagamento que
recompensa a qualidade em detrimento do volume é a chave para usar as forças do
mercado para alinhar incentivos para pacientes, prestadores e pagadores” (http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1001604#t=article – acesso em 01/09/2016). Reforçando a tese, Michael Porter, um cientista
aeroespacial que se tornou uma referência mundial na disseminação dos conceitos
envolvendo entrega de valor ao paciente, também tem vasta produção abordando essa
idéia, incluindo o seu famoso livro “Repensando a Saúde –
Estratégias para Melhorar a Qualidade e Reduzir Custos” (Bookman- Grupo A, 2006).
Com a repercussão extremamente positiva de suas convicções no nosso meio,
principalmente entre os pagadores de serviços, Porter chegou a vir ao Brasil
por duas ou três vezes como convidado para ajudar a disseminar as suas idéias,
sempre com auditórios cheios e resultados invariavelmente pífios com relação à
mudança de atitudes. Aqui, como em seu país natal, nem sempre idéias bem
recebidas se cristalizam em iniciativas. Faz algum tempo que ele não retorna
aqui.
Mais recentemente pudemos conhecer algumas experiências
concretas nesse campo, que aparentemente se mostram promissoras do ponto de
vista de resultados clínicos satisfatórios e recompensas aos prestadores com
economia substancial de recursos. A obra “Buscando o Triple Aim na
Saúde”
(Atheneu, 2015), por Maureen Bisognano e Charles Kenney, nos apresenta alguns
exemplos em que a predisposição de tentar caminhos diferentes dos que existem
na assistência à saúde sob a ótica da compensação financeira atrelada ao valor
obtido ao cabo de um ciclo de doença pode, aparentemente, lograr êxito. Na obra
são elencadas algumas experiências que, se não perfeitas, parecem ter sim
resultados satisfatórios para profissionais, gestores, provedores e pagadores
de saúde. Apesar de conclusões que apontam nessa direção, fatores como a
dificuldade de estabelecer métricas de avaliação dos serviços, mecanismos de
pagamento super ou subdimensionados, e ausência de transparência, são apontados
pelos autores como problemas ainda sem solução.
Mas que não se iludam os entusiastas. Os caminhos não
são fáceis de serem trilhados e relatos dessa natureza tendem a ser enviesados
por diversos motivos. Para nós, não custa repetir o recado: idéias e conceitos
não são modelos estabelecidos de sucesso. Ainda que fossem, modelos nem sempre
são reprodutíveis em circunstâncias diversas. Ou seja, se deu certo em um
lugar, não significa que dará certo em outro. Por falar em motivos, não nos
esqueçamos que a preocupação com a saúde da população é real, mas tão ou mais
real ainda é a preocupação do quanto vai custar aos pagadores: governos e
corporações.
Quanto aos hospitais, não conhecemos ainda no nosso
país iniciativas dessa natureza que possam ser replicadas dadas a nossa
infinidade de arranjos organizacionais na prestação de serviços em saúde, nosso
ambiente político e regulatório, e, principalmente, nas formas de pagamento.
Algumas organizações de reconhecida reputação e que há muito incorporaram no
seu DNA os modernos conceitos de Qualidade enquanto política institucional,
gradualmente vem adotando métricas e práticas que privilegiam o
custo-efetividade e a eficiência alocativa de recursos de forma mais pragmática
que aqueles que, a despeito de um discurso sintonizado com tendências atuais, e
com os mesmos níveis de certificação de qualidade, ainda vivem sob total
dependência do modelo que privilegia o volume de produção como referência para
a remuneração pelos seus serviços prestados.
Discursos não faltam para repetir as mesmas queixas em
relação ao sistema vigente e tendem a se tornarem escassos na medida em que se
esgotam: ouve-se mais do mesmo. Críticas à estrutura política, percepções vagas
sobre alternativas para superar crises, opiniões que se repetem de forma
automática e, principalmente, reforço sobre a desordem gerencial nos marcos
regulatórios da prestação dos serviços em saúde tanto públicos e privados, ainda
não tiveram a capacidade promoveram alguma mudança de mentalidade que se
traduza em ação. Todos os segmentos
envolvidos na assistência à saúde percebem de forma muito clara a necessidade
de transformações imediatas, mas poucos se arriscam a fazer mudanças na direção
de uma matriz que possa satisfazer se não todos os elementos dessa cadeia, pelo
menos o paciente. Mais comum uma postura conservadora com relação aos destinos
do mercado, deixando para frente decisões tão polêmicas.
As propostas que trazem uma tentativa de agregar valor
ao paciente e ao serviço de saúde no ciclo de atendimento são mais uma das
muitas que já foram sugeridas. Não é possível que com tanto material produzido
aqui e no mundo, tantas boas idéias formuladas na busca de um ideal
assistencial, ainda tenhamos que nos ater a um modelo de produção de bens e
serviços em saúde que privilegie pura e simplesmente o pagamento por serviços
prestados. Não vai se sustentar. Simples assim.
