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quinta-feira, 3 de julho de 2025

O dragão imaginário no mercado da saúde

 

“É por isso que se mandam as crianças à escola: não tanto para que aprendam alguma coisa, mas para que se habituem a estar calmas e sentadas e a cumprir escrupulosamente o que se lhes ordena, de modo que depois não pensem mesmo que têm de pôr em prática as suas idéias.”

Immanuel Kant

 

Uma fábula antiga de autor desconhecido conta que numa aldeia distante os habitantes eram induzidos a temer um dragão imaginário que se encontrava aprisionado num lugar secreto, e que a qualquer momento poderia ser liberto e provocar a aniquilação dessa aldeia, caso os aldeões não cumprissem suas obrigações da maneira que achavam, na opinião deles, aquela que lhes traria vantagens. Esses indivíduos, que representavam a elite dominante, e que detinham o segredo de como manter o dragão aprisionado, tinha verdadeiro horror a qualquer tipo de mudança nas relações de servidão que acabou se criando, sendo suprimidos quaisquer questionamentos que tentavam mostrar alternativas a este estado de coisas. O clima de medo e terror os paralisava.

Ao cabo de alguns anos, ninguém mais questionava coisa nenhuma, tão acostumados que estavam a viverem sob o jugo de uma falácia.

Essa fábula me faz pensar numa analogia. O mercado de saúde tem uma dinâmica própria que em seu cerne não dá espaço para a implantação de mudanças substanciais. É um fato. E porque isso? Simplesmente porquê não há, no fundo, o menor interesse na incorporação sistemática de ideias e iniciativas que, mesmo sem a garantia de que seriam criadas as condições para um ambiente de negócios mais saudável, poderiam talvez tornar o fruto dessa relação mais favoráveis do ponto de vista de justiça social, um ambiente de negócios mais colaborativo na reversão de conflitos e iniquidades eternas. Duvida? Basta uma vista rápida nos meios de comunicação e redes sociais para constatar a infinidade de propostas para iniciativas interessantes, envolvendo todo o sistema. Num movimento não orquestrado, muita gente competente e bem intencionada se manifesta a respeito disso a todo o momento.

Existem atores, alguns exponenciais, bem preparados, que apontam caminhos promissores, mas com frequência encontram obstáculos pelo simples fato de que ameaçam o que se denomina “establishment” do sistema: alguns pilares de sustentação do atual modelo de negócios, principalmente aqueles relacionados a padrões de remuneração, risco moral, padrão assistencial, renúncias fiscais, terceirizações no setor público (que eu particularmente prefiro chamar de mercantilização na prestação de serviços em saúde), absorção de tecnologias de forma indiscriminada e priorização de resultados financeiros, persistem fortes e sem nenhum indicativo de exaustão. A ponto de alguns manifestarem desencanto e apatia diante da manutenção de um arcabouço corporativo que não abre mão das práticas existentes, por sua vez absolutamente consolidadas. Grandes ideias, reflexões profundas, eventos grandiosos, cursos, livros escritos... e nenhuma mudança substancial.

Após décadas de convivência visceral com o meio, arrisco dizer que ao final o sentimento que antes mobilizava engajamento e esforços para a construção de um ambiente de vantagens mútuas não passa de uma miragem, que não trespassa a conveniente blindagem daqueles que não aceitam a transformações, ou que até as acham interessantes, mas que por diversos motivos não abraçam a ideia de transformação por falta de coragem, determinação ou condições para mudanças. É o que chamamos de disrupção, termo elegante e disseminado no meio, mas que na prática não avança além da reflexão.

Como gestor médico de um grande hospital há muitos anos atrás, discutindo a respeito de algumas ideias sobre a implantação de processos de Qualidade, ouvi de um alto executivo desse mesmo hospital que todo esse movimento de transformação (que à época já fervilhava de ideias, como até hoje fervilham), era uma iniciativa sem possibilidade de ir adiante porque havia um elemento central intransponível: ao final e ao cabo, o que importava mesmo era se o hospital teria alguma vantagem competitiva em relação aos concorrentes, e se haveria algum reconhecimento pelas fontes pagadoras traduzidos em pagamentos diferenciados pelos serviços prestados ou outras vantagens.

O argumento é forte. E certamente decisivo.

Não vejo tudo isso como um absurdo ideológico, dentro de contexto mercantil: as relações comerciais sempre estiveram acima de qualquer outra prioridade. O mercado de saúde vai permanecer, a meu juízo, absorvendo aqui e ali iniciativas que possam trazer retorno operacional em primeiro lugar, em seguida excelência assistencial. Mas quem detém o poder não abrirá mão da hegemonia de suas ações (ou a falta delas), pois é uma postura que de certa forma também é utilizada para justificar a sobrevivência institucional para todos os envolvidos: financiadores, prestadores, reguladores e o complexo industrial. E o usuário, público ou privado, no centro disso tudo, mal percebe que tudo isso não existiria caso ele mesmo não existisse.

Ideias vão continuar a surgir, líderes vão se destacar (e depois desaparecer), discussões e eventos vão fomentar a criação de ambientes que não levarão a lugar nenhum, propostas continuarão sendo ignoradas ou deformadas a bem do interesse do mercado.

Tudo seria perfeito, desde que os serviços fossem prestados de acordo com a expectativa daqueles que os contratam. Sem muita firula. Mas não é o que parece estar na pauta.

O dragão imaginário continua preso. E, aparentemente, os aldeões, mesmo discutindo formas de se livrarem dele, vão continuar sujeitos aos seus controladores.