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domingo, 8 de setembro de 2013

A falácia da redução dos leitos do SUS

Segundo o site Wikipédia, dentro do contexto da pesquisa científica o termo “falácia” está em íntima relação com o conceito de “evidência anedótica”, ambos em contraposição à prática, seja ela qual for, baseada em evidências científicas e ao método científico em geral.
A evidência anedótica, e por extensão a falácia, possuem algumas propriedades que o site bem define:
- informação que não é baseada em fatos ou estudo cuidadoso;
- observações ou estudos não científicos, que não contém provas, mas podem ser objetos de esforços de pesquisa;
- descrições ou observações de observadores geralmente não científicos;
- observações ou indicações casuais, ao invés de análise rigorosa ou científica;
- informação transmitida boca-a-boca, mas não cientificamente documentada.
Todos nós estamos sujeitos a sermos vítimas da falácia em algum momento da vida. Quantos de nós não sofremos alguma forma de influência, em diferentes graus de profundidade, com a falácia de que o transporte aéreo mata mais que qualquer outro? Bem informados que somos, podemos refutar essa afirmação com dados estatísticos disponíveis para qualquer um, ou seja, através do método científico (mesmo que não formal). Mas quando ocorre um acidente aéreo de grandes proporções, não incomoda um pouquinho? Alguns de nós não deixamos para depois aquela viagem que iríamos fazer por aquela companhia aérea? Ou mesmo pensamos em trocar de companhia? Ou mudamos de planos e optamos por ir de carro ou ônibus, nos casos mais extremos?
Muito bem. Na semana que passou recebi, assim como muitos de vocês, uma enxurrada de notícias alardeando através de vários meios a conclusão de um levantamento feito pelo Conselho Federal de Medicina acerca da redução dos leitos hospitalares disponibilizados para usuários do Sistema Único de Saúde – SUS, baseado em dados divulgados pelo Ministério da Saúde. A constatação numérica fez aflorar em dirigentes, políticos e em muitos que torcem contra “tudo isso que está aí” declarações nas quais ratificam sua postura e das entidades das quais são porta-vozes de que o sub-financiamento da saúde está em níveis inaceitáveis, que o SUS não consegue manter um padrão mínimo de atendimento digno aos seus usuários, que a população brasileira precisa rever sua política de saúde, que as pessoas estão morrendo nas filas para internação, isso tudo, é claro, com aquelas imagens de arquivo chocantes mostrando emergências lotadas e velhinhos caquéticos entregues à própria sorte nos Prontos-Socorros (aliás, já reparam que as imagens são sempre as mesmas?).
Na esteira das inúmeras críticas às ações mais recentes envolvendo a contratação de profissionais estrangeiros para trabalharem nos locais aonde brasileiros não querem ir, essa notícia adicional foi um prato cheio para os críticos do sistema.
Convenhamos. O país encontra-se muito distante de uma situação sanitária ideal, a despeito de corolários inteligentes e socializantes do SUS. Mas os pseudo-entendidos do assunto se esqueceram de uma regrinha básica que temos que seguir quando nos utilizamos de veículos de comunicação de massa para expressar opiniões ou traçar análises pretensamente técnicas: analisar notícias e fatos muitas vezes requer conhecimento do assunto, na forma de coleta de informações e pesquisa acadêmica. Quando se abre espaço para análises rasteiras e comezinhas, algumas vezes de cunho corporativo e muitas vezes em função de uma necessidade angustiante de ser notado, um leitor mais atento às vezes sente pena de tanta desinformação (ou má fé).
Pessoas comuns podem se sentir convencidas a acreditar que o anunciado denota uma incapacidade gerencial e de falta de recursos que deprecia ainda mais nossas políticas de saúde e traz inevitavelmente prejuízos adicionais ao nosso SUS. Temos sim problemas de sub-financiamento e, principalmente, de gestão. Mas incontáveis indicadores, que não cabem nesse texto sua apresentação e discussão, confirmam uma rota ascendente de investimentos e de qualificação de pessoal na rede pública de saúde. E isso tem relação direta com os dados relacionados aos leitos hospitalares, parte importante (porém em escala hierárquica inferior à atenção básica – alguém duvida?) do mosaico de nossas políticas de saúde pública.
Chamou-me muito a atenção a ênfase dada aos leitos psiquiátricos, aparentemente o grande vilão da queda de oferta de leitos nesse período recentemente analisado. Dos 13.000 leitos desativados pelo SUS de janeiro de 2010 até os dias atuais, 7.449 destes (ou seja, 57,3%) foram leitos antes destinados à massa de alienados, que podem representar uma parcela de até 20% da população, segundo a maioria dos estudiosos. Dentre esses, os levantamentos mostram que em torno de 3% estão relacionados aos transtornos mentais severos e persistentes, 6% aos transtornos psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e drogas e 11% para aqueles que requerem atendimento contínuo ou eventual. As internações psiquiátricas representam, segundo dados de 2005 do Ministério da Saúde, 2,7% das internações no país, com uma tendência de queda progressiva (80% em 10 anos). A principal explicação para o declínio decorre do fato do Brasil, junto com a maioria dos países mais sérios, terem adotado novas diretrizes no diagnóstico, abordagem e tratamento dos pacientes com distúrbios psiquiátricos, privilegiando o acompanhamento ambulatorial e não institucionalizado destes pacientes.
Tais diretrizes estão bem detalhadas no documento “Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil” de 2005 (que pode ser visto na íntegra em  http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio15_anos_caracas.pdf), que estabeleceu paradigmas bastante diferentes dos vigentes até então no tratamento dos doentes psiquiátricos. Em suma, “A internação psiquiátrica é atualmente indicada para casos graves quando foram esgotados os recursos extra-hospitalares para o tratamento ou manejo do problema, sendo proibida a internação de pessoas em instituições com características asilares. São considerados casos graves situações em que há presença de transtorno mental com, no mínimo, uma das seguintes condições: risco de auto-agressão, risco de heteroagressão, risco de agressão à ordem pública, risco de exposição social, incapacidade grave de autocuidados” , segundo Cardoso e Galera (Acta Paul Enferm 2009;22(6):733-40).
Mas para que tanto se dizer das internações psiquiátricas? Justamente para mostrar que a sua redução foi deliberadamente promovida em função da implantação de uma política nacional, validada internacionalmente, visando a melhor recuperação destes doentes.  Pronto, não precisamos avançar mais nesse assunto, ainda que algumas correntes preconizem a ampliação desses leitos, amparada por outros argumentos técnicos.
O fato é que em virtude de uma compreensão estreita do complexo bio-social do doente psiquiátrico no Brasil e no mundo, durante décadas os leitos para pacientes psiquiátricos foram ampliados na rede pública, a maioria estando em organizações privadas, através de convênios em sua imensa maioria suspeitos e desnecessários. A qualidade na assistência, salvo algumas exceções, era deplorável e cruel, na medida em que boa parte destes pacientes não podia, por força de sua condição de saúde, expressar com exatidão suas percepções.  De tal forma que para alguns empresários do setor a abertura de leitos psiquiátricos se tornou por muitos anos um negócio bastante lucrativo. Há farta documentação a esse respeito.
Todos aqueles que estão atentos sobre esse assunto de forma mínima sabem disso. Têm sido fechadas as torneiras desse duto perverso que mistura perpetuação da doença mental, assistência de péssima qualidade, infra-estrutura precária e negócios inescrupulosos.
Assim sendo, que bom que os leitos para essa finalidade deixaram de existir, não é mesmo? Mas, será que alguém atentou para esses dados antes de bradar a notícia? Ou, pior, ter autocrítica na hora de traçar um paralelo entre o fato e uma possível iniquidade do sistema de saúde?
Num contexto ainda mais amplo, denuncia-se a redução do número total de leitos como indicador de queda na assistência à saúde. Será? Não seria talvez uma acomodação entre a oferta detectada de forma mais realística, seguindo as variações epidemiológicas detectadas ao longo dos últimos anos e que moldam as nossas necessidades quanto ao consumo de bens de saúde, assim como o são no mundo inteiro? Por exemplo, ninguém comentou que houve um incremento na entrega de leitos de Terapia Intensiva para usuários do SUS, muitíssimos mais caros e dispendiosos aos orçamentos em geral: entre 2003 e 2010 foram criados ou credenciados em torno de 5.000 novos leitos (de 12617 para 17608 leitos, num investimento de aproximadamente 400 milhões de reais).
Além disso, passamos a tratar pacientes em casa com maior frequência através de Internação Domiciliar, destronando o mito de que lugar de doente é no hospital. Iniciativas de diversas secretarias municipais e estaduais de saúde nessa direção têm apontado uma redução significativa dos custos acompanhada de satisfação dos usuários. Crianças deixaram de ser internadas desnecessariamente, não justificando a permanência dos leitos disponíveis para aquela finalidade, em função de campanhas de vacinação mais exitosas e de melhora nos indicadores sanitários e nutricionais de uma parcela da população anteriormente desprovida de qualquer tipo de assistência.
Nossa taxa de crescimento vegetativo está esculpindo uma pirâmide populacional bem diferente daquela que aprendemos nos cursinhos pré-vestibulares há 30 anos. Será realmente necessário disponibilizar os leitos de obstetrícia naquela quantidade?
O leitor poderia se perguntar: se não há tanta necessidade de leitos e a sua redução se justifica, porque nos grandes centros os pacientes se aglomeram em torno de hospitais? De fato, nesses lugares há uma total desproporção entre a oferta e a demanda por leitos de internação, aí sim motivada por diversos fatores dentre os quais planejamento inadequado e ausência de políticas públicas mais eficientes na ação em níveis hierárquicos mais baixos, tais como a criação de equipes de Saúde de Família em número mais bem dimensionado, no direcionamento de pacientes para unidades básicas de saúde com capacidade resolutiva adequada para casos de menor complexidade (a iniciativa das UPA’s chega com muitíssimo atraso), na composição de um sistema de atendimento pré-hospitalar eficiente e resolutivo (como o é o SAMU), na falta de mecanismos de referência e contra-referência eficientes e na definição dos níveis de ação entre os entes prestadores, dentre outros fatores. Mas o cálculo do Ministério da Saúde, de onde as conclusões se inspiram, é feito sobre informações do total de leitos disponíveis em todo o país. Segundo Vecina e Malik, em torno de 40% dos leitos hospitalares no Brasil se pulverizam em hospitais com menos de 50 leitos, muitos dos quais construídos em momentos da vida do país em que a farra de vender serviços ao antigo Inamps através de convênios, dentro de uma percepção equivocada de se resolver os problemas de saúde da população através de mais hospitais, era prática comum. Ainda hoje, mais da metade dos leitos disponíveis para pacientes SUS estão situados em hospitais privados ou filantrópicos.
Não bastasse esse engano histórico, no imaginário popular das pessoas que residem nos municípios menores ainda é vigente a percepção de que hospitais são imprescindíveis quando se trata de assistência à saúde. Na cabeça dos políticos locais, incluindo aqueles que enxergam nisso mais uma oportunidade de obter vantagens políticas ou financeiras, a existência de um hospital é imprescindível para a sua ascensão. Promessas de que “se eleito for construirei um hospital para atender a população” soam muito sedutoras a não é raro encontra-la nos discursos eleitoreiros. Mas dada a incapacidade gerencial e operacional, a ausência de regras claras de financiamento pelo SUS, a impossibilidade de fixação de profissionais em número e qualificação minimamente adequada e ao superdimensionamento estrutural, essa estruturas tendem a ser de baixíssima capacidade resolutiva, acabando por se transformarem em unidades com taxas de ocupação muitíssimo aquém do necessário para a franca operacionalização. Ou seja, nas capitais e em cidades maiores carência de leitos e maior capacidade resolutiva. Fora desse cenário, desperdício e subutilização. Entretanto, para fins de cálculo, estes entram na composição deste indicador (para maiores informações acerca desse processo, recomendo a leitura de “Desempenho Hospitalar no Brasil”, de La Forgia e Couttolenc, Editora Singular, nos capítulos 2 e 3).
Para finalizar, uma pequena ressalva acerca da utilização do dado isolado “Leitos Hospitalares” como balizador de boa ou má assistência. Baseado em informações recolhidas em 2011, o site  CIA World Factbook fez um levantamento em escala mundial sobre a relação leitos hospitalares por 1000 habitantes, chegando a números interessantes. Segundo esse estudo (disponível em http://www.indexmundi.com/g/r.aspx?c=br&v=2227&l=pt), o Brasil encontra-se na 89ª posição (2,4 por 1000 hab.) de uma lista de 181 países, encabeçada pelo Japão (13,75 por 1000 hab.). O interessante é que os Estados Unidos da América, reconhecido como o país que mais investe em saúde quando se analisa o percentual do PIB aplicado nesse setor (em torno de 16,5%. Para efeito de comparação, Brasil 8,0% e Europa Ocidental em torno de 10,0%), ocupa uma vergonhosa 69ª posição (3,1 leitos por 1000 hab.), atrás inclusive de países reconhecidamente com menor vigor econômico, tais como Azerbaijão (7,93/1000 hab.), Cuba (olha ela aí de novo, com 5,9/1000 hab.), Nepal (5,0/1000 hab.) e Líbia (3,7/1000 hab.).
Como se vê de forma clara e inequívoca, a divulgação e interpretação de um dado devem e têm que ser feita dentro de um contexto. Sempre. Porém a impressão que se tem é que parece mais fácil falar de forma precipitada sem conhecimento de causa, ou, pior, com a não disfarçada vontade de enfraquecer quem se quer atacar à custa de informações fragmentadas ou incompletas. Meias-verdades.
Talvez lá no Azerbaijão, com seus 7,93 leitos por 1000 habitantes, não tenha tanta falácia.
Quem sabe?