Para aqueles que acham que o propósito desse comentário é justamente
acrescentar alguma proposta inovadora de solução para a forma incômoda
como convivemos com o problema das próteses no nosso país, vou logo
adiantando que nada tenho a somar. Desde que mais uma vez foi trazida à
tona recentemente, após uma denúncia no programa “Fantástico” da Rede
Globo de Televisão em janeiro deste ano (para quem não viu, acesse http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/01/mafia-das-proteses-coloca-vidas-em-risco-com-cirurgias-desnecessarias.html e http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/01/hospitais-recebem-parte-de-propina-de-empresas-de-proteses.html
), a notícia foi multiplicada e discutida à exaustão em diversos outros
meios e redes sociais. Em todos os meios, a reação foi de perplexidade e
indignação quanto a essa forma criminosa com que médicos e hospitais
tratam a saúde das pessoas que necessitam de uma prótese para a melhora
de sua condição de saúde, privilegiando ganhos pessoais envolvendo
grandes somas em dinheiro de maneira ilícita, algumas vezes
prioritariamente em relação ao bem estar do paciente. Na denúncia em
apreço, os envolvidos citados eram entes públicos em sua maioria, mas se
engana quem pensa que tal fato não ocorra em hospitais privados: pode
ser que nestes o volume de transações seja até mesmo maior.
Este problema é muito antigo, um “câncer” agressivo não erradicado da
prática médica na sua relação com o complexo industrial da saúde, com
repercussões em toda uma coletividade que, há décadas, aponta para a
necessidade de orçamentos mais robustos voltados para as ações de saúde
pública. A medicina suplementar, ao contrário daqueles que acham que não
apresentam problemas dessa natureza, convive com margens apertadas e
ações regulatórias/fiscalizatórias cada vez mais rígidas, eternamente
refazendo seus cálculos atuariais e percebendo ao final que as contas
não fecham. Em ambos, o somatório de perdas resultantes pode representar
ao final um percentual significativo em seus orçamentos, valor esse
ainda não mensurado pois não é possível uma estimativa precisa.
Minha preocupação é outra, e diz respeito ao papel do gestor clínico e o quanto esse problema impacta na sua labuta diária.
É dispensável recapitular os condenáveis aspectos morais, legais,
éticos e até mesmo religiosos que envolvem a prática de obtenção de
ganhos pessoais, muitas vezes em detrimento da saúde do próprio
paciente, quando da indicação de órteses, próteses e
materiais/drogas/tratamentos especiais. Nesse cenário, a busca por
valores ou benefícios diretos ou indiretos (objetivo de toda a cadeia
envolvida), tem como origem uma distorção muito própria do meio, e que
nunca vai deixar de existir: a assimetria de informações.
A assimetria de informações aqui se constata no comportamento do
médico, detentor dos saberes que teoricamente deveriam se reverter em
benefício do paciente que o procura, e é quem indica, sugere, induz ou
mesmo obriga a aquisição daquilo que julga como necessário para o
paciente aos seus cuidados após sua avaliação baseada em suposta expertise. Quase
sempre o faz sem que o paciente, instituição ou fonte pagadora obtenha
em tempo hábil alguma forma de contestação, argumentação ou alternativas
de solução. A perspectiva de discutir em termos técnicos o que está
sendo proposto e da forma como está sendo proposto, é exceção e não
regra. É um exemplo clássico em que o conhecimento e manipulação desse
conhecimento geram poder. E que poder.
O fenômeno dos incentivos à prática médica, tanto os justificáveis
quanto os inaceitáveis, e sobejamente conhecido dentro do campo da
Economia da Saúde, infelizmente encontra pouco espaço para discussão nos
meandros da administração hospitalar, dos conselhos de classe e dos
tribunais em geral, quando deveriam ser aprofundados em nome de
contribuição efetiva à sociedade, uma obrigação do ponto de vista
pecuniário e moral, e não ficar restrito às teses acadêmicas que tratam
do assunto (apesar da enorme contribuição das mesmas para uma melhor
compreensão do tema).
O público leigo e um grande contingente de pessoas ligadas ao setor
saúde acredita que as situações denunciadas são pontuais e se restringem
apenas àqueles casos que ganham maior notoriedade na mídia. Há um
equívoco colossal nessa percepção. Negócios obscuros tendo médicos como
protagonistas de um sistema que visa lesar orçamentos públicos ou
privados em benefício pessoal, mesmo que não tragam prejuízos
detectáveis aos seus pacientes, não são tão raros assim.
