Logo na
primeira parte do seu famoso “Discurso do Método”, o filósofo francês René
Descartes (1596-1650) nos brinda com uma
reflexão tão genial quanto atual: “O bom senso é a coisa do mundo melhor
partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que
são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar
tê-lo mais do que têm”. Dito
de outra forma, é da natureza humana que suas percepções e convicções pessoais
regulem vários, senão todos, os aspectos de nossas vidas, parcial ou totalmente. Kahneman, em sua
famosa obra “Rápido e Devagar: as duas formas de pensar”, que tem sido livro de cabeceira de muitos
gestores em saúde, também nos traz uma reflexão aprofundada a respeito da forma
como lidamos com as decisões diárias que temos que tomar no ambiente das
organizações.
Olhando com
atenção, vemos que não é difícil constatar que todos nós achamos que temos
bom senso em quantidades suficientes para não precisarmos escutar opiniões alheias.
Nada mais natural.
A confiança das
pessoas na sua capacidade de melhor discernimento acerca das situações em geral
que se colocam no dia a dia, e das decisões delas decorrentes (gerando a
sensação de possuir no geral quantidades suficientes de bom senso), se faz
presente em diversas situações. No âmbito das organizações de saúde, nunca
demais reforçar suas peculiaridades, encontra um terreno fértil para
proliferar, influenciando rumos e definições estratégicas, e levando seus
gestores e profissionais que atuam na linha de frente a atitudes que parecem
desdenhar da enorme quantidade de dados objetivos disponíveis que, não raro, apontam para
caminhos distintos das suas conclusões.
Com relação
aos incontáveis processos que permeiam essas organizações, notadamente hospitais,
as atividades do Corpo Clínico e as instâncias
gerenciais acima do mesmo servem como um exemplo concreto do quão difícil é
estabelecer padrões que contemplem, na sua totalidade, a maioria das
inter-relações entre esses entes e seus maiores objetos de atuação: os pacientes, o público interno e a comunidade.
Até há pouco tempo, eu ainda acreditava que padrões mínimos
pré-estabelecidos relacionados à ambiência, insumos, tecnologias e visão
organizacional poderiam servir como impulsionadores na produção de processos e
linhas de ação básica voltada para construção de plataformas de gestão, que por
sua vez influenciariam toda uma salutar cadeia de eventos para todos os
envolvidos na assistência. A questão é que não existe uma conjunção de fatores ideal,
que forneça de forma minimamente adequada aos gestores clínicos as ferramentas
necessárias para o desempenho satisfatório de sua atividade: certo ou errado,
cada um busca a sua forma de fazer as coisas.
E chamo de desempenho
satisfatório basicamente os desfechos clínicos acima de metas pré-estabelecidas,
a geração de uma atmosfera de colaboração e cooperação entre os diversos
setores de prestação de serviços assistenciais, o engajamento de seu corpo de
comandados no melhor estilo “siga o líder” e, sempre bom não esquecer, melhores
resultados operacionais e de receita para a organização.
Pior que
isso, e aí sim motivo de pesar e preocupação, é a organização que dispõe dos
meios para o alcance desses padrões de qualidade assistencial decorrentes da
atuação de seu Corpo Clínico, e não o fazem por não os considerarem importantes. Outras vezes até o fazem, na forma de ações de
impacto (geralmente muito alardeadas), mas de resultados duvidosos, tais como
aquisição de um sistema de prontuário eletrônico de última geração, contratação
de profissionais de reconhecida reputação para posições executivas-chave (porém
distantes da realidade daquela organização), ou a aquisição de selos de
Acreditação Hospitalar: é o típico caso de quem tem uma Ferrari na garagem (e
faz questão de mostrar para todos), mas não consegue achar o botão de partida. Isso
sem esquecer aqueles casos em que fatores políticos e extra meritórios influenciam
na escolha da(s) pessoa(s) que estará à frente da gestão, retardando, em função
da inaptidão do escolhido, a adoção de medidas muitas vezes fundamentais à
saúde de qualquer hospital.
