Há alguma coisa estranha acontecendo nos corredores dos
grandes hospitais. À medida que mais e mais organizações vão obtendo selos de
Acreditação (e a velocidade com que esse fenômeno ocorre nem é tão grande
assim), quem for bom observador acaba por perceber que essas grandes
transformações, quase sempre acompanhadas de repercussões midiáticas, talvez
representem, sob certos aspectos, apenas uma cortina de fumaça para encobrir as
iniquidades que os mais atentos assinalam, e quase sempre são ignorados.
Dito de outra forma, é bastante possível (e provável) que o
processo de Acreditação em vários hospitais brasileiros não mude
fundamentalmente a forma de condução dos processos assistenciais em relação ao
que eram antes da certificação. Chamo a atenção para o fato de que na imensa
maioria dos hospitais um contingente significativo de médicos que se situam na
linha de frente do cuidado não estão totalmente alinhados às novas exigências
de postura e de execução de tarefas que o processo de Acreditação preconiza. À
exceção de algumas organizações que carregam uma enorme responsabilidade na
manutenção da excelência de seus serviços, a dura realidade tem mostrado que a
despeito de múltiplos esforços no fomento, implantação e manutenção dos
princípios da qualidade hospitalar, há um distanciamento preocupante entre o
preconizado, o que se diz fazer e o efetivamente feito.
Ilude-se quem pensa que é um fenômeno isolado. Mesmo com
todo o incentivo oficial e das constantes iniciativas de realizar
comparabilidade em nome dos consumidores, somente 30% dos hospitais norte
americanos possuem um corpo de médicos que seguem protocolos e diretrizes, segundo
Richard Bohmer, pesquisador da Harvard School, para ficar apenas nesse exemplo.
Sabemos que as dimensões da linha de cuidado são várias, e protocolos e
diretrizes são um meio e não uma finalidade, um dos vários aspectos nesse
processo. Então o que é que poderia
justificar essa constatação?
Nunca é demais lembrar que existem ótimas organizações de
saúde, que por diversos motivos ainda não consideram o processo de Acreditação
uma prioridade. E existem outras que ostentam um selo de certificação na sua
entrada, nas placas das ruas e no noticiário, sem de fato alterarem suas
práticas de forma substancial. E isso tem uma consequência muitíssimo danosa ao
usuário, que não tem a capacidade de distinguir ambas as situações extremas e
as variáveis intermediárias. Ele pode fazer escolhas que talvez não preencham
suas expectativas. Pior, pode ficar exposto a situações que afetem sua
segurança e o próprio processo de recuperação de doença. Afinal, segurança do
paciente é o pressuposto básico de qualquer processo de Acreditação Hospitalar.
Médicos são profissionais que fazem parte de uma categoria
única. Mas isso nem sempre deve ser considerado um elogio. Sua formação técnica
exclusiva lhe confere uma autonomia do qual nenhum outro profissional pode
desfrutar, sua liderança natural dentro de uma equipe assistencial é
inquestionável e sua representação perante as mais diversas situações é sempre respeitada.
Seu respaldo ético e legal para exercer sem muitos questionamentos sua prática
é, ao pé da letra, ilimitado (resguardando-se certos aspectos éticos e desde
que não inflija nenhum mal ao paciente). Sua formação curricular muito raramente
aborda questões de natureza psico-social no trato dos pacientes, e seu
aprendizado na área de economia da saúde ou gestão de itens elementares que
irão permear sua prática diária no relacionamento com suas fontes pagadoras é praticamente
inexistente. Para completar, é de suas mãos, ao digitar ou assinar prescrições,
evoluções e relatórios, que resultará o grau de desempenho da organização que o
acolhe.
Por essas e por outras, esse indivíduo deve ser tratado de
forma diferenciada. Nem melhor, nem pior, apenas diferenciada. E a impressão
que tenho é que isso não está ocorrendo, na medida em que a rotina do processo
assistencial nos hospitais carece de linearidade da definição de tarefas, de
comunicação horizontal e vertical simples e direta entre equipes, intra-equipes
e entre todos com seus respectivos gestores; e o pior, de práticas fora do
padrão estabelecido após tanto investimento na implantação de processos de
qualidade. Trocando em miúdos, ninguém está brincando do jeito que foi
combinado.
Apontar problemas é fácil, mas considero o cenário bem
complexo para arriscar uma solução definitiva. Entretanto, tenho uma sugestão
simples, porém trabalhosa, e que envolve o gestor clínico na sua atividade.
Vivenciar o ambiente hospitalar nas suas peculiaridades e
idiossincrasias é um exercício difícil e obrigatoriamente diário. O gestor
clínico não pode exercer sua liderança atrás de uma mesa, realizando reuniões
solenes ou produzindo incontáveis documentos regulatórios sem que esteja em
sintonia contínua com todos os aspectos assistenciais nos mais diversos nichos
da organização. É um trabalho de construção lenta e gradual, no qual sua
liderança sai fortalecida a aquisição do respeito da comunidade se dá sem
canetadas. Caminhar entre os diversos setores, ouvir mais que falar,
estabelecer vínculos de confiança com todas as categorias profissionais, ser
presente e não se abstrair de intermediar situações de conflito, estar sempre disponível
e nunca se deixar influenciar pela posição hierárquica, a não ser quando
necessário: eis um bom caminho para começar.
Não existem certos ou errados nessa história. Profissionais
existem para exercer sua prática, gestores para guiá-las dentro dos interesses
da organização. E os processos de implantação de qualidade não dão conta de
contemplar esses aspectos não mensuráveis.
O gestor deve tomar a dianteira e se responsabilizar pelo
seu grupo de médicos.
Nada menos que isso.
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