Sob esse aspecto, um misto de comodismo, urgências para
as demandas motivadas por custos cotidianos, e interesses pouco claros ou
suspeitos impedem que, por exemplos, lideranças clínicas, pagadores, gestores, fabricantes
de insumos, a academia e estratos do governo sentem-se na mesma mesa para
discutirem de forma séria alternativas aos modelos existentes na prestação de
serviços à saúde e aos mecanismos de financiamento.
Nos hospitais em especial (elemento dessa cadeia com
fortíssimo impacto nos custos assistenciais), a manutenção de modelos de
prestação de serviços de maneira conservadora dá a falsa impressão de segurança
da viabilidade do negócio em si. Meras quimeras. Há décadas tanto os hospitais
públicos quanto os privados, em sua imensa maioria, têm muito mais a se queixar
que a comemorar. Não é à toa que justamente aqueles que privilegiam políticas
de qualidade (faço questão de assinalar que adotar políticas de qualidade não é
sinônimo de ter Certificados de Acreditação. Enquanto um é princípio básico,
elemento de seu core, o outro é uma conseqüência e não um fim em si) ou que
tiveram a capacidade de identificar os quadros mais apropriados que deveriam
estar à frente da sua complexa gestão, são aqueles que servem de exemplos de
eficiência dentre as organizações hospitalares. Mas cabe aqui uma distinção: certificação de
qualidade não é sinônimo de vontade para alterar o modelo vigente, que
privilegia a quantidade com valor agregado. O que se propõe é a quebra dessa
lógica em nome de uma medicina longitudinal e não horizontal, mais enxuta nos
custos sem perda de qualidade.
E dentro da rotina hospitalar, a prestação de serviço
ao paciente internado é sem dúvida o ponto nevrálgico dessas reflexões, por
representarem com seus números superlativos a essência do que se faz, como se
faz e quanto se faz. Dito de outra forma, não é falso admitir que os maiores
custos (nas organizações públicas) e recompensas (nas organizações privadas),
dentro da lógica vigente, tem a ver diretamente com o tipo de assistência que é
prestada ao pacientes internados em suas dependências. O que inevitavelmente
também nos remete à atuação do Corpo Clínico nesses espaços.
Seguindo pelo mesmo raciocínio,
também não é errado admitir que num contexto mais amplo, a não adoção de algum
tipo de direcionamento, métrica ou arranjo entre os membros do Corpo Clínico
que propicie a incorporação de princípios de atenção global (e não fragmentada
entre múltiplos especialistas), humanidades (evitando delegar responsabilidades
simples aos psicólogos e assistentes sociais, por exemplo), agregação
(envolvendo a equipe multiprofissional nas discussões, principalmente a
enfermagem) e senso de racionalidade (evitando exames e terapias desnecessárias
ou não prioritárias, considerando a relação custo-benefício e de
custo-efetividade de suas práticas); conduza a um resultado operacional e
assistencial que tende a ficar muito aquém do potencial, do que seria possível
ser feito. Os elementos acima representam apenas os alicerces da boa assistência
médica, seja qual for o modelo adotado. Arrisco dizer que isso não se vê com
clareza em boa parte das organizações hospitalares. Senão na maioria.
O desenvolvimento de iniciativas
como a disseminação do conceito de Medicina Hospitalar representam um avanço
considerável na percepção do que vem a ser uma assistência de qualidade para o
paciente internado nos hospitais. As vantagens da adoção do modelo são
inequívocas. Mas esse mesmo modelo ainda hoje enfrenta barreiras importantes, e
que vão desde a impossibilidade financeira dos hospitais em contratarem equipes
capacitadas (situação ainda vigente para a imensa maioria dos hospitais), até
ineficiência total do modelo em função da não compreensão dos seus objetivos,
e, por conseguinte, suas vantagens competitivas no ambiente externo, além da
segurança e qualidade para os pacientes internados. Mas a Medicina Hospitalar também
não é o único meio para melhorar o desempenho hospitalar nesse aspecto. A
percepção da necessidade de se obter melhores resultados no campo da segurança
assistencial, resultados clínicos e recompensas financeiras advindas disso,
poderia mobilizar pagadores, gestores e governantes que estejam sensíveis à
percepção de que algo efetivamente precisa ser feito. Propostas de ação, idéias
inovadoras e mecanismos de transformação não faltam nas nossas estantes.
Nosso país, assim como os EUA,
caminha para a anarquia e inadimplência generalizada na prestação de cuidados
em saúde, que não poupará ninguém. Ninguém mesmo.
Mudar é possível, preciso e
urgente.
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