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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Gestão Clínica dos Hospitais e o reflexo das iniquidades do país

Uma república sem cidadãos de boa reputação não pode existir nem ser bem governada; por outro lado, a reputação dos cidadãos é motivo de tirania das repúblicas”
Nicolau Maquiavel

Os valores atribuídos à Gestão Clínica (e por extensão à Gestão do Corpo Clínico), apresentados à exaustão nos últimos anos aos tomadores de decisão dentro e fora das organizações hospitalares, se encontram num aparente estado de congelamento. A despeito de tantas vezes ser qualificada como uma estratégia inovadora, capaz de agregar práticas e posturas que num sentido mais amplo poderiam trazer benefícios em escala a todos os elementos da cadeia produtiva dentro do ambiente de prestação de serviços em saúde, os corolários da Gestão Clínica continuam a ser utilizados de forma muito tímida ou simplesmente são ignorados pela imensa maioria das organizações de saúde, principalmente as hospitalares. E, pior, parecem gozar de menor atenção ainda na medida em que o tempo passa.

Não sem razão. Investir na construção de matrizes organizacionais que privilegiem boas práticas e qualidade assistencial no seu sentido mais amplo implica na adoção de medidas que nem sempre são abraçadas de imediato por aqueles que controlam os custos. São medidas nem sempre baratas (a depender de como são conduzidas as mudanças), sua aplicação plena demanda tempo e seus resultados às vezes não correspondem ao esperado. Num momento em que novas estratégias  são repensadas em função de seus custos e dificuldades de acesso ao crédito, aquilo que não traz horizontes visíveis em curto prazo é colocado no fim da fila. Diferentemente de países como os Estados Unidos, em que recomendações ao exercício da boa prática clínica são facultativos e com assustadora freqüência ignorados, ou o Reino Unido, seu oposto, em que os princípios de Governança Clínica fazem parte de uma política de Estado, ocupamos uma incômoda posição de indefinição. Justo nós, que tanto poderíamos nos beneficiar desses pressupostos.

E, pronto, o círculo vicioso está completo. Investimentos em estratégias inovadoras são deixados de lado, o que limita ainda mais o desempenho global dessas organizações. Nesse contexto, é natural que não só a Gestão Clínica como outras tantas boas iniciativas sejam deixadas para um futuro com menos incertezas.

Mas a conseqüência de maior impacto talvez não seja a perda da oportunidade de melhoria dos processos e da diferenciação competitiva.

É possível distinguir alguns problemas no cenário da assistência à saúde em nosso país:
·         O crescimento do segmento hospitalar há muito não apresenta musculatura que inspire novos investimentos, à exceção de grandes grupos quando se expandem;
·         A inovação sempre foi vista com desconfiança pela alta direção da maioria dos hospitais;
·         Os mecanismos de pagamento por serviços prestados permanecem imutáveis. E mesmo assim com assiduidade incerta (gerando um eterno descontentamento por parte de quem produz, mesmo com tantas discussões acerca da falência dos modelos vigentes de pagamento por serviços em saúde);
·         Os tomadores de serviço tratam com desconfiança aqueles que os oferecem, sem distinção quanto ao ambiente de negociação ser público ou privado;
·         A quebra de regras contratuais se tornou lugar-comum, gerando incertezas para o empreendedor em saúde;
·         Profissionais de saúde continuam a receber valores aviltantes de honorários, ao mesmo tempo em que permanecem paradoxalmente cortejando pagadores de reputação suspeita, criando uma dependência visceral e indecente;
·         Os usuários finais do sistema, razão de ser de todo o negócio, ou seja, os pacientes; vivem talvez o seu pior momento quanto às suas escolhas, ou pior, muitas das vezes vivem a angústia de não ter escolhas na hora de utilizar os serviços contratados de operadoras de planos de saúde;
·         Ao mesmo tempo, o setor suplementar da assistência à saúde encolhe de forma consistente ano após ano;
·         As agências reguladoras nunca foram tão inertes e desacreditadas em seu papel de moderação nas forças do mercado;
·         Nossa pirâmide populacional favorece o crescimento de doenças de maior custo para os sistemas de saúde, sem que deixemos de conviver com doenças epidêmicas ou relacionadas à pobreza, ou à ineficiência do Estado no provimento dos meios básicos de assistência;
·         Conseqüência da afirmação anterior, a sinistralidade das operadoras de planos de saúde vem aumentando assustadoramente, colocando em risco a própria existência das mesmas;
·         Baixos investimentos na pasta da Saúde (e que devem diminuir ainda mais a partir de agora) engessam ou extinguem os serviços em geral, traduzidos, dentre outras coisas, por falta de renovação tecnológica, baixa profissionalização gerencial e achatamento salarial;
·         Nessa mesma linha, anarquia advinda da contratação de mão de obra médica através da exigência covarde de aquisição de um CNPJ para fins de recebimento de valores, cooperativas fajutas de trabalho profissional, cargos comissionados de perfil exclusivamente político, processos seletivos simplificados (muitas vezes também direcionados), e, num âmbito maior e salvo honrosas exceções, a transferência de responsabilidade da prestação de serviço a oportunistas de plantão travestidos de Organizações Sociais.

