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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Os hospitais e o alfaiate

George Bernard Shaw, célebre escritor irlandês, inspirou um sem número de outros intelectuais com seu humor refinado e sua inteligência acima da média, dentre eles o nosso falecido Millôr Fernandes, com o qual dizem que se identificava bastante. A despeito de algumas posições bastante controversas para a sua época com relação aos sistemas políticos e a própria humanidade, criou algumas pérolas da literatura mundial, chegando a ser indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 1925. E, fato inusitado, se recusou a recebê-lo.
 
Há, entre seus pensamentos vários que particularmente me agradam, pela forma como são adaptáveis ao nosso cotidiano. Alguns deles serão apresentados ao leitor ao longo deste texto.
 
“De todos os homens que conheço, o mais sensato é o meu alfaiate. Cada vez que vou a ele, toma novamente as minhas medidas. Quanto aos outros, tomam a medida apenas uma vez e pensam que seu julgamento é sempre do meu tamanho.”
 
E aonde entram os hospitais nessa história?
 
Sua reflexão acerca do alfaiate, de forma simples e brilhante, apresenta uma analogia bastante atual com as propostas e linhas estratégicas da maioria das organizações de saúde, focadas ultimamente na absorção de práticas que tentam, nem sempre com sucesso, diferenciais competitivos fundados em lógicas teoricamente afinadas com supostas tendências de mercado ou copiando exemplos aplicados com êxito em outras organizações, senão vejamos:
  • pulverização da assistência na expectativa de preencher lacunas assistenciais possivelmente promissoras do ponto de vista de reembolso pelos pagadores;
  • investimento maciço em tecnologia diagnóstica e terapêutica de ponta, com clara e indisfarçável tentativa de se notabilizar dentre a concorrência pela existência da tecnologia em si, sem avaliação custo-efetividade prévia, análise do ambiente mercadológico ou mesmo consulta àqueles profissionais que farão uso da mesma, para inquirir se é realmente necessário tal investimento;
  • implantação acriteriosa de certificações de qualidade, muitas vezes na expectativa, aparentemente vã, de obter vantagens diferenciadas por ocasião de reembolso por serviço prestado pelas fontes pagadoras. Um verdadeiro “viés de intenção”;
  • má utilização ou utilização tímida dos recursos oferecidos pelas tecnologias de informação: muitos não sabem sua real finalidade ou mesmo que dados podem ser extraídos na expectativa de criar informações úteis para o planejamento estratégico da organização;
  • planejamento estratégico? Que planejamento estratégico? O que seria isso e para que serve?
  • super-utilização de recursos diagnósticos e terapêuticos, criando a falsa sensação de acolhimento e competência para o paciente e seus familiares, parte frágil do sistema e exposto a uma assimetria de informação que não lhe deixa enxergar que, por melhor que seja a boa-fé daqueles que estão encarregados de seu tratamento, existe um limite de atuação até mesmo quando a intenção é boa;
  • publicidade de efeito questionável, que coloca os bens intangíveis que representam os esforços das organizações de saúde na prevenção, promoção e recuperação das enfermidades no mesmo patamar dos artigos ordinários. A boa, e talvez única, publicidade eficiente é aquela representada pela imagem transmitida pelos profissionais e demais colaboradores aos pacientes e seus acompanhantes, tanto do ponto de vista de carinho e atenção quanto de eficiência e racionalidade nas ações. Para isso faz-se imprescindível a disseminação entre todos dos valores e da missão da organização, para que disso resulte uma forma de ser única e que dispense a necessidade de ser a todo momento evocada;
  • negligência com iniciativas que promovam o ensino e a pesquisa, importantes canais para a motivação das pessoas, para a formação de técnicos e profissionais dentro dos valores previamente instituídos e como forma de colaboração para com a sociedade em geral. O aluno de hoje é o formador de opinião amanhã, é ele quem, dentre outros, fará no futuro o juízo de valor da sua organização acerca de sua lisura, ética, competência e responsabilidade, quando do relacionamento com outros entes no plano dos negócios em geral;
  • precarização das relações de trabalho, tornando os profissionais, notadamente os médicos, visitantes de luxo. Nossa realidade econômica é um obstáculo frequentemente invocado para justificar a não contratação formal destes (apontado por muitos como um primeiro passo para melhorar a performance organizacional), o que pode ser de fato verdade: nossas leis são relativamente inflexíveis nas relações de trabalho. Mas se por um lado há obrigações por parte do empregador, estas deverão também existir desta para com seus empregados, o que não acontece com frequência. Estamos nos acostumando a somente aplicar nosso conhecimento com qualidade e dedicação somente se naquele momento uma boa oportunidade de remuneração for avistada, o que não é eticamente correto. Quantos realmente se debruçam acerca das alternativas a esse modelo desgastado de prestação independente de serviços (chamadas muitas vezes de forma inapropriada de “parceria”), que não agrega valor e que, em última análise, emperra a evolução da organização?
O alfaiate do autor tira suas medidas a cada vez que recebe a visita de seu ilustre cliente. Os demais se baseiam em medidas (conceitos) pré-concebidos para aplicá-los, julgando que sutilezas dessa natureza são dispensáveis. Não são.
 
“O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada.”
 
As organizações de saúde são organismos vivos, dinâmicos, complexos e, coisa difícil de fazer ver, únicas. Como tal, cada intervenção, cada plano estratégico, cada aquisição de alto custo deve ser pensada de tal forma que privilegie os aspectos relacionados às necessidades da comunidade onde ela está inserida, à sua missão organizacional, seus valores e sua história.
 
“O homem razoável se adapta ao mundo; o irascível tenta adaptar o mundo a si próprio. Assim, o progresso depende do homem irascível.”
 
Assim, temos que se as ações emanadas dos gestores e do braço operacional da organização incluindo e destacando o Corpo Clínico (por si só entidade bastante complexa e difícil de lidar) não forem moldadas de acordo com o momento político-econômico, com seus valores fundamentais, com sua tradição naquilo que realmente faz bem, com as peculiaridades de seus profissionais (que devem acima de tudo respeitar esses valores) e, principalmente, com as necessidades dos pacientes que para lá se dirigem em busca de uma resposta aos seus problemas; encontramos então uma organização fora do seu eixo e com boas chances de naturalmente ser relegada a um plano secundário no cenário mercadológico.
 
“Temos tempo bastante para pensar no futuro quando já não temos futuro em que pensar.”
 
O pior é que para chegar a um estado de satisfação mútuo, que contemple todos os atores desse arranjo, o caminho não é complicado. Pelo contrário. Só precisa ser encontrado. Uma vez encontrado, a cúpula gestora poderá ter a grata surpresa de perceber que nos elementos mais simples e ordinários do dia a dia de uma organização hospitalar é que está a inspiração para um verdadeiro investimento. E o melhor, bem baratinho…
 
“A simplicidade é o que há de mais difícil no mundo: é o último resultado da experiência, a derradeira força do gênio.”
 
Esses conceitos não tão abstratos assim. Mas é necessário esforço para pensar, buscar ou identificar as lideranças certas, e agir com coerência. Ser uma boa organização de saúde há muito tempo deixou de ser aquela em que os médicos são diferenciados pela quantidade de diplomas, ou que apresente diferencial de hotelaria que a aproximam de um hotel de luxo, ou mesmo aquela em que se faz o exame mais sofisticado da cidade. Afinal
 
“A reputação de um médico se faz pelo número de pessoas famosas que morrem sob seus cuidados.” (George Bernard Shaw)

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