Quando
apontamos para a necessidade de ajustes em prol de melhor desempenho, não estamos
falando de uma coisa qualquer. Alguns estudiosos afirmam que somos o 10°
mercado consumidor de serviços de saúde no mundo, isso não é pouca coisa. Não é
à toa que tanto se tem feito para que os obstáculos à implantação de Lei 13.097 (que trata da entrada de capital estrangeiro em áreas não permitidas pela Lei Orgânica do
SUS) sejam vencidos, na expectativa de uma injeção providencial adicional de recursos
num setor mais mal administrado que sem dinheiro. E a recíproca é verdadeira:
companhias estrangeiras também têm manifestado interesse em entrar no país para
abocanhar seu pedaço de mercado, obviamente por vislumbrar grandes lucros. Além
disso, todo o setor gera um contingente enorme de empregos diretos e indiretos,
contribuindo sobremaneira para a economia do país.
Condutores
da gestão clínica dos hospitais tentam demonstrar bom senso em quantidades muito
aquém do que na verdade possuem. Profissionais do Corpo Clínico a eles
subordinados conduzem o cotidiano das organizações de saúde ancorados nessa aparência.
Um reflexo
disso se percebe na forma como esses temas são discutidos, nas ocasiões em que
se reserva um espaço sobre o assunto. Em quase todos, em que diversos
representantes de hospitais de renome no país são os protagonistas, os
presentes são obrigados a ouvir relatos estéreis de “como eu faço”. Esses encontros,
em que a temática e formato são geralmente repetitivos, poderiam, na melhor das
hipóteses, fornecer uma oportunidade de troca de experiências de forma
colaborativa, cada qual retornando para as suas unidades de origem com novas
ideias e percepções acerca de como melhorar o desempenho organizacional. Isso,
porém, não ocorre. Quem representa o hospital muitas vezes não é a pessoa
responsável pela gestão clínica, e quando o é não compartilha informações que
poderiam beneficiar o setor em si. Por vezes estratégias gerenciais são
tratadas como segredos de Estado, como se isso fosse a fórmula para a juventude
eterna: como não há compartilhamento, o clima é de competição. E, como tal, não
se poderiam esperar desses debates um nível maior que o visto.
Talvez não
haja mais nada a ser dito a esse respeito. Hospitais criam suas próprias
verdades. Os organismos e agências reguladoras que se articulam com os mesmos
continuam ressaltando a importância da gestão do Corpo Clínico como condição
basilar para continuarem competitivos. São discursos que se complementam no
terreno da racionalidade, às vezes até semelhantes nas palavras. Na prática,
ninguém sabe muito bem sequer do que se trata, sendo preferível pelo gestor
continuar a utilizar as medidas que julga necessárias de acordo com sua
intuição, chamando a isso gestão clínica adequada.
E talvez isso
seja verdade mesmo. Cada organização tem seu histórico, missão e valores a
defender, e a moldar suas atitudes perante ela mesma e perante a comunidade que
a cerca. Não é ilegítimo, porém é estranho. Afinal, a busca por inovações que ao
final tragam um melhor desempenho, verdadeiro, das organizações em saúde, é tão
buscada quanto sem novidades.
Quando
analisamos alguns dados e vemos que, segundo Bohmer, da Escola de Harvard,
apenas 30% dos hospitais norte-americanos seguem protocolos e diretrizes
estabelecidos por eles mesmos, pelas sociedades científicas ou pelos institutos
de renome daquele país (apenas para ficar nesse exemplo), percebemos que os
enunciados de Descartes permanecem atuais.
Bom senso de
verdade, desde que subordinado a uma boa dose de humildade, e senso critico em
doses altas, devem andar de mãos dadas para que se chegue a um estado de coisas
melhor que o atual. Cada um sabe a sua medida. Pode ser que a partir de então
as organizações parem de simplesmente reproduzir o que outras fazem de maneira
acrítica, ou parem de assumir atitudes baseadas em modelos que estão na moda, tornando
assim as atividades do Corpo Clínico um instrumento poderoso para o alcance de
níveis assistenciais verdadeiramente comprometidos com a busca da excelência, e
fugindo assim do menos original dos sensos: o senso comum.
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