Em outro aspecto mais negligenciado ainda, talvez por serem mais
diluídos no cotidiano da organização de saúde, esses benefícios
enviesados são alcançados por médicos através de pequenos ganhos de
natureza discutível, e não envolvem próteses, órteses e materiais
especiais. Para ficar em apenas alguns exemplos:
* Drogas mais caras são estimuladas na sua prescrição pelos seus
representantes comerciais, em detrimento de outras com a mesma função e
padrão de qualidade, e com menor custo para quem paga a conta, tendo
como contrapartida vantagens para quem as prescreveu;
* Procedimentos em pacientes da rede pública ou da medicina
suplementar, dos mais simples aos mais complexos, só são realizados em
alguns locais se o paciente contribuir de alguma maneira para uma
complementação de honorários (estes anteriormente previstos na prestação
do serviço através de tabelas próprias, e tácita ou explicitamente
acatados pelo profissional), muitas das vezes sendo evocada uma suposta
legitimidade a título de compensação, em função dos valores defasados que são repassados ao profissional pelos entes pagadores;
* Exames e outros procedimentos diagnósticos/terapêuticos de alta
complexidade são estimulados na sua realização, através de indicações
discutíveis e de frágil sustentação, no intuito de gerar receita
adicional pela super-utilização, seja para a organização que adquiriu
aquele aparato, seja para o profissional ou grupo de profissionais que
arcou com sua aquisição (e, portanto, não só tem que pagar pela compra
do mesmo como tem que gerar lucro com a utilização deste, quando no
âmbito de algumas organizações privadas);
* A permanência hospitalar do paciente internado além da devida, ou a
indicação de internação hospitalar inadequada (fazendo uso, inclusive,
de justificativas maquiadas para a permanência dos pacientes aos seus
cuidados), principalmente para o profissional que tem muitos pacientes
sob sua responsabilidade, traz ganhos em escala para a organização e
para o profissional, que recebe uma valor pré-determinado a cada visita
que faz. Alguma vezes a visita médica se restringe a dar um bom dia ao
paciente e ir embora.
A maneira como o assunto chega às discussões tem um comportamento em
forma cíclica e frequentemente hipócrita (recomendo a leitura do texto
de Claudia Collucci em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudiacollucci/2015/01/1577424-mafia-das-proteses-e-as-reacoes-hipocritas.shtml):
alguém, em algum lugar, se utilizando dos meios apropriados, torna
pública uma denúncia, geralmente através de um meio forte de
comunicação. Fica-se debatendo a questão por algumas semanas, um
representante da lei fala sobre penas mais duras, um representante do
governo ameaça com resoluções que não saem do papel, alguns “bois de
piranha” são presos temporariamente, as redes sociais esculacham a ordem
vigente e começam a discutir, discutir e discutir a questão.
Efetivamente, não há nenhuma medida de impacto. Nunca houve. E assim o
problema volta para a obscuridade, sem deixar nunca de existir, para
mais tarde uma nova leva de denúncias promoverem a indignação geral.
Há uma chance real de que nada sério seja feito no futuro porque
(tomara que esteja enganado) a pureza de intenção do homem quando o
assunto é dinheiro é uma utopia (como sempre é bom lembrar, salvo
honrosas exceções). E não se trata de uma exclusividade do nosso país,
ou de países com características semelhantes, e nem se trata de um
fenômeno recente. No âmbito dos sistemas de saúde em geral, a diferença
está no fato de que existem países em que mecanismos regulatórios e
fiscalizatórios são mais sérios, dificultando qualquer atitude pessoal
ou coletiva suspeita. E em outros não.
Resta o alívio de saber que as práticas listadas acima não são
generalizadas. Médicos e demais profissionais de saúde podem ser
criticados de diversas formas em suas ações, mas geralmente cumprem
aquilo para o qual são treinados, com honestidade e ética acima de tudo.
Cabe ao gestor clínico fiscalizar e coibir abusos na forma como as
atividades do Corpo Clínico dentro do hospital sob seu comando ocorre,
sejam eles quais forem. Seu universo é composto por tudo que se
relaciona à atividade médica. E seu papel de fiscal da boa prática é, de
longe, o mais importante.
E, certamente, o mais difícil.
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