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quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A cobra com TOC


Recentemente foi postada uma foto na internet, cuja origem ignoro, mostrando uma cobra deslizando entre as junções de um calçamento pré-moldado. Até aí nada demais, o engraçado foi atribuir à coitada da cobra uma patologia: transtorno obsessivo-compulsivo, justamente por não “caminhar” por sobre as pedras. Vejam se realmente não parece uma cobra com TOC:
A cobra com TOC
Muritiba, Bahia, município situado no Recôncavo Bahiano, com 27.212 habitantes, segundo informações do IBGE de 2007, IDH de 0,676 e distância da capital do estado da Bahia, Salvador, de 64km. Foi nessa pequena cidade que no dia 15/11 deste ano a médica Larissa Andrade Costa, de 26 anos, alegando total falta de condições para atendimento à população da cidade, resolveu fechar as portas do único hospital local, um hospital público municipal. Em seguida, procurou a delegacia de polícia aonde registrou Boletim de Ocorrência em que denunciava a impossibilidade de exercer seu trabalho em função da falta de medicamentos básicos para serem usados nos pacientes e a impossibilidade de contar com a única viatura disponível  para transferência de pacientes mais graves para outros locais(ambulância), pois a mesma se encontrava sem combustível. Em declarações posteriores, informou que o gestor local (não diz qual) havia sido notificado alguns dias antes a respeito das condições locais inadequadas, sem que nenhuma providência tivesse sido tomada. Um blog local ratificava essa informação. Várias pessoas que lá residem ficaram bastante revoltadas com a situação, não sem razão.
O prefeito municipal, Sr. Epifânio Marques Sampaio (PR), demitiu a profissional no dia seguinte.  Após muitas explicações, o tanque da ambulância foi cheio e os estoques de medicamentos básicos voltaram a existir.
E o que tem a ver uma cobra com TOC e a corajosa médica da pequena cidade de Muritiba?  Ambos são iguais num ponto: representam situações absolutamente surrealistas. A diferença é que uma cobra com TOC é totalmente implausível. O que aconteceu no município de Muritiba na Bahia, e que acontece na maioria dos 417 municípios baianos, e nos 5.565 municípios do Brasil, é uma realidade.
Entre estes, cerca de 4.000 deles têm menos de 20.000 habitantes, e concentram 18% de toda a população do país (estamos falando de aproximadamente quarenta milhões de pessoas). Nesses, é comum a inexistência de estruturas hospitalares minimamente adequadas para cumprir sua função de atendimento de situações de complexidade um pouco maior. Algumas vezes, nem o que poderia ser chamado de hospital existe. E é comum nem médicos poderem ser encontrados.
O somatório dos leitos de todos os estabelecimentos hospitalares do Brasil nos mostra que, em que pese a carência de leitos observada nos grandes centros, 60% deles estão ociosos, justamente por conta dos leitos destes hospitais (a maioria municipais ou de fundações), que carecem de resolutividade.
O quadro atual é fruto de uma construção histórica marcada acima de tudo por uma percepção equivocada do que vem a ser o melhor modelo de assistência à saúde, pressionada por diversos entes que de uma forma ou outra se beneficiaram e ainda se beneficiam da existência deste tipo de arranjo, principalmente os políticos locais. O SUS teve o mérito de tentar (e ainda tenta) implementar um novo modelo assistencial que ainda esbarra em vários obstáculos. Mas isso fica para outro comentário.
Não vem ao caso nesse momento criticar o modelo acima. Nem o Sr. Epifânio, imediato na sua reação. Nem mesmo a situação de penúria pela qual boa parte, senão a maioria, dessas estruturas designadas “hospitais” por esse Brasil afora deve estar passando, no pretenso objetivo de oferecer assistência médica às suas populações. Pelo menos na visão dos gestores locais.
O fato preocupante é que se num centro maior, tal como as capitais e cidades maiores (50% da população brasileira vive em apenas 253 municípios), as dificuldades de ao menos poder apresentar aos tomadores de decisão na área da saúde a necessidade de se refletir acerca de algumas medidas que podem trazer melhorias incrementais na assistência à saúde da população são enormes, imaginem no restante desse nosso país, de dimensões continentais. Noções de acolhimento, equipe de hospitalistas, qualidade e acreditação, gestão do corpo clínico, re-engenharia e tantos outros desenvolvidos para tornar a vida do cidadão melhor quando de sua experiência no contato com o serviço de saúde, dentro de um contexto de racionalidade, boas práticas, segurança e adequação orçamentária, simplesmente inexistem. Em outras palavras, metade da população brasileira, no mínimo, está naturalmente excluída da possibilidade de usufruir desses conceitos, que, diga-se de passagem, não necessariamente necessitam da existência de uma estrutura hospitalar de grande porte para ser aplicada.
E não é pra menos. Como trazer para discussão essas idéias quando o hospital local (que, se considerarmos a capacidade de resolução de casos mais agudos – para isso servem os hospitais – não deveriam se chamar hospitais. Talvez Unidades de Pronto Atendimento ficasse melhor), no qual encontramos na linha de frente um ou dois incautos atendendo uma multidão, em situações que vão desde uma virose num neonato até um politraumatizado?  Qual é a percepção do gestor hospitalar público ou privado acerca do que vem a ser essas novas tendências?
Saúde, para a maior parte do nosso país, com SUS ou sem ele, em primeiro lugar vai ser sempre em última análise uma responsabilidade do município (às vezes com uma ajudinha do estado). Em segundo lugar, por muitas gerações ainda será o espaço em que o cidadão vai encontrar um sujeito com um avental branco atrás de uma mesa atendendo uma fila enorme de pessoas, e aonde ele pode encontrar o alívio para sua queixa imediata. E só. Como sempre foi.
Preocupa-me não poder compartilhar um conhecimento que infelizmente está restrito à academia ou a espaços privilegiados de discussão. Preocupa-me ver o indivíduo comum satisfeito apenas com o que há de mais elementar na saúde. E cima de tudo, preocupa-me imaginar que, a despeito de todo esse contingente de usuários e prestadores de serviço que reproduzem as mesmas práticas de 20, 30 anos atrás, ao lado da nossa casa encontramos estruturas hospitalares que ainda não conseguem enxergar o momento histórico que se coloca no horizonte, em que podem ser protagonistas de mudanças tão simples e ao mesmo tempo tão eficientes na gestão do negócio saúde em geral, e dos processos internos em particular.
No fundo, pode ser que não seja tão improvável assim a gente descobrir que as cobras podem ter TOC.

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