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domingo, 28 de novembro de 2010

"Sobre a Morte e o Morrer", parte 3: controvérsias no campo de batalha

É muito difícil encontrar um médico que trabalhe no ambiente de uma UTI que não tenha se defrontado com uma situação, cada vez mais presente e corriqueira, de se questionar se vale realmente a pena ou não utilizar os recursos técnicos à sua disposição naquele momento para prolongar a vida de um indivíduo cujas reais chances de recuperação de seu estado são nulas ou próximas a isso. Tal cenário enseja inúmeras reflexões, mas nos ateremos às de caráter técnico-científico:

1 - Quem pode afirmar que um paciente não tem mais chance de cura ou recuperação?
À exceção dos resultado bastante convincentes dos testes descritos no "Protocolo de morte encefálica", aprovado pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 1.480 de 08/08/97), não há nenhum elemento objetivo de predição absoluta a respeito do desenlace fatal de algum paciente, mesmo aqueles considerados portadores de situações de saúde muito graves. A percepção a respeito do inevitável desfecho pelos profissionais que atuam em UTI's ou áreas afins, assim como do tempo provável em que isso irá ocorrer, parte de um pressuposto baseado em larga experiência no acompanhamento de casos semelhantes por esses mesmos profissionais, a despeito da inexistência de dados exatos. Há que se frisar que todo paciente com diagnóstico de morte encefálica é, por natureza, um paciente muito grave, mas nem todo paciente muito grave está em morte encefálica. Aliás, no cotidiano das UTI's, a maioria não está. Carece, portanto, o profissional dos meios necessários para, de forma inequívoca, confirmar a inexorabilidade do desfecho fatal para aquele paciente em particular através de testes e exames padronizados. Entretanto, salvo raras exceções e desde que estejamos lidando com uma equipe competente, os demais elementos se juntam para compor um cenário no qual se pode sim afirmar com razoável grau de certeza que em certas situações não há absolutamente mais nada a se fazer a não ser privilegiar medidas de conforto.
Obviamente que para o leigo tais percepções passam ao largo com esse detalhamento. Mas a experiência mostra que na maioria das vezes os acompanhantes e familiares conseguem perceber mais ou menos o que está para ocorrer, independente do que informa a equipe assistencial.

2 - Há algum amparo legal em se proceder à descontinuidade de um tratamento, baseado na conclusão de que o investimento revela-se fútil?
Primeiro vamos definir melhor: tratamento fútil a um paciente, hospitalizado ou não, é, como diz o termo, aquele que não acrescenta ou agrega nenhum valor no processo de recuperação do mesmo, podendo mesmo às vezes até trazer prejuízos e sofrimento físico. Qualquer tratamento. Já o ato de suspender a aplicação tratamentos fúteis a pacientes internados, geralmente em UTI's, em função da ausência total de perspectiva de recuperação, é chamada ortotanásia. A esse respeito, no ano de 2006 o Conselho Federal de Medicina emitiu outra resolução (Resolução CFM 180.5/2006) discriminando o assunto, na época de sua divulgação gerando inclusive uma polêmica enorme em diversos meios (a esse respeito veja a excelente exposição do advogado Alexandre M. Moreira em www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3373/A-ortotanasia-e-a-Resolucao-CFM-1805-2006?src=busca_referer). Quanto ao amparo legal para a aplicação dos princípios emanados por esta resolução, estes não existem ainda, pois o nosso Código Penal não tipificou esse pormenor, e talvez nunca o tipifique em função de incontáveis distorções que podem surgir em torno de sua interpretação, muitas das quais de caráter religioso e doutrinário. Mas vale lembrar que deixar de aplicar tratamentos, exames e terapias sem fundamento em função do quadro irreversível do paciente não significa de forma alguma não tratá-lo com respeito e dignidade, promovendo medidas de conforto tais como baixo ruído, presença mais amiúde de familiares, analgésicos potentes e sedativos para aliviar qualquer desconforto, medidas de higiene adequadas, manobras posturais adequadas, e, principalmente, contato aberto, franco e solidários com os seus familiares e acompanhantes.

Precisamos pensar se efetivamente há a necessidade de haver dilemas nessa situação. Como quase tudo que envolve o tratamento do paciente grave, principalmente na UTI, muitas variáveis estão em jogo e muitas pessoas estão envolvidas. Mas não se deve perder de vista o fato de que o objeto de maior atenção continua a ser o paciente. E não se pode deixar, em momento algum, de abrir mão de uma abordagem objetiva, franca e paciente com os seus familiares e acompanhantes. Independente de credo ou momento psicológico, há uma tendência a uma maior receptividade por parte destes com relação às informações que são prestadas, não sendo raro o estabelecimento de uma relação de confiança para com a equipe assistencial no que diz respeito às intervenções ou a ausência delas, e seus motivos. Em resumo, uma relação de respeito e acolhimento com familiares faz uma enorme diferença em como a equipe pode atuar nessa questão, ficando mais à vontade para adotar a melhor postura frente ao paciente sem receio de manifestações inesperadas.

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