Com tudo isso, não é surpresa constatar que a maioria das organizações não tenha mudado de forma essencial seu perfil diante da sociedade e do mercado de saúde. As grandes organizações públicas ou privadas que servem de inspiração às demais continuam a gozar de uma reputação que lhes permite viabilizar seu negócio de forma sustentada, mas não sem esforços e algumas vezes malabarismos diversos para contornar as ameaças do mercado. Já as demais, que em algum momento chegaram a vislumbrar a possibilidade de incorporar métodos de gestão clínica como diferencial competitivo (traduzidos nos pressupostos da Gestão do Corpo Clínico), continuam a reproduzir as mesmas práticas que se por um lado impedem o fechamento das suas portas, por outro as mantém inertes quanto à conquista dos ganhos que a incorporação desses pressupostos poderia trazer.

O grande receio dos idealizadores de uma gestão clínica plena, e que têm a certeza quase inexorável do sucesso que a mesma traria para as suas respectivas organizações, é que tudo permaneça como tal por tempo indeterminado, ou simplesmente nunca mude. Ou seja, todo o esforço para a determinação de marcos teóricos (incluindo aí o trabalho de rebuscamento de experiências, teste de campo, treinamento de pessoal, acompanhamento de indicadores e projetos-piloto), todo o investimento feito na conscientização da necessidade da utilização de ferramentas de gestão até então desconhecidas e que precisavam ser testadas, toda a proposta de vinculação dos princípios da Gestão do Corpo Clínico com a Qualidade no seu sentido mais profundo, e toda a empolgação num futuro melhor para a assistência à saúde em geral (e a hospitalar em particular), num movimento sincrônico com os anseios de governos, fontes pagadoras diversas e famílias; não têm lugar enquanto a acomodação e expectativa geral forem dominantes.

Não se trata aqui de, como tudo e todos, responsabilizar a crise política e econômica como responsáveis pelo engessamento generalizado. Muito pelo contrário.

Organizações e gestores que conseguem enxergar um pouco além sabem que para que algumas das transformações mais geniais em saúde aconteçam, nem sempre investimentos maciços são necessários. Questões como governança (e sua sombra, a transparência), identificação/capacitação de líderes, criação de ambiente de aprendizado, geração de fluxos operacionais mínimos (tais como grupos de elaboração de diretrizes e protocolos, ou incentivo à formação de comissões de apoio) não dependem de orçamentos polpudos. Dependem de vontade e visão.

Do contrário, também nos corredores dos hospitais continuaremos a conviver com a realidade tão cruel que deixa a todos indignados todos os dias: uma organização de saúde é, em boa medida, uma reprodução em miniatura de todas as idiossincrasias e absurdos contados diariamente no noticiário. Senão vejamos:

Ø  O país tem dificuldades no cumprimento das leis?
Ø  Há conflitos entre as diferentes esferas de poder?
Ø  Recursos para investimentos essenciais são escassos, mas a aplicação dos mesmos em benefício de poucos é um fato consumado?
Ø  Por maiores que sejam os esforços das instâncias fiscalizadoras na aplicação desses mesmos recursos, seu trabalho é muitas vezes ignorado ou desqualificado?
Ø  Boas propostas de gestão não são muitas vezes levadas a cabo por não beneficiarem segmentos de poder?
Ø  O cidadão freqüentemente é ignorado nas suas opiniões e manifestações públicas de repúdio?
Ø  Nosso momento não enxerga em curto prazo crescimento econômico sustentável?
Ø  Pessoas não qualificadas são alçadas a cargos diretivos, em detrimento de outras tecnicamente melhor preparadas para a função?
Ø  As opiniões sobre de quem é a culpa das diversas mazelas cotidianas muitas vezes são reduzidas à questão “gestão versus financiamento”?
Ø  As negociações para a aquisição de bens e serviços para a população quase sempre são acompanhadas por um agente corrupto na negociação?
Ø  Decisões democraticamente tomadas são muitas vezes ignoradas em prol de interesses escusos?
Ø  Minorias e populações com alta demanda social têm sofrido achatamento em seus benefícios?
Ø  Trabalhadores vêm experimentando arranjos e propostas estranhas, assim como faltam perspectivas de correções salariais balizadas pelos indicadores econômicos habituais?
Ø  Há legitimidade nos cargos de direção do país?

Há ou não um paralelo entre os equívocos que o país vive e as organizações onde sistemas complexos de hierarquias e processos se interdigitam, tais como os hospitais?

Organizações de saúde precisam de pessoas com a personalidade necessária para servirem como agentes de transformação. As oportunidades estão por aí. E, como dizia Maquiavel, a reputação pode ser o diferencial quanto à sustentabilidade do setor.


Nos hospitais e no país.