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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Gestão Clínica: qual o custo da nossa inércia?

Somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos, e o que impedimos de fazer.
Albert Camus
Poucas organizações hospitalares em nosso país têm se dedicado à Gestão Clínica. Destas, apenas uma pequena parte se dispõe a compartilhar sua experiência, auxiliando o crescimento de outras. E dadas as multiplicidades de arranjos, perfis organizacionais, clientela, orçamentos e regime jurídico, aquelas que resolvem desenvolver essa matriz estratégica tendem a adotar modelos que variam na sua eficácia de forma diretamente proporcional ao investimento aplicado, no seu sentido amplo. Ainda assim, temos várias referências de hospitais, privados na sua absoluta maioria, que se dedicaram pesadamente na aquisição das ferramentas de medição e desenvolvimento de lideranças, substratos básicos para a Gestão Clínica, por acreditarem que esse é um caminho, senão o mais importante, para o alcance de padrões de qualidade da forma mais definitiva e transparente. O horizonte é a busca por processos clínicos melhores e ganhos de reputação na comunidade onde está inserido. Os resultados falam por si: nas organizações que abraçam esses princípios, basta um olhar mais atento para enxergar a relação de causa e efeito, inclusive nas suas receitas operacionais (consequência natural e vital em tempos de crise).
Espalhados país afora, se encontram a imensa maioria dos outros hospitais e demais serviços de saúde. Em função da inviabilidade econômica de criar o ambiente adequado para a implantação e desenvolvimento desses processos, do desconhecimento acerca do assunto (ainda extremamente comum), ou em função de simplesmente seu corpo diretivo não acreditar no poder transformador que uma Gestão Clínica bem feita pode trazer para toda a organização; quase todos patinam entre iniciativas de baixo impacto nos seus resultados e a ausência completa de qualquer tentativa ou experimentação nessa direção.
Gestão Clínica tem sido tratada como um assunto secundário dentro da complexidade das organizações hospitalares, a despeito da sua importância tão enaltecida nas rodas de discussão e nos congressos de gestão em saúde. Sua relevância é quase sempre superada pela necessidade de resolver as urgências cotidianas, pela falta de preparo ou de liderança de seus gestores, pela pouca absorção da estratégia por parte de alta direção, bem como no direcionamento de energia para ações periféricas. Ninguém parece estar muito interessado em aprofundar essas questões. Um reflexo disso é a ínfima quantidade de publicações e eventos que tratam do tema. E na maioria das vezes, fala-se sobre Gestão Clínica, Gestão de Corpo Clínico e Governança Clínica, de forma indistinta, equivocada e superficial.
Dessa forma, o que poderia ser um diferencial competitivo, acaba por se tornar apenas um assunto fortuito, que alguém já ouviu falar, quase nunca colocada em discussão e muito menos posta em prática. Nessas mesmas organizações privadas, exemplos de sucesso podem ser inspiradores para aqueles que conseguem ver um pouco mais além de faturamento, glosas, reformas, fornecedores e autorizações. Mas é na rede pública de saúde onde a carência de métodos organizacionais antenados com esses tempos de crise, dentre eles a Gestão Clínica, se mostra mais cruel.
Nos hospitais públicos, a assincronia entre o estrutura/método versus receita/eficiência tem várias explicações, na maioria das vezes relacionadas a financiamento insuficiente e/ou a falta de gestão apropriada, deficiência de quadros técnicos especializados, e no próprio sentido de corpo de seus colaboradores, amparados por regimes especiais. Dentro desse contexto, o poder público (federal, estadual ou municipal), vem a alguns anos encontrando nas concessões de serviços a entes privados – terceirizações, principalmente através de organizações sociais, uma maneira interessante de, ao menos, reduzir o custo de pessoal e melhorar a eficiência de gestão, desde que preencham os critérios para a concessão destes e que os mesmos atinjam metas pactuadas previamente, em uma suposta parceria de negócio que teoricamente seria interessante para ambos os lados. Mas a eficiência da gestão a um custo menor, que poderia servir de alívio ao orçamento público, não parece ser uma unanimidade. Ao contrário, de forma especialmente silenciosa, a falência desse sistema vem gradativamente superando os menos numerosos casos de sucesso.
As menções acerca da iniquidade da concessão de serviços de saúde a terceiros são muitas, em detrimento de relatos de experiências exitosas. A comunidade a ser servida por esses serviços não participa dos processos decisórios e as metas não são muitas vezes cumpridas, seja por falta de compromisso nos repasses de valores por parte de quem contrata ou por desídia daqueles que deveriam cumprir o acordado. Isso sem falar nos imbróglios no âmbito da Justiça do Trabalho. Aparentemente, o sistema parece estar entrando agora numa fase de re-acomodação, em que se espera que os entes públicos façam novas reflexões acerca da efetividade que a transferência de responsabilidade na saúde supostamente pode trazer.
Em suma, financiamento baixo para a manutenção de estruturas caras à administração pública, mas que, em nome de uma gestão mais eficiente, teoricamente seriam suficientes para aqueles que aceitam o desafio de transformar a prestação do serviço em saúde. Esse é um forte argumento na lógica de mercado. Mas, e se houvesse um processo de capacitação de gestores públicos nas unidades de saúde, de forma profissional e intensiva? O Ministério da Saúde e outras tantas instituições públicas e privadas disponibilizam várias alternativas nesse sentido, cuja formação do gestor poderia ser condicionada a critérios de aprovação e resultados na obtenção de metas em sua unidade.
Outro caminho poderia ser a contratação de gestores profissionais. No Estado de São Paulo, uma iniciativa da Secretaria de Educação deve ser testada em breve nessa direção, inclusive com a criação de um concurso público para o provimento de quase duas mil vagas de Diretor das escolas. Como todos sabem a Educação básica e pública também é um bem essencial, de responsabilidade dos Estados e Municípios. O argumento é simplório, porém definitivo: o gestor motivado por um cargo conquistado por méritos técnicos tem uma razoável possibilidade de se tornar um líder no aperfeiçoamento das atividades na organização que irá dirigir. E não é uma ideia nova, posto que já foi testada com sucesso na Inglaterra.
Coincidência, pois foi a mesma Inglaterra que a partir da década de 60 no século passado criou e posteriormente aperfeiçoou os princípios de Governança Clínica, citada à exaustão por aqueles que veem no Sistema Nacional de Saúde (NHS) daquele país um modelo inspirador de transparência e compromisso com o bem público. O nosso Sistema Único de Saúde teve suas bases alicerçadas dentro desses princípios, mas como não somos ingleses, parece mais fácil adotar uma cartilha menos ortodoxa.
Gestão Clínica tem a ver com eficiência alocativa, uso racional de recursos (sempre escassos), resultados condicionando contrapartidas, segurança jurídica, plano de cargos e salários, capacitação intensiva de gestores, fiscalização e cobrança de cima para baixo e de baixo para cima, auditoria plena, espaços de discussão e transparência.
É, finalmente, o exercício de um talento que leva em consideração todos os elementos envolvidos na assistência à saúde, menos a discussão estéril acerca das origens de nossos problemas, que contrapõem falta de gestão versus falta de financiamento, tanto na esfera pública quanto privada.
Buscar a aplicação dos pressupostos de Gestão Clínica, adaptando-os à realidade local, pode ser a oportunidade de mostrar que existem diferenças abissais entre intenção e gesto. E pode servir de estímulo para o fim das desculpas pela inépcia ou tentativas de colocar a culpa nos outros, aí incluindo a política, a crise, a falta de tempo e tantas outras.
Porque, convenhamos, pior não pode ficar.

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