“É por isso que
se mandam as crianças à escola: não tanto para que aprendam alguma coisa, mas
para que se habituem a estar calmas e sentadas e a cumprir escrupulosamente o
que se lhes ordena, de modo que depois não pensem mesmo que têm de pôr em
prática as suas idéias.”
Immanuel Kant
Uma fábula antiga de autor
desconhecido conta que numa aldeia distante os habitantes eram induzidos a
temer um dragão imaginário que se encontrava aprisionado num lugar secreto, e
que a qualquer momento poderia ser liberto e provocar a aniquilação dessa
aldeia, caso os aldeões não cumprissem suas obrigações da maneira que achavam,
na opinião deles, aquela que lhes traria vantagens. Esses indivíduos, que
representavam a elite dominante, e que detinham o segredo de como manter o
dragão aprisionado, tinha verdadeiro horror a qualquer tipo de mudança nas
relações de servidão que acabou se criando, sendo suprimidos quaisquer
questionamentos que tentavam mostrar alternativas a este estado de coisas. O
clima de medo e terror os paralisava.
Ao cabo de alguns anos, ninguém
mais questionava coisa nenhuma, tão acostumados que estavam a viverem sob o
jugo de uma falácia.
Essa fábula me faz pensar numa
analogia. O mercado de saúde tem uma dinâmica própria que em seu cerne não dá
espaço para a implantação de mudanças substanciais. É um fato. E porque isso?
Simplesmente porquê não há, no fundo, o menor interesse na incorporação
sistemática de ideias e iniciativas que, mesmo sem a garantia de que seriam
criadas as condições para um ambiente de negócios mais saudável, poderiam
talvez tornar o fruto dessa relação mais favoráveis do ponto de vista de
justiça social, um ambiente de negócios mais colaborativo na reversão de
conflitos e iniquidades eternas. Duvida? Basta uma vista rápida nos meios de
comunicação e redes sociais para constatar a infinidade de propostas para
iniciativas interessantes, envolvendo todo o sistema. Num movimento não
orquestrado, muita gente competente e bem intencionada se manifesta a respeito disso
a todo o momento.
Existem atores, alguns
exponenciais, bem preparados, que apontam caminhos promissores, mas com
frequência encontram obstáculos pelo simples fato de que ameaçam o que se
denomina “establishment” do sistema: alguns pilares de sustentação do
atual modelo de negócios, principalmente aqueles relacionados a padrões de
remuneração, risco moral, padrão assistencial, renúncias fiscais, terceirizações
no setor público (que eu particularmente prefiro chamar de mercantilização na prestação
de serviços em saúde), absorção de tecnologias de forma indiscriminada e priorização
de resultados financeiros, persistem fortes e sem nenhum indicativo de exaustão.
A ponto de alguns manifestarem desencanto e apatia diante da manutenção de um
arcabouço corporativo que não abre mão das práticas existentes, por sua vez
absolutamente consolidadas. Grandes ideias, reflexões profundas, eventos
grandiosos, cursos, livros escritos... e nenhuma mudança substancial.
Após décadas de convivência
visceral com o meio, arrisco dizer que ao final o sentimento que antes
mobilizava engajamento e esforços para a construção de um ambiente de vantagens
mútuas não passa de uma miragem, que não trespassa a conveniente blindagem daqueles
que não aceitam a transformações, ou que até as acham interessantes, mas que por
diversos motivos não abraçam a ideia de transformação por falta de coragem,
determinação ou condições para mudanças. É o que chamamos de disrupção, termo
elegante e disseminado no meio, mas que na prática não avança além da reflexão.
Como gestor médico de um grande
hospital há muitos anos atrás, discutindo a respeito de algumas ideias sobre a
implantação de processos de Qualidade, ouvi de um alto executivo desse mesmo
hospital que todo esse movimento de transformação (que à época já fervilhava de
ideias, como até hoje fervilham), era uma iniciativa sem possibilidade de ir
adiante porque havia um elemento central intransponível: ao final e ao cabo, o
que importava mesmo era se o hospital teria alguma vantagem competitiva em
relação aos concorrentes, e se haveria algum reconhecimento pelas fontes
pagadoras traduzidos em pagamentos diferenciados pelos serviços prestados ou
outras vantagens.
O argumento é forte. E certamente
decisivo.
Não vejo tudo isso como um
absurdo ideológico, dentro de contexto mercantil: as relações comerciais sempre
estiveram acima de qualquer outra prioridade. O mercado de saúde vai
permanecer, a meu juízo, absorvendo aqui e ali iniciativas que possam trazer
retorno operacional em primeiro lugar, em seguida excelência assistencial. Mas
quem detém o poder não abrirá mão da hegemonia de suas ações (ou a falta
delas), pois é uma postura que de certa forma também é utilizada para
justificar a sobrevivência institucional para todos os envolvidos:
financiadores, prestadores, reguladores e o complexo industrial. E o usuário,
público ou privado, no centro disso tudo, mal percebe que tudo isso não
existiria caso ele mesmo não existisse.
Ideias vão continuar a surgir,
líderes vão se destacar (e depois desaparecer), discussões e eventos vão
fomentar a criação de ambientes que não levarão a lugar nenhum, propostas
continuarão sendo ignoradas ou deformadas a bem do interesse do mercado.
Tudo seria perfeito, desde que os
serviços fossem prestados de acordo com a expectativa daqueles que os
contratam. Sem muita firula. Mas não é o que parece estar na pauta.
O dragão imaginário continua
preso. E, aparentemente, os aldeões, mesmo discutindo formas de se livrarem
dele, vão continuar sujeitos aos seus controladores.