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quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Outra verdade inconveniente?


O artigo “Alguém está satisfeito com seu plano ou seguro saúde?”, publicado em 10/09/2012 no site da Saúde Web, me levou a uma reflexão. Da forma como está escrito, e salvo melhor interpretação, nos passa a sensação de que basta que a concorrência seja estimulada para que haja equilíbrio no mercado da saúde. Além disso, induz o leitor a pensar que em função das demandas geradas por reclamações em órgãos de defesa do consumidor, as operadoras de planos de saúde são, de fato e na essência, as verdadeiras responsáveis pelas agruras pelas quais os usuários são vítimas.
Os autores que me perdoem discordar. A despeito de não ser um simpatizante com a forma predatória de que uma grande parte das OP’S age em defesa de seu caixa, desvirtuando muitas vezes propósitos até mesmo altruístas, e apesar da ANS não ter a sua importância reconhecida de forma unânime, já tempos maturidade suficiente para identificar os gargalos que impactam na assistência à saúde dos indivíduos em geral, tanto no âmbito privado quanto público. E as respostas talvez não sejam assim tão simplistas.
Em verdade, desconheço sistemas de saúde que não passem por reflexões constantes acerca de sua realidade: tudo é uma questão de quem analisa o problema e dos interesses que estão por detrás de uma crítica ou elogio. No nosso caso, devemos nos recordar, inicialmente, os propósitos pelos quais a ANS foi criada e nos lembrarmos do quão importante na defesa desses chamados assim consumidores, em virtude de um cenário de desrespeito total a regras mínimas de mercado, penalizando os usuários de então com exclusões absurdas e reajustes abusivos. Se a agência não está cumprindo a contento seu papel, pode ser, dentre outras explicações, que seja por falta de “pernas” para acompanhar de perto as minuciosas nuances desta relação, que, acreditem, já foi muito mais desigual e cruel. Não dá para deixar fechada a possibilidade de que possa estar ocorrendo, de forma explícita ou não, alguma pressão corporativa que leve à inação da mesma em alguns momentos, mas esse é outro assunto.
As queixas existem e sempre existirão. As empresas não são perfeitas, e num cenário de tantas adversidades regulatórias, é esperada a concentração e o monopólio local em algumas localidades. Assim o é qualquer mercado, de qualquer segmento. Quanto às comentadas assimetrias na relação, isso também é um traço característico desse mercado da saúde. Mas assim o é em todo o mundo: é a lógica do seguro. Qualquer seguro, inclusive saúde, entendido em seu contexto mais amplo.
O SUS não presta uma assistência de qualidade? Existem muitas lacunas a serem preenchidas? Falta financiamento? Falta gestão? Essas e outras questões terão sua vez de serem encaradas com maior seriedade ao seu tempo, na medida em que a própria sociedade evoluir nas suas percepções e necessidades básicas. E já o estão sendo.
Quanto às OPS’S, elas bem sabem que seu futuro vai depender visceralmente da incorporação de medidas que viabilizem sua atividade com qualidade e, principalmente, garantam o acesso daqueles que mais necessitam. O gerenciamento de suas ações, focadas na eficiência de suas ações e não numa roda protelatória de má assistência, solicitação excessiva de exames e avaliações por outros especialistas, acompanhadas da realização de procedimentos/internações desnecessárias; pode sim trazer benefícios a quem se utiliza dos serviços. Com alguma competência e mudança na forma de ver o negócio, quem sabe até alguma reserva financeira que permita longevidade. Mas isso é um problema das OPS’s, que certamente vão encontrar os meios para se atingir isso ou algo parecido com isso. Senão deixam de existir, como ocorreu com tantas outras.
Assim sendo, pense numa situação surrealista: milhões de usuários pressionando o SUS por melhor eficiência, todos oriundos de planos de saúde em função de sua insatisfação com os mesmo ou incapacidade de arcar com a sua manutenção. Não seria uma forma interessante de se fazer uma pequena revolução em nosso sistema? A burguesia, a elite intelectual, precisando do SUS de forma simbiótica, elegendo-a forçosamente como instância assistencial exclusiva?
Vamos pensar nos dois lados das coisas. Isso pode não tardar a acontecer.

Até que a morte os separe


Existe uma frase atribuída a Max Nunes que diz o seguinte: “Há uns casais que se detestam tanto que não se separam só pra um não dar esse prazer ao outro”. Pois nas relações comerciais e profissionais parece que algumas vezes acontece a mesma coisa.

O casamento entre prestadores de serviço e os intermediários de serviços médicos, chamados popularmente de operadoras de planos de saúde (sim, caro leitor, são intermediários na prestação de serviço), já ruiu há algum tempo. Ele vinha sobrevivendo a crises consecutivas, cada uma mais grave que outra, até que se extinguiu. Não há mais simpatia. Nem respeito. Nem consideração. Igualzinho como entre duas pessoas que um dia imaginavam construir algo de concreto e de benefício mútuo, mas que percebem que não é bem assim que as coisas são.
Duvida? Olhe ao redor. A despeito do aumento em números reais da quantidade de usuários de planos de saúde no nosso país, a qualidade do serviço prestado pelos atuais “players” do mercado fica muito a desejar. Todo mundo sabe disso. O índice de insatisfação dos usuários e prestadores subiu na mesma proporção em que as relações entre as operadoras, prestadores (principalmente médicos) e usuários azedou.
Esses últimos, agora reféns de uma escolha feita pelo RH da empresa em que trabalha e que na maioria das vezes não tem o poder de decidir que operadora sua empresa irá escolher para fornecer o tal plano de saúde, ou não têm informação suficiente para estabelecer juízo de valor nessa escolha; já não sabem a quem recorrer. Até porque é sabido por todos que o custo de levar a termo qualquer contestação judicial a respeito de uma atitude considerada inaceitável pelas operadoras para com um usuário ainda assim é compensada pela manutenção de estratégias que visam impedir ou dificultar o acesso aos seus serviços. Os prêmios (mensalidades) anunciados são ridículos e irreais, baseados em cálculos atuariais tendenciosos e inflados por um senso de oportunismo que até hoje ninguém se atreveu a regular.
Os profissionais, notadamente os médicos, parecem se comportar como numa relação de namoradinhos adolescentes: se não fizer isso, eu faço bico. Se não me pagar como eu quero, eu paro de atender um, dois, dez dias, não importa. Se não me der condições para atuar dentro que eu considero mais adequado do ponto de vista de liberdade de ação, eu também não quero mais brincar.
Toda relação tem suas regras, escritas ou não, que se traduzem, nesse caso, em contratos, termos de ajuste os mais diversos, e em atitudes tácitas baseadas na ética e no bom senso. Há, sem sombra de dúvida, uma quebra de todos esses paradigmas. Sonegar uma remuneração justa é apenas um desses aspectos.
Assim sendo, por que permanecer mantendo a aparência de um casal que se dá bem, quando o que ocorre é o oposto? Já não é chegada a hora da categoria, através de suas entidades representativas, assumir unilateralmente a falência deste modelo de relacionamento, que em última análise acaba por nos tornar cúmplices dessa não disfarçada ação espoliadora sobre aqueles aos quais juramos servir com nosso talento e dedicação? Que tal pensar na possibilidade de voltar às origens e ser um pouquinho, só um pouquinho, novamente um profissional liberal?
As operadoras de planos de saúde certamente também têm seus motivos para estar insatisfeita nessa relação. Os médicos são manipuladores, algumas vezes mal intencionados, e em diversas circunstâncias forjam números e situações para justificar suas ações, em troca de um potencial ganho paralelo. Médico é humano. Seres humanos erram. São passíveis também de deslizes desprezíveis. Mas enquanto esses representam uma fração de um universo amplo, as práticas contestáveis de gerenciamento clínico e operacional das empresas, principalmente das líderes de mercado (assim intituladas em função do número de usuários) saltam aos olhos pela ganância e pelo afastamento de seus princípios, valores e missão. Para estas, não custa lembrar que a razão de sua existência está calcada na existência dos próprios médicos. Se estes não existem, não existe operadora.
E há quem acredite que a implantação de “modernas técnicas gerenciais”, como as advindas de empresas estrangeiras (muito em pauta recentemente), pode ser solução para o problema, simplesmente porque são um sucesso enquanto corporação em seus países, com seus públicos, suas legislações e sua cultura. Vamos ver.
Então, por que o casamento persiste? Para isso teríamos que recorrer a uma construção histórica que justificaria o atual estado de coisas, assim como explicar a interdependência dos setores públicos e privados na prestação de serviços em saúde, o que foge ao objetivo deste post. Mas deixo aos que me lêem que façam suas reflexões.
“Chama-se casamento de conveniência o casamento entre pes­soas que de modo nenhum convêm uma à outra.” (Jean-Baptiste Alphonse Karr).