“Uma república sem cidadãos de boa reputação não pode
existir nem ser bem governada; por outro lado, a reputação dos cidadãos é
motivo de tirania das repúblicas”
Nicolau Maquiavel
Os valores atribuídos à Gestão Clínica (e por extensão à Gestão do
Corpo Clínico), apresentados à exaustão nos últimos anos aos tomadores de
decisão dentro e fora das organizações hospitalares, se encontram num aparente
estado de congelamento. A despeito de tantas vezes ser qualificada como uma
estratégia inovadora, capaz de agregar práticas e posturas que num sentido mais
amplo poderiam trazer benefícios em escala a todos os elementos da cadeia
produtiva dentro do ambiente de prestação de serviços em saúde, os corolários
da Gestão Clínica continuam a ser utilizados de forma muito tímida ou
simplesmente são ignorados pela imensa maioria das organizações de saúde,
principalmente as hospitalares. E, pior, parecem gozar de menor atenção ainda
na medida em que o tempo passa.
Não sem razão. Investir na construção de matrizes organizacionais que
privilegiem boas práticas e qualidade assistencial no seu sentido mais amplo
implica na adoção de medidas que nem sempre são abraçadas de imediato por
aqueles que controlam os custos. São medidas nem sempre baratas (a depender de
como são conduzidas as mudanças), sua aplicação plena demanda tempo e seus
resultados às vezes não correspondem ao esperado. Num momento em que novas
estratégias são repensadas em função de
seus custos e dificuldades de acesso ao crédito, aquilo que não traz horizontes
visíveis em curto prazo é colocado no fim da fila. Diferentemente de países
como os Estados Unidos, em que recomendações ao exercício da boa prática clínica
são facultativos e com assustadora freqüência ignorados, ou o Reino Unido, seu
oposto, em que os princípios de Governança Clínica fazem parte de uma política
de Estado, ocupamos uma incômoda posição de indefinição. Justo nós, que tanto
poderíamos nos beneficiar desses pressupostos.
E, pronto, o círculo vicioso está completo. Investimentos em
estratégias inovadoras são deixados de lado, o que limita ainda mais o
desempenho global dessas organizações. Nesse contexto, é natural que não só a
Gestão Clínica como outras tantas boas iniciativas sejam deixadas para um
futuro com menos incertezas.
Mas a conseqüência de maior impacto talvez não seja a perda da
oportunidade de melhoria dos processos e da diferenciação competitiva.
É possível distinguir alguns problemas no cenário da assistência à
saúde em nosso país:
·
O
crescimento do segmento hospitalar há muito não apresenta musculatura que
inspire novos investimentos, à exceção de grandes grupos quando se expandem;
·
A
inovação sempre foi vista com desconfiança pela alta direção da maioria dos
hospitais;
·
Os
mecanismos de pagamento por serviços prestados permanecem imutáveis. E mesmo
assim com assiduidade incerta (gerando um eterno descontentamento por parte de
quem produz, mesmo com tantas discussões acerca da falência dos modelos
vigentes de pagamento por serviços em saúde);
·
Os
tomadores de serviço tratam com desconfiança aqueles que os oferecem, sem
distinção quanto ao ambiente de negociação ser público ou privado;
·
A
quebra de regras contratuais se tornou lugar-comum, gerando incertezas para o empreendedor
em saúde;
·
Profissionais
de saúde continuam a receber valores aviltantes de honorários, ao mesmo tempo
em que permanecem paradoxalmente cortejando pagadores de reputação suspeita,
criando uma dependência visceral e indecente;
·
Os
usuários finais do sistema, razão de ser de todo o negócio, ou seja, os
pacientes; vivem talvez o seu pior momento quanto às suas escolhas, ou pior,
muitas das vezes vivem a angústia de não ter escolhas na hora de utilizar os
serviços contratados de operadoras de planos de saúde;
·
Ao
mesmo tempo, o setor suplementar da assistência à saúde encolhe de forma
consistente ano após ano;
·
As
agências reguladoras nunca foram tão inertes e desacreditadas em seu papel de
moderação nas forças do mercado;
·
Nossa
pirâmide populacional favorece o crescimento de doenças de maior custo para os
sistemas de saúde, sem que deixemos de conviver com doenças epidêmicas ou
relacionadas à pobreza, ou à ineficiência do Estado no provimento dos meios
básicos de assistência;
·
Conseqüência
da afirmação anterior, a sinistralidade das operadoras de planos de saúde vem
aumentando assustadoramente, colocando em risco a própria existência das
mesmas;
·
Baixos
investimentos na pasta da Saúde (e que devem diminuir ainda mais a partir de
agora) engessam ou extinguem os serviços em geral, traduzidos, dentre outras
coisas, por falta de renovação tecnológica, baixa profissionalização gerencial
e achatamento salarial;
·
Nessa
mesma linha, anarquia advinda da contratação de mão de obra médica através da
exigência covarde de aquisição de um CNPJ para fins de recebimento de valores, cooperativas
fajutas de trabalho profissional, cargos comissionados de perfil exclusivamente
político, processos seletivos simplificados (muitas vezes também direcionados),
e, num âmbito maior e salvo honrosas exceções, a transferência de
responsabilidade da prestação de serviço a oportunistas de plantão travestidos
de Organizações Sociais.
Com tudo isso,
não é surpresa constatar que a maioria das organizações não tenha mudado de
forma essencial seu perfil diante da sociedade e do mercado de saúde. As
grandes organizações públicas ou privadas que servem de inspiração às demais
continuam a gozar de uma reputação que lhes permite viabilizar seu negócio de
forma sustentada, mas não sem esforços e algumas vezes malabarismos diversos para
contornar as ameaças do mercado. Já as demais, que em algum momento chegaram a
vislumbrar a possibilidade de incorporar métodos de gestão clínica como
diferencial competitivo (traduzidos nos pressupostos da Gestão do Corpo Clínico),
continuam a reproduzir as mesmas práticas que se por um lado impedem o
fechamento das suas portas, por outro as mantém inertes quanto à conquista dos
ganhos que a incorporação desses pressupostos poderia trazer.
O grande receio
dos idealizadores de uma gestão clínica plena, e que têm a certeza quase
inexorável do sucesso que a mesma traria para as suas respectivas organizações,
é que tudo permaneça como tal por tempo indeterminado, ou simplesmente nunca
mude. Ou seja, todo o esforço para a determinação de marcos teóricos (incluindo
aí o trabalho de rebuscamento de experiências, teste de campo, treinamento de
pessoal, acompanhamento de indicadores e projetos-piloto), todo o investimento
feito na conscientização da necessidade da utilização de ferramentas de gestão
até então desconhecidas e que precisavam ser testadas, toda a proposta de
vinculação dos princípios da Gestão do Corpo Clínico com a Qualidade no seu
sentido mais profundo, e toda a empolgação num futuro melhor para a assistência
à saúde em geral (e a hospitalar em particular), num movimento sincrônico com
os anseios de governos, fontes pagadoras diversas e famílias; não têm lugar
enquanto a acomodação e expectativa geral forem dominantes.
Não se trata
aqui de, como tudo e todos, responsabilizar a crise política e econômica como
responsáveis pelo engessamento generalizado. Muito pelo contrário.
Organizações e
gestores que conseguem enxergar um pouco além sabem que para que algumas das
transformações mais geniais em saúde aconteçam, nem sempre investimentos
maciços são necessários. Questões como governança (e sua sombra, a
transparência), identificação/capacitação de líderes, criação de ambiente de
aprendizado, geração de fluxos operacionais mínimos (tais como grupos de
elaboração de diretrizes e protocolos, ou incentivo à formação de comissões de
apoio) não dependem de orçamentos polpudos. Dependem de vontade e visão.
Do contrário,
também nos corredores dos hospitais continuaremos a conviver com a realidade
tão cruel que deixa a todos indignados todos os dias: uma organização de saúde
é, em boa medida, uma reprodução em miniatura de todas as idiossincrasias e
absurdos contados diariamente no noticiário. Senão vejamos:
Ø
O
país tem dificuldades no cumprimento das leis?
Ø
Há conflitos entre as diferentes esferas de
poder?
Ø
Recursos para investimentos essenciais são
escassos, mas a aplicação dos mesmos em benefício de poucos é um fato
consumado?
Ø
Por maiores que sejam os esforços das instâncias
fiscalizadoras na aplicação desses mesmos recursos, seu trabalho é muitas vezes
ignorado ou desqualificado?
Ø
Boas propostas de gestão não são muitas vezes
levadas a cabo por não beneficiarem segmentos de poder?
Ø
O cidadão freqüentemente é ignorado nas suas
opiniões e manifestações públicas de repúdio?
Ø
Nosso momento não enxerga em curto prazo
crescimento econômico sustentável?
Ø
Pessoas
não qualificadas são alçadas a cargos diretivos, em detrimento de outras
tecnicamente melhor preparadas para a função?
Ø
As opiniões sobre de quem é a culpa das diversas
mazelas cotidianas muitas vezes são reduzidas à questão “gestão versus
financiamento”?
Ø
As negociações para a aquisição de bens e
serviços para a população quase sempre são acompanhadas por um agente corrupto
na negociação?
Ø
Decisões democraticamente tomadas são muitas
vezes ignoradas em prol de interesses escusos?
Ø
Minorias e populações com alta demanda social
têm sofrido achatamento em seus benefícios?
Ø
Trabalhadores vêm experimentando arranjos e
propostas estranhas, assim como faltam perspectivas de correções salariais
balizadas pelos indicadores econômicos habituais?
Ø
Há legitimidade nos cargos de direção do país?
Há ou não um paralelo entre os equívocos que o país vive e
as organizações onde sistemas complexos de hierarquias e processos se interdigitam,
tais como os hospitais?
Organizações de saúde precisam de pessoas com a
personalidade necessária para servirem como agentes de transformação. As
oportunidades estão por aí. E, como dizia Maquiavel, a reputação pode ser o
diferencial quanto à sustentabilidade do setor.
Nos hospitais